top of page
  • Foto do escritorReconfigurações Jornalísticas

data_labe: transformar dados em narrativas sobre os territórios populares

Atualizado: 16 de out. de 2023

Beatriz Lisbôa e Thalita Queiroz

Dezembro de 2020



Checar, minerar dados, formar cidadãos e difundir a informação: estes são pilares do data_labe, que nasceu na favela da Maré, no Rio de Janeiro, em 2016, e teve como base estrutural a ONG Observatório das Favelas. O veículo atua para a construção de narrativas sociais e culturais relativas às periferias, não somente da Maré. Em entrevista concedida no dia 29 de outubro de 2020 ao projeto Reconfigurações Jornalística, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gilberto Vieira, um dos fundadores e diretor executivo do data_labe, contou a história do veículo, a rotina de trabalho e os planos de desenvolvimento do site. Natural de Brasília e formado em Comunicação - Habilitação Publicidade, Vieira hoje pensa e atua a partir da perspectiva do jornalismo. Ou seja, de certa forma passou por uma conversão profissional. Esse processo pode ser tomado como indício de que a discussão alarmista predominante há alguns anos - de que o jornalismo iria acabar diante do impacto das formas de comunicação nas mídias digitais - está ficando para trás. Bem ao contrário: estaríamos vivendo um período de redescoberta do que significa fazer jornalismo.


“A gente está num momento muito crítico do jornalismo, (...) crítico e efervescente”, afirma Vieira, que, durante sua formação ouvia com frequência o mantra de que o jornalismo estava morrendo e que as pessoas iriam apenas escrever blogs. “Na minha época, o medo era esse. Mais de dez anos depois, a gente já está entendendo que o problema não é esse”. Hoje, lidar com grandes redes monopolísticas que controlam dados e algoritmos de forma pouco transparente impõe uma série de novos desafios à profissão.


“Tem rolado um reposicionamento do campo do jornalismo, justamente por causa disso, porque a gente está lidando com novas camadas, com novas perspectivas, assim, de produção de conteúdo, sabe?”. Por exemplo, Vieira acredita que atuar em “nichos”, no campo jornalístico, pode ser uma atividade potente: “É possível falar para nicho, é possível falar sobre um grupo específico, mas em prol de alguma coisa que sejam menos catastrófica, entendeu? Em prol de uma democracia mais plural, em prol da vida das pessoas, em prol de um mundo um pouco mais feliz, em prol de comunidades mais sustentáveis”.


O veículo encontra formas de financiamento sobretudo de organizações internacionais e busca capacitação constante, para múltiplos projetos, como o CocôZap, que utiliza o Whastapp para mapear condições de saneamento na Maré, ou o podcast, que agorá passará a ser realizado por temporadas temáticas. As reportagens são pensadas a partir de pautas que levam em conta dados, sobretudo a partir de uma perspectiva de diversidade, observando questões de gênero, raça e condições sociais de vida.


Parcerias com outros veículos do mesmo perfil também fazem parte da forma de trabalho do data_labe. Durante a pandemia, o site conseguiu financiamento para uma parceria com veículos como Gênero e Número, AzMina e Énois. São veículos que de certa forma foram criados no mesmo período, nesta década, compartilham desafios semelhantes e muitas vezes se cruzam também por laço de amizade de seus profissionais. De certa forma, integram um movimento que vem se consolidando nas redes, que busca afirmar novas possibilidades para o jornalismo de qualidade, a partir dos ambientes das mídias digitais.



Transcrição da entrevista com Gilberto Vieira, do Data Labe

Realizada por Beatriz Lisbôa e Thalita Queiroz

Roteiro: Rachel Bertol, Beatriz Lisbôa e Thalita Queiroz

Revisão da transcrição e minutagem: Mateus Stögmüller e Rachel Bertol

Data da realização da entrevista: 29 de outubro de 2020

Coordenação: Profa. Rachel Bertol

Projeto Reconfigurações Jornalísticas, da Universidade Federal Fluminense (UFF)


Clique aqui para acessar à transcrição da entrevista em versão PDF.


[00:00:12] Beatriz: Gilberto, para a gente começar, vou pedir para você se apresentar: dizer seu nome, "Oi, eu sou Gilberto Vieira". Qual é o seu cargo no Data Labe e falar um pouquinho da sua história, sua formação, sabe? De onde você é, o que você estudou. E aí quando você quiser pode começar.

[00:00:32] Gilberto: Está bom. Eu sou Gilberto, eu sou diretor executivo do Data Labe, um dos fundadores, junto com a Clara Sacco. Eu sou formado em comunicação, com habilitação em publicidade e propaganda. Eu entrei na universidade em 2005, em Brasília, que é de onde eu sou originalmente. Eu sou de um bairro em Brasília que chama Ceilândia e Brazlândia. São duas periferias do Distrito Federal, onde eu morei a minha vida inteira, até mais ou menos uns 15, 16 anos. E aí depois eu me mudei para uma outra cidade satélite que chama Vicente Pires, que também fica numa periferia, mas mais central na cidade. E foi quando eu entrei na universidade. Eu fiz, como eu falei para vocês, publicidade, eu me formei em 2009 e eu fui, assim que eu me formei, eu fui embora para São Paulo. Fui viver em São Paulo durante quatro anos, eu fiquei lá e ali eu trabalhei com produção cultural, trabalhei com arte e educação, até chegar no terceiro setor. Eu trabalhei durante um ano na Cidade Escola Aprendiz, que é uma ONG muito grande em São Paulo, que era maior, na verdade, em São Paulo. Hoje está menor, mas foi onde nasceu o Catraca Livre e algumas outras iniciativas interessantes de jornalismo, de comunicação, de cultura, de formação de jovens de periferias de São Paulo e tal. E nessa época eu saí da Cidade de Escola Aprendiz, que foi onde eu comecei, ali nesse terceiro setor, e fui trabalhar numa escola técnica. Então eu fui professor durante um ano e meio de uma escola técnica que lá chama e-Tec, aqui chama Faetec, né? E eu fui professor de turmas de produção audiovisual e de multimídia. Eu dei aulas de semiótica, de assistência a direção, de projeto multimídia e aí eu vim para o Rio, em 2012, para trabalhar no Observatório de Favelas, que fica na Maré. E aí foi quando eu comecei a minha trajetória mesmo, aqui na Maré, e um pouco nesse campo da comunicação, juventude, cultura, tecnologia, sempre juntando essas coisas todas. Em 2016, eu estava trabalhando no Observatório ainda e a gente, eu e a Clara, a gente já era uma dupla de trabalho, a gente inventou então esse laboratório de jornalismo de dados. Em 2017, a gente ficou, a gente passou um ano entendendo mais ou menos nosso modelo de trabalho, o que a gente queria, a potência do projeto, e aí em 2018 a gente se desligou do observatório e fundou então o Data Labe não mais como um projeto dentro do Observatório, dentro de uma ONG, mas como um projeto, mas como uma organização autônoma, autogerida por nós e tal. Desde então a gente opera, racionaliza o Data Labe.


[00:03:58] Beatriz: Ah, legal. E como foi a sua primeira impressão quando você chegou na Maré, quando você conheceu a Maré?

[00:04:07] Gilberto: Então, foi muito louca, porque eu sou de... é isso, eu circulei muito, né, assim, no Distrito Federal. Como eu falei para vocês, eu morava num lugar que era bem periférico, mas não era uma favela e depois eu me mudei para um lugar que era mais rural, que é Brazlândia, que é uma cidade muito pequena, muito pacata, muito rural mesmo, mas não é... hoje tem favela, mas na minha época não tinha tanta favela e a gente não morava na favela. Então nunca tive contato de fato com essa estrutura social e urbana que é a favela. Em São Paulo, eu fui morar no Centro da cidade e eu vim, na verdade, em 2012, antes de vir para o Observatório, eu vim para uma ação de um projeto que eu fazia parte no Complexo do Alemão. Aí eu conheci essa estrutura da favela assim mais de cara, e eu fui entendendo que existia uma dinâmica muito diferente do resto da cidade. Quando eu vim para a Maré, eu vim com essa intenção. Muito de olhar para esse espaço com carinho, com respeito e, ao mesmo tempo, com crítica social, entendendo onde era o meu lugar, no mundo, na cidade, mas também fazendo com que eu pudesse contribuir para aquele espaço e aquele espaço pudesse contribuir para a minha formação. Então, acho que olhar para a Maré, chegar na Maré, teve muito a ver com isso, com uma relação de estabelecimento de uma troca muito ativa. O que eu poderia dar para aquele lugar e o que aquele lugar poderia me dar. E eu acho que eu sigo nessa busca, de dar e receber muito cotidianamente da Maré.


[00:06:03] Beatriz: E você, então, entrou no jornalismo a partir do Observatório de Favelas? Porque você é formado em publicidade, né?

[00:06:11] Gilberto: É, eu sou formado em Publicidade. Eu sempre circulei no Jornalismo. Eu fiz gestão de comunicação na Cidade Escola Aprendiz. Eu sempre fui, joguei muito em muitas áreas, em muitas posições, de direção de arte, de redação publicitária, até escrita acadêmica. Mas eu acho que foi no Data Labe que eu encarei de frente o jornalismo mesmo. Eu acho que foi só quando o Data Labe começou a acontecer mesmo, porque no Observatório eu era mais produtor, gestor, então eu acho que foi o Data Labe que me colocou mais de frente com o jornalismo mesmo.


[00:06:59] Thalita: E assim, Gilberto, você terminou mestrado na UFF sobre cultura e territorialidade, em 2018. Isso também influenciou na sua participação no Data Labe?

[00:07:11] Gilberto: Influenciou muito. Eu terminei o mestrado em 2015, na verdade. Eu entrei na turma de 2013 e formei na turma de 2015. Ainda não existia a Data Labe, a Data Labe começou a existir em 2016. Mas eu acho que foi muito simbólico o meu Mestrado na UFF para eu entender um pouco onde eu queria estar e um pouco dessas interseções entre cultura, território, comunicação. Eu acho que foi importante para mim nesse sentido.


[00:07:52] Thalita: E você está no projeto desde o comecinho. Você pode contar como é a sua relação com o projeto? Como que ele te interessou? Qual foi o momento que você deu aquele start e falou é isso que eu quero.

[00:08:36] Gilberto: Tá. Deixa eu ver... que momento foi esse. Eu acho que... em 2018, no final de 2017, a gente conseguiu... Eu acho que durante 2017 aconteceram coisas muito, muito importantes que fizeram com que eu assumisse uma responsabilidade muito grande que era: "eu vou tocar um projeto meu, sozinho assim, com uma parceira só, mas a gente solto no mundo, é a gente sozinho no mundo" e isso queria dizer que a gente ia passar um tempo olhando praquilo, maturando aquilo. E eu sou, eu ainda sou jovem, não sou tão jovem quanto vocês, mas eu ainda sou jovem. Eu contei para vocês que eu me formei, muito jovem, me formei com 20 anos e aí fui para São Paulo... quando eu cheguei no Rio, eu tinha 24. Quando a gente inventou o Data Labe, eu tinha 28, 27. Então assim, eu ainda estava muito novo e eu tinha passado por muitos lugares de forma muito rápida... Você fica um ano, dois anos trabalhando num lugar. E eu já estava há quatro anos no Observatório e eu falei, "cara, eu preciso fazer alguma coisa assim, para mim, porque não está dando mais aqui, eu já não tenho mais espaço para crescer aqui, do jeito que eu gostaria". Então, acho que em 2017, quando eu decidi que eu ia sair do Observatório e quando eu vi pela primeira vez uma possibilidade de financiamento pro meu próprio projeto, eu acho que aí foi uma chave do tipo, olha, o mundo, politicamente, financeiramente, está convergindo para uma ideia possível acontecer. E aí eu acho que foi um momento que eu falei, bom, é aqui que eu vou amarrar meu jegue, pelo menos por enquanto. E tem sido um desafio estar aqui até hoje também, mas eu acho que foi por aí que eu decidi. Claro que a gente vai renovando esses votos todos os dias, todo mês, a cada leão que você mata, você fala, "nossa, tá, é por isso que eu tô aqui, eu vou seguir aqui e tal", mas...


[00:11:05] Beatriz: Vocês fizeram parceria com AzMina e o Gênero e Número (GN), que inclusive são outros veículos que a nossa turma também está entrevistando nesse projeto. Também teve o Énois, né, e vocês tiveram parceria deles para poder fazer a cobertura do dia a dia na pandemia. Eu queria saber como vocês chegaram a esses parceiros e como tem sido o trabalho com eles? E como que o Data Labe contribuiu assim, no geral?

[00:11:37] Gilberto: Então, o Data sempre foi, porque é um jeito meu mesmo de fazer, sempre foi muito colaborativo. A gente sempre trabalhou com muitos parceiros. Então, eu venho mantendo parcerias desde os tempos de São Paulo, quando eu morava lá e tal. A Giulliana Bianconi, que é a diretora da Gênero e Número, é minha amiga na vida privada. A gente é muito parceiro da vida. E eu conheço ela há muitos anos. A gente sempre... A Gênero e Número nasceu junto com o Data Labe, mais ou menos na mesma época. Então a gente sempre trocou muita ideia, a gente sempre vislumbrou fazer coisas juntos e tal. E muitos outros parceiros chegaram um pouco assim. Quer dizer, alguns chegaram porque acharam uma coisa na internet e viram que era legal. Alguns chegaram de outro jeito. Com a Énois também foi um pouco assim, também meio por vias das conexões que a gente vai fazendo na vida, então, uma das mulheres que era diretora da Énois era mulher - nessa época, nem é mais - de um cara que foi meu amigo em São Paulo, e aí ele falou "cara, você tem que conhecer o Gil", e aí numa viagem pro Rio ela falou, "cara, vamos tomar um café?". "Vamos!", e aí a gente ficou muito amigo. Hoje, elas são conselheiras do Data Labe. A gente é muito amigo de vida mesmo, assim, e de trabalho. Então as coisas vão se encaixando muito no afeto também. A rede do Data Labe está toda ligada por muita amizade, por muito afeto, por muita confiança no trabalho dos outros. Então, eu acho que é assim que as coisas vão acontecendo. Para essa cobertura específica da Covid, que veio (sic) AzMina, a GN, a Énois e a gente, foi uma experiência muito transformadora, na verdade, porque a gente assumiu um lugar no jornalismo que a gente ainda não tinha assumido, então a gente vinha produzindo com pouca frequência, a gente não trabalha só com produção jornalística, mas tem formação, tem essa parte dos dados que é muito forte, então o jornalismo sempre foi central, mas nunca engatou. Então quando a Giu... a Giu que fez esse convite, primeiro. A Giu é a diretora da Gênero e Número, foi ela que falou, "Gil...", a gente chama Gil, né, ela chama Giulliana e eu Gilberto, ela falou "eu consegui uma grana para gente fazer uma cobertura da Covid, vamos?". Eu falei "vamos, demais". Aí ela trouxe a AzMina e eu trouxe a Énois. Aí a gente fez esse quartetinho e foi muito importante, porque foi quando a gente conseguiu contratar um editor com esse dinheiro. A gente conseguiu contratar mais uma repórter. Então a gente fez uma equipe de um editor, duas repórteres, mais eu fazendo a gestão e aí a gente conseguiu produzir assim. Eu acho que a gente fez mais de 30 matérias durante a Covid, o que para gente é um número muito grande, porque a gente não estava muito acostumado e tal. Então, foi isso. Foi uma experiência de muita produção jornalística e de muita qualidade, foi uma experiência muito boa.


[00:15:08] Beatriz: E nesse quadro da pandemia, com esses dados que vocês conseguiram fornecer, vocês sentiram que eles ajudaram a entender as dificuldades das pessoas nas periferias, com relação a combater o Covid?

[00:15:25] Gilberto: Essa é uma pergunta muito boa e complexa. A gente não faz jornalismo comunitário, porque a gente não dá conta ainda e a gente não se propôs desde o começo a fazer um jornalismo comunitário - que eu considero que é um jornalismo feito para dentro da favela, para dentro das comunidades, para dentro de um grupo, para dentro do bairro, independente se é favela ou não. Eu considero isso jornalismo comunitário. A gente não faz isso porque a gente está dentro da Maré mas não... Enfim, a nossa formação e a nossa história foi levando a gente para um caminho que é um pouco diferente desse jornalismo comunitário, que é um jornalismo feito de dentro para fora, que é sobre como a gente pode falar sobre a realidade das pessoas que vivem no território e não só na Maré, a gente não fala só da Maré, mas de um grupo específico de dentro, olhando para dentro, mas tentando falar com mais gente. Então, eu tô falando isso porque eu acho que as nossas reportagens não ajudaram ninguém dentro das favelas a combater o coronavírus. O que eu acho que aconteceu é que o nosso conteúdo alertou muita gente para a importância da camada território, de falar sobre o território, de falar sobre as questões específicas que se abatem sobre os territórios de favela, quando a gente estava falando da pandemia. A gente não produziu muitos dados durante a pandemia, a gente ajudou, colaborou com outras organizações de dentro de favelas que estavam produzindo dados. Então a gente foi muito parceiro da Redes da Maré, que é uma ONG muito grande que fica na Maré, e que a gente conseguiu olhar para os dados que eles mesmos estavam produzindo e ajudado eles a entender um pouco os dados para que isso viesse a público. Então a gente fez esse trabalho. A gente levantou muitos dados sobre raça, gênero e território durante a pandemia. A gente foi parceiro de manifestos sobre a negação ou da falta de transparência, na verdade, de dados sobre as periferias. A gente falou disso, a gente levantou essa bola, mas ajudar de fato as pessoas a se prevenirem contra o coronavírus por conta do que a gente produziu, eu acho que isso a gente não fez.


[00:18:11] Thalita: Você falou no comecinho da entrevista sobre o Observatório das Favelas. Teve uma influência direta no trabalho de vocês no Data Labe, o que vocês aprenderam lá que vocês trouxeram para o Data Labe, como foi essa troca?

[00:18:30] Gilberto: O Observatório foi a nossa incubadora, é como se fosse a grande mãe. A gente ama muito, respeita muito o trabalho do Observatório e foi ali onde eu aprendi sobre… basicamente, a base do que a gente fala hoje no Data Labe vem da nossa formação, minha e da Clara, no Observatório. Então, a gente teve uma formação muito intensa sobre direito à cidade, sobre como é possível entender as periferias como centrais na dinâmica das cidades. Sobre como é possível disputar hegemonicamente espaços de poder, a partir da periferia. Então, acho que esse debate político em torno do território da favela, em torno da produção intelectual sobre a favela, a gente aprendeu no observatório.


[00:19:35] Beatriz: Perguntando agora sobre um dos projetos de vocês, mais especificamente. Agora, em 2020, nos meses da pandemia, vocês passaram pela terceira fase do projeto CocôZap, que é talvez o mais importante de vocês, e tem o objetivo de mapear o saneamento básico na Maré e tudo mais. E como nasceu essa ideia? E como ela evoluiu? Como que o trabalho está sendo realizado nesse momento?

[00:20:08] Gilberto: O CocôZap nasceu no final do primeiro ano do Data Labe, em 2016 ainda, em parceria com a Casa Fluminense. A gente fez uma... Esses foram os parceiros que surgiram assim: viram uma coisa na internet e falaram, "cara, a gente precisa ir aí conhecer vocês". Eles vieram na Maré, a gente fez um encontro, foi muito bom. E aí, semanas depois, o Vitor, que era um dos coordenadores lá da Casa, me ligou e falou assim, "cara, tem um edital aberto, um edital internacional, para um prêmio, para quem der uma ideia sobre tecnologia e aqueles objetivos do desenvolvimento sustentável. Vamos pensar em alguma coisa, a gente queria fazer alguma coisa com vocês". Aí a gente pensou no CocôZap, ali, nessa reunião. "Vamos fazer um número de WhatsApp, em vez de fazer um aplicativo", eles tinham uma ideia de fazer um aplicativo para mapear o lixo, esgoto, a gente falou para usar o Zap. Nessa época tinha um projeto que a gente gostava muito, que a gente se inspirava muito, que se chamava DefeZap, que era um número de WhatsApp para mapear violações de direito [direitos humanos] em favelas. A gente falou, "cara, vamos na onda do DefeZap fazer um CocôZap. E aí a gente ganhou esse prêmio da Civicus, que é uma organização da África do Sul. A gente conseguiu US$ 5 mil (cinco mil dólares), que segurou a onda do Data Labe por uns dois, três meses. Aí a gente ganhou o prêmio. A gente ganhou o prêmio para escrever um projeto. Então, a gente ganhou o prêmio e escreveu o projeto. Durante dois, três meses a gente passou escrevendo um projeto que é um calhamaço assim [ele faz um gesto indicando que é algo volumoso] de informações, de ideias, de como operacionalizar um projeto na Maré inteira, era um projeto caro e tal. Eu passei 2017 e parte de 2018 com esse projeto na mão, assim embaixo do braço, tentando vender, tentando fazer acontecer e nunca rolava, eu nunca conseguia grana para fazer. Aí, em 2018, a gente conseguiu R$ 30 mil (trinta mil reais), eu acho, de um prêmio também e a gente fez a primeira etapa do CocôZap, que foi jogar o número no mundo, que era isso que a gente queria fazer, jogar o número na Maré. E rolou, foi super legal, a gente teve muito pouco retorno, mas as pessoas começaram a conhecer esse nome. Então, em 2018, a gente fez três meses de CocôZap. Em 2019, a gente conseguiu mais uma graninha, fez mais um tempo. E aí, desde o segundo semestre de 2019, que a gente não parou mais. Começamos a entender o CocôZap como um projeto, não só do que a gente chama de geração cidadã de dados, que vocês devem ter lido por aí também, que é essa ideia de que o cidadão pode produzir dados sobre a sua própria realidade, mas também como o CocôZap virou um projeto de incidência política, do que a gente chama de advocacy, que é como a gente pode influenciar a política pública sobre um determinado assunto. Então, a gente começou a fazer encontros de saneamento, a gente começou a pensar em mobilizações comunitárias em torno do assunto do saneamento básico e isso tudo tentando linkar com esse número de zap para as pessoas mandarem suas denúncias. Ainda é um canal em construção, a gente está reformando o site agora, a gente conseguiu um financiamento durante a pandemia para entrevistar 15 famílias que vivem na Maré, sobre saneamento básico e Covid. Então o projeto ficou muito abrangente, né? A gente produz conteúdo mensal sobre saneamento básico. Então, é um pouco isso o CocôZap.


[00:24:14] Beatriz: E você sabe mais ou menos dizer quantas pessoas colaboram enviando dados para você, cidadãos?

[00:24:19] Gilberto: Hoje a gente só tem 50 e poucas denúncias. Acho que são 57 denúncias.


[00:24:26] Beatriz: Mensalmente?

[00:24:28] Gilberto: Não! De tudo. Para você ver como é muito pouco. Ainda é muito pouco. Porque a gente até hoje não conseguiu fazer um trabalho de mobilização das pessoas para elas usarem o número do Zap. Então hoje o CocôZap é muito mais um projeto mesmo, como eu falei para você, de advocacy, de juntar as pessoas. A gente tem um grupo de, um grupão ambiental da Maré, que são as pessoas que estão envolvidas, engajadas com o meio ambiente da Maré. Então, essas pessoas vão tentando divulgar o Data Labe do jeito que elas conseguem. Mas ainda é um projeto, em processo, em desenvolvimento, em caminhada.


[00:25:07] Beatriz: E nas eleições de 2018, vocês usaram as redes do CocôZap também para a checagem de dados. Você pode contar para gente como é que foi esse trabalho e se vocês planejam voltar a fazer em 2022?

[00:25:24] Gilberto: A gente fez em 2018 uma coisa que chamava ChecaZap, que não tinha a ver com CocôZap. Tinha porque a gente gosta de usar o Zap para essas coisas, vocês perceberam. Então, o ChecaZap a gente conseguiu uma grana também para fazer uma residência jornalística de checagem de notícias. Então era fact-checking, não era checagem de dados necessariamente, mas era de checagem de notícias, checagem de informação. Então a gente entrou em vários grupos de WhatsApp, a maioria desses grupos de favela, e aí a gente ia mapeando o que vinha de fake news nesses grupos, checava as mensagens. Na verdade não que vinham de fake news, [mas] que vinham de corrente, basicamente. Checava aquelas informações e voltava com as informações checadas para os próprios grupos. A gente contratou, selecionou três jovens estudantes de jornalismo para ficar três meses com a gente fazendo esse trabalho, foi muito foda. A gente foi para São Paulo encontrar com a galera da Énois, porque foi um projeto que a gente fez em parceria com a Énois. A gente checou, acho que, mais de 200 mensagens durante esses três meses. Foi muito foda. E foi isso. A gente não pretende mais fazer checagem de notícias. Dá muito trabalho, é muito difícil de fazer. Tem muita gente fazendo, existe uma questão em torno das fake news que eu acho que a gente pode combater mais do que checando, que é formando pessoas, difundindo informação pelo WhatsApp, ainda que seja pelo WhatsApp, mas pelo WhatsApp, do que checando necessariamente as notícias. Então a gente não pretende fazer mais isso em 2022. A gente tem trabalhado mais com dados, então, a gente agora vai fazer uma cobertura, um pouco, dos dados do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] nesse novo formato de candidaturas negras, nessa nova lei de financiamento, junto com a Alma Preta, que é um veículo de São Paulo - que é muito legal de vocês olharem, devem conhecer. A gente vai fazer uma cobertura junto com eles, mas muito mais de análise de dados, muito mais de jornalismo de dados, do que de checagem de informação.


[00:28:04] Thalita: E tem um outro trabalho de vocês que é muito legal, que é o data_lábia, é um podcast. Eu queria que você falasse um pouco sobre essa nova plataforma. Esse novo formato está sendo desafiador para vocês?

[00:28:23] Gilberto: Sim, muito, muito, muito mesmo. Tudo aqui é desafio, porque a gente saber mesmo fazer, a gente não sabe fazer nada disso que eu falei. A gente começou a fazer o podcast em 2017, ainda era meio ˜mato˜, não estava muito famoso, difundido, mas já tinha umas ondas. A gente começou porque a gente achava que ia ser mais fácil de fazer do que reportagem, porque a gente estava muito desorganizado em 2017. Nós éramos cinco, só, em 2017. Não tinha sede. A gente não estava mais na Maré, a gente trabalhava na minha casa no Estácio, que é outro bairro aqui do Rio. A gente, enfim, estava bagunçado, não tinha horário, não tinha salário, não tinha dinheiro, não tinha nada. Então, em 2017 foi muito caos, foi esse momento de transição entre o Observatório e a associação que a gente é hoje. Então foi um ano muito atípico. E aí a gente falou, cara, vamos fazer um podcast porque a gente consegue emprestado equipamento e a gente faz esse lance meio roda de conversa, que também não dá tanto trabalho de roteirizar nada e tal, vamos experimentar. E a gente começou a experimentar. Não fez sucesso, mas para gente era legal, tinha o nosso publiquinho ali, a gente começou a fazer coisa, começou a rodar. Fazia quando dava, não tinha frequência. No ano passado a gente encarou isso assim como... 2019 a gente passou a fazer um por mês. A gente fazia um por mês e a gente fez muitos dessa segunda temporada, que foi do ano passado. Aí a gente foi esgotando, não estava dando tempo de fazer, a gente estava meio fazendo nas coxas, a gente já estava meio insatisfeito do formato, já tinha experimentado outros formatos diferentes. Eu passei a escutar muito podcast, a estudar muito podcast, até que a gente se inscreveu num programa de formação e fomento do Serrapilheira, que é um instituto de financiamento à pesquisa, de fomento à pesquisa, no Brasil. A gente ganhou, há quatro, três meses atrás, no meio da pandemia, essa formação com PRX, que é uma agência que só produz podcast, nos Estados Unidos. A gente fez durante a quarentena, eu e a Gabi, uma formação muito intensa em podcast para fazer a próxima temporada. A gente encerrou o data_lábia por enquanto, agora há uns meses atrás, uns três meses eu acho, que é o último episódio, e a gente decidiu que vamos fazer por temporadas, mais bem produzidas, com link entre um episódio e outro, mais roteirizado, mais narrativo. Então não vai ser roda de conversa mais. Estou contando isso aqui para vocês, é um spoiler, mas assim, até o ano que vem, vai sair uma temporada muito legal, porque a gente aprendeu coisas muito legais. Então o podcast é um projeto que a gente ama muito, que a gente quer muito seguir fazendo, mas cada vez qualificando melhor o trabalho, entendendo melhor como faz. É claro que na guerrilha... A gente é profissional de guerrilha, então a gente já deu oficina de podcast, a gente sabe mais ou menos como faz. E agora, que a gente fez essa formaçãozona muito intensa, a gente está querendo dar uma hackeada um pouco ali no que a gente aprendeu e tentar passar essa informação mais para frente. Então a ideia é que a gente faça um laboratório de podcast, interno, para equipe, e que a gente faça isso de temporada em temporada. A ideia é que a gente faça duas temporadas por ano e não mais do que isso, porque é o que a gente dá conta com tanto de coisa que tem para fazer. Duas temporadas de até oito episódios... Oito, dez episódios no máximo para cada temporada. Uma em cada semestre. Então semestre que vem sai uma temporada sobre saneamento básico mesmo, que tem tudo a ver com o CocôZap, com esse assunto que ronda a gente, que tem ficado muito importante. E outra temporada no segundo semestre, que a gente ainda não sabe qual é a pauta.


[00:32:50] Thalita: Então tem muita coisa boa. Adoro um podcast. E partindo para um outro assunto agora, que não tem muito a ver, mas, sobre a Marielle Franco, a vereadora assassinada em 2018, ela tinha a Maré como origem, né? E agora que nós estamos em novas eleições locais para vereadores, e as mulheres pretas, muitas delas que se inspiram na Marielle, entraram com força na disputa. E vocês já publicaram muitas reportagens sobre questões de raça, de gênero, e com bastante espaço para mostrar as condições de vida das mulheres, como no Parto das Pretas ou no Nossa História Outra, sobre mulheres lésbicas na favela. Houve algum tipo de impacto da morte da Marielle no trabalho de vocês?

[00:33:52] Gilberto: Sim, completamente. Completamente, 100%. Quando a Marielle morreu, a gente estava meio assim no auge do Data Labe. Eu estava em Londres pelo Data Labe. Eu tinha ido viajar para falar sobre isso lá. A gente estava num momento muito efervescente do Data Labe e do debate público, político sobre isso. Desde o começo, o Data Labe fala sobre raça, gênero, sexualidade, que são os assuntos que envolviam a Marielle. A gente se conhecia, circulava na Maré junto, a gente estava meio ali... Enfim, ela era uma entusiasta do Data Labe em 2016 e 2017. O assassinato dela foi muito chocante para a gente. Uma das residentes do Data Labe no primeiro ano chama Vitória Lourenço. E uma das primeiras reportagens lá do Data Labe, se você for lá embaixo, vai ter uma reportagem da Vitória, que é uma matéria na verdade simples, mas ela analisando os dados sobre morte materna no estado do Rio de Janeiro. Quando a Vitória saiu do Data Labe, no final de 2016 e começo de 2017, ela saiu do Data Labe e foi trabalhar junto com a Marielle, em 2017, no mandato, com dados sobre mulheres negras e mães. Foi a Vitória que ajudou a Marielle a formular a lei das casas de parto, que foi uma das únicas leis que a Marielle aprovou na Câmara. Então, a gente tem uma relação muito próxima com o que foi a Marielle, com a importância que ela tem. Eu acho que todas as reportagens que estão no Data Labe que tem a ver com gênero, raça, sexualidade, política, elas são um pouco fruto do que a Marielle plantou aqui.

[00:36:11] Beatriz: E um pouco sobre outra parceria de vocês que você até falou agora aqui, da Alma Preta, que vocês estão com esse projeto para acompanhar as candidaturas das candidatas negras. E eu queria saber se você pode falar mais um pouquinho. Pode falar mais um pouco sobre como vem sendo esse trabalho e onde as pessoas podem procurar saber sobre ele também?

[00:36:36] Gilberto: O trabalho vai sair... A primeira reportagem sai no dia 9 de novembro, durante todo o mês de novembro, o Alma Preta e a gente vamos soltando as reportagens. O trabalho que a gente fez, central, foi mais dos dados mesmo, então a gente levantou todos os dados de todos os candidatos a vereador e a prefeito no Brasil inteiro para entender se, de fato, a mudança na distribuição de dinheiro no financiamento das campanhas influenciava na eleição de pessoas negras. Isso é um trabalho muito complexo de análise, de cruzamento de bases de dados. A gente recorreu a um especialista cientista político para ajudar a gente a entender onde estava o espectro da direita e da esquerda dos partidos políticos, para entender se isso também fazia diferença no financiamento das campanhas. A gente foi entender quantos candidatos tinham, negros, que se declaravam pretos e que se declaravam pardos nos partidos de direita e nos partidos de esquerda, para entender se tinha diferença entre a direita e a esquerda, no que competia tanto ao financiamento das campanhas quanto na elegibilidade dos candidatos que se candidatavam como vereador pela esquerda ou pela direita. Enfim, foi um trabalho exaustivo de dados. Hoje a gente tem uma equipe de dados que não existia no Data Labe, então hoje, pela primeira vez desde agosto, a gente tem um coordenador e duas analistas de dados, são três pessoas que trabalham só com isso o dia inteiro. E é isso, a gente tem algumas pautas, aí já vai ser spoiler também, mas eu nem sei. Eu daria, mas eu nem sei direito, porque aí eu já não acompanho mais tudo, mas a gente vai sair com três pautas e o Alma Preta com três pautas, então devem ser seis reportagens diferentes com base nesses dados, mas aí os temas são diversos e tal. Vai ter vídeo, vai ter infográfico, vai ter um monte de coisa muito massa.

[00:39:11] Thalita: Você estava falando sobre o levantamento de dados aí da equipe, que tem por trás hoje. A gente sabe que os dados, eles não são neutros. Até a escolha do dado a ser pesquisado muitas vezes vai refletir num posicionamento político. Quando vocês estão escolhendo essas pautas, como vocês pensam nesses eixos de dados? "Olha, eu vou seguir por esse caminho, vou seguir por esse", como funciona essa decisão, ainda mais agora que você comentou que tem uma equipe por trás? O que faz para chegar no resultado final?

[00:39:44] Gilberto: Então, a gente sempre parte da pauta. A gente faz reunião de pauta toda semana com a equipe de dados, com a equipe de jornalismo e com a equipe de design. Então, todo mundo, e é todo mundo muito diverso. Então tem muitas pessoas negras, tem muitas mulheres e muitos LGBTs. Então esses três atravessamentos de gênero, de raça e de sexualidade, elas estão dadas, porque justamente pelo que você falou, quando a gente olha para uma base de dados, a gente olha a partir de quem a gente é também. Então de fato, a gente faz um exercício muito grande cotidiano de olhar para a base de dados com filtro de gênero, de raça e de sexualidade. E de território também, quando é possível. Então a gente faz isso o tempo todo, é meio orgânico até, e quando não é, ele é de fato uma decisão política de olhar para as bases de dados assim. E os resultados são quase sempre bem surpreendentes. Às vezes sim, às vezes não, mas é sempre muito importante perguntar para a base de dados, perguntar para quem fez a pesquisa, onde estão os atravessamentos de raça? Onde estão os cruzamentos entre raça e gênero? Quantas mulheres negras, quantas eram as mulheres negras nessa pesquisa? Quantos eram os LGBTs, declaradamente LGBTs nessa pesquisa? Ah, não tinha essa pergunta. Ah, tudo bem, isso é um dado, sabe? E aí isso vai para narrativa. Não existia classificação de gênero, não existia classificação de orientação sexual na pesquisa. Isso é um dado. E se existia, quem eram elas? Qual a cor dessas pessoas? "A gente já fez análise de dados só do Vote LGBT", que é uma organização, Vote LGBT, "são todos LGBTs". Beleza, mas quem são trans desses LGBTs? Quantos são? Quantos são negros? Quantos vivem na periferia? Vocês perguntaram sobre onde vivem essas pessoas? Qual a cor delas? Qual a renda delas? A cor tem a ver com a renda? As que têm renda menor são as mais pretas mesmo? Porque isso parece que é uma coisa meio "as mais pretas são as mais pobres". O dado diz isso? A base de dados diz isso? E se não, por que ela não diz? E se diz, como ela diz? Vamos falar como ela diz. "As LGBTs pretas e pardas têm uma renda X e Y", então isso é um dado real, oficial, está aqui a pesquisa. A gente fez o cruzamento entre elas. "O relacionamento das mulheres lésbicas com espaço de trabalho, com família, é diferente do que a dos homens gays? Tem como a gente descobrir isso?", aí a gente vai cavucar lá os dados, se afundar neles para tentar descobrir.


[00:43:01] Beatriz: E com relação à sua equipe agora, que vocês têm essa equipe de pesquisa de dados, como é que vocês fizeram para encontrar esses profissionais com capacitação para trabalhar no jornalismo de dados? E vocês têm algum trabalho de capacitação a longo prazo, ao longo dos anos?

[00:43:25] Gilberto: Então, é muito difícil encontrar. Vocês estão na universidade, vocês sabem que a universidade não prepara jornalista para ser analista de dados, né? E não prepara nem para ser jornalista de dados, basicamente. Então é muito difícil, mas aí o que a gente tem feito é isso. Hoje a gente tem... Eu acho que as jornalistas que trabalham com a gente são jornalistas de dados, mas talvez elas nem considerem isso. Mas é um aprendizado, é um aprendizado. A mesma coisa é a equipe de dados, a gente não procura pessoas especializadas em nada. Os únicos especialistas que hoje tem no Data Labe são, de fato, as pessoas que trabalham com dados e essas pessoas precisam ser sensíveis ao jornalismo, elas precisam ser sensíveis a aprender outras coisas. Então eu acho que é muito mais o caminho inverso, sabe? É muito mais. Porque a gente não sabe. "A gente", que eu estou falando assim, é a coordenação, o coletivo como um todo não sabe muito sobre a ciência de dados. A gente sabe sobre a importância dos dados e a gente sabe sobre as narrativas, produção de conteúdo. Aí os dados eles vão vindo a partir da sensibilização que a gente faz com a equipe mais técnica, que é hoje o que a gente faz. Então, a gente tem três analistas de dados, cientistas de dados. São duas mulheres negras e um homem negro indígena, LGBT. Essas pessoas com essas categorias, com essas características, elas estão mais abertas a olhar, a aprender, a entender, a duvidar. Então a gente traz essas pessoas que são as técnicas dos dados para fazer as perguntas para as bases. E aí, a gente faz formações mútuas. Uma das pessoas que entrou, que é um oceanógrafo, que trabalhou com a gente durante todo esse ano, que entrou para a equipe do CocôZap, ele entendia de ciência de dados, ele entendia de saneamento básico e em algum momento ele começou a escrever. E quando ele começou a escrever, a gente falou "cara, esse cara tem tino jornalístico". E aí ele começou a produzir reportagem sem formação. Aí a gente fez uma formação com a Énois, colocou ele na formação com a Énois - que a Énois fez uma formação para jornalistas comunitários -, ele fez a formação com a Énois, ficou melhor ainda na apuração, nas análises, ele conseguia trocar melhor com a equipe de dados. Então, assim, é uma formação continuada, sabe? Então não tem jornalista de dados, nem tem cientista de dados jornalista. É tipo tudo meio misturado, é a mesma coisa com design. Então, a gente não tem visualizadores de dados, a gente tem designers. Só que a gente tem designers sensíveis, que estão a fim de entender melhor quais são os desafios para visualizar melhor uma base de dados. Como que a gente consegue tratar referências o tempo inteiro para construir infográficos mais inteligíveis, mais legais, mais interessantes, sabe?


[00:46:52] Thalita: Você comentou sobre esses cursos de capacitação. Você acha que é importante ter pessoas da comunidade dentro desse ambiente, participando? Porque é um olhar local para compor uma narrativa, que vocês publicam. Então, você acha que é importante a presença dessas pessoas da comunidade dentro do projeto? Tem espaço?

[00:47:22] Gilberto: Com certeza, tem espaço. Hoje a nossa equipe é metade... Hoje tem três... quatro... cinco… [ele conta lentamente] É, hoje tem cinco pessoas da Maré, de 20, que é pouco. Hoje nós somos 20. Vinte não, hoje nós somos 18. Tem cinco pessoas que moram na Maré. Tem outras cinco pessoas que moram em outras favelas. E tem outras pessoas que moram em outros lugares. Não sei se essa é a divisão, mas para gente é muito importante estar com essas pessoas o tempo inteiro pensando o território. Mas é isso, a gente tem entendido que é mais importante que sejam pessoas que tenham empatia pelos territórios. Hoje, uma das repórteres do Data Labe é de São Gonçalo. Quer dizer, ela é da Zona Oeste, viveu na Zona Oeste a vida inteira e depois mudou para São Gonçalo. Fez UFF. Fez jornalismo na UFF. Ela chama Elena Wesley. Ela é uma mulher incrível. Ela foi de São Gonçalo. Ela foi desse jornal de São Gonçalo [jornal O São Gonçalo] durante muito tempo, esse jornal da TV. Não tem um jornal na internet?


[00:48:57] Thalita: É, eu trabalho lá.

[00:49:01] Gilberto: Trabalha lá? Então…

[00:49:03] Thalita: Elena, eu sei quem é. Ela participou de um programa nesse jornal sobre futebol.

[00:49:09] Gilberto: Isso, isso mesmo. Ela era o comentarista, a apresentadora, era ela. Então, assim, essa pessoa, ela não precisa... Eu não preciso ter uma pessoa da Maré para falar sobre a Maré. Mas quando eu tenho uma repórter que é essa mulher, que é da Zona Oeste, que morou em São Gonçalo, que formou na UFF, que é uma mulher preta, uma mulher foda, que circulou para caralho na cidade, essa mulher pode, ela acessa o morador, sabe, ela fala sobre aquele território, mesmo sem necessariamente ela ser dali. Então, acho que isso faz muita diferença. E é aquilo que eu falei para vocês, a gente não é um veículo de comunicação comunitária. A gente fala da Maré, mas a gente não fala só da Maré, a gente fala do corpo negro, do corpo favelado, do corpo periférico, do corpo mulher, do corpo lésbico, do corpo gay. Então assim, aí a gente vai se abrindo um pouco para esses canais, para esses olhares. A Elena foi quem fez a reportagem das mulheres lésbicas, negras e de favela. Ela não é uma mulher lésbica, mas ela é uma mulher periférica, uma mulher negra, então ela conseguiu chegar nessas mulheres de forma empática, de forma aberta. Então acho que tem essa camada da empatia, para quando a gente vai falar de um território, que é ouvir, sabe? Então, assim, eu concordo 100% que quando o morador fala, ele está falando sobre a realidade dele. Ele pode falar sobre a realidade dele, ele deve falar sobre a realidade dele. Mas é diferente quando a narrativa sobre aquele território ou sobre quando aquele morador é ouvido é produzida por um veículo tradicionalmente hegemônico, sabe? Quando o jornalista clássico da Globo vai lá tentar dar o que está acontecendo na Maré, sabe? Ontem, anteontem, teve um dia inteiro de operação, começou 5h da manhã, terminou 5h da tarde, uma mulher grávida foi baleada, perdeu o bebê, está até agora no hospital e a cobertura da Globo foi vergonhosa, nojenta, tosca. Então, precisava ter algum morador da favela falando sobre aquilo? Óbvio. Precisava ter gente da Maré na Globo para falar sobre aquilo? Precisava. Mas se já tivesse um favelado na Globo com lugar de poder, que desse conta de pautar aquela coisa, talvez aquela narrativa sobre a Maré não tivesse saído. Entende o que eu quero dizer?


[00:51:52] Beatriz: Sim, com certeza. Perfeito.

[00:51:55] Gilberto: Porque é meio complexo, meio polêmico isso que eu tô falando, mas eu acho que é um pouco isso, sabe? Eu não acho que só quem pode falar da Babilônia é quem mora na Babilônia, só quem pode falar da Maré que mora na Maré. O que eu acho é que o jornalismo precisa ser mais diverso, precisa ser mais negro, precisa ser mais favelado, porque aí eu consigo, eu, morador do Morro dos Macacos, eu consigo chegar no Borel e conversar com aquela pessoa, trocar ideia, falar "meu, eu sei do que você está falando, mais ou menos, eu vivi isso mais ou menos, eu tenho empatia pelo que você está falando". Então, é um pouco sobre isso, assim, porque eu acho que senão a gente fica, senão a gente ‘guetifica’ a gente mesmo, sabe? Tipo, ah, os homens brancos sempre falaram da porra toda que eles quiseram, sempre, falaram de tudo que eles quiseram, e agora a gente que é gay só pode falar de gay, a gente que é favelado só pode falar de favelado, a gente que mora na Maré só pode falar na Maré, sabe assim, isso, para não cair nesse lugar. Mas a gente dá muito valor para quem vive na Maré. O CocôZap é um projeto feito por moradores da Maré, então a equipe inteira do CocôZap, que é o único projeto que a gente tem que é um projeto comunitário da Maré, esse só tem morador da Maré e vai continuar tendo para sempre. É um pouco isso, sabe?


[00:53:22] Beatriz: Embora vocês estejam na Maré, vocês são voltados, como você diz, para a cobertura das periferias, além de outras coberturas. E como vocês amadureceram essa proposta? Acredito até que vocês já tenham falado mais ou menos sobre isso, mas como vocês decidiram cobertura principalmente periférica?

[00:53:50] Gilberto: Isso não foi uma decisão. Eu acho que isso foi orgânico. A gente é isso, o Data Labe surgiu na Maré. Não fazia sentido falar sobre outro lugar que não fosse a favela. E aí é isso, a gente não quis falar sobre a Maré porque a gente não é da Maré, eu não sou da Maré, eu contei para vocês, eu nasci lá no Distrito Federal, morei em São Paulo, não tenho nem sotaque carioca, não tem porque eu falar só sobre a Maré, porque eu não sou de lá, eu nem estou na Maré agora, nem sou de lá, nem moro lá. Então assim, eu frequento lá, eu vou para lá todos os dias, eu conheço lá, eu sei de lá, mas ao mesmo tempo não é o meu território único. Então, assim, é a mesma coisa da Clara [Sacco] e a mesma coisa da equipe que a gente foi formando. A gente sempre foi formando gente, trazendo gente de favelas diversas. O primeiro ano do Data Labe a gente fez uma seleção para cinco jovens e esses jovens só precisavam morar em favela. Então a gente tinha uma pessoa do Alemão, uma pessoa da Maré, uma pessoa do Tanque, uma pessoa de Bangu e uma pessoa da Baixada que era... eu esqueci a cidade da Baixada... Mesquita.


[00:55:20] Beatriz: Eu sou de Mesquita.

[00:55:23] Gilberto: Então, eram cinco jovens de territórios diversos, cinco jovens de territórios diferentes. Então, o Data Labe já surgiu com essa proposta de falar sobre a favela, de falar sobre o território popular, de falar sobre a periferia a partir dos corpos que vivem na periferia. Então, essa sempre foi a premissa. E eu acho que isso vai seguir acontecendo ainda por muito tempo, porque é um pouco a marca da gente.


[00:56:04] Beatriz: Conta para gente como é, mais ou menos, o público do Data Labe? Como que é a receptividade no asfalto e nas comunidades?

[00:56:19] Gilberto: Então, o público do Data Labe é muito diverso. A gente não conseguiu até hoje mapear de fato o perfil de quem lê o Data Labe, a gente está fazendo isso agora pela primeira vez, porque pela primeira vez a gente tem alguém que cuida das redes sociais com mais afinco, com mais profissionalismo. Então essa pessoa está hoje tentando mapear um pouco quem é o público, quem lê e tal. A gente não sabe ainda. Então tudo que eu falar aqui para vocês é um pouco de sensação. A sensação, hoje, a partir de algumas pequenas métricas, métrica do Facebook, por exemplo, a gente instalou aquele Analytics do Google no site agora, esses meses, então a gente está esperando para ver como é que vai ser, mas a gente acha que o público é um pouco parecido com a gente. Jovem, que passou para a universidade, de esquerda, que está interessado na favela mas que não é necessariamente favelado ou que tem origem popular. Muita gente da academia, muita gente do meio jornalístico, tanto do meio mais tradicional quanto os mais independentes chiques, quanto os comunitários. Então basicamente é esse o público. A receptividade para dentro ainda é muito pouco mensurável. A gente consegue mensurar muito mais quando chega para fora da Maré, estou falando da Maré mas a nossa intenção nem é muito chegar muito para dentro da Maré, mas mais para dentro de outras favelas. Também da Maré, mas para dentro de favelas. Isso ainda é uma coisa difícil de mensurar e a gente não consegue direito.


[00:58:31] Thalita: E você estava falando também sobre esse recurso de usar as métricas, né? Vocês agora estão usando bastante o Instagram. Qual a importância dessa ferramenta hoje para vocês? Você acha que é a porta principal para vocês conseguirem falar "olha, a gente publicou tal coisa, dá uma olhada", o carro abre-alas, digamos assim?

[00:58:57] Gilberto: É, hoje o Instagram é o principal meio de divulgar o conteúdo que a gente produz no site. Então, o principal meio é o site ainda, que é onde a gente tem produzido muito conteúdo, muita informação, que é o que a gente faz, eu acho, de mais importante, e o Instagram é a porta de entrada. Eu queria muito, mas é uma vontade que eu tenho, de que a gente tenha mais presença no Twitter. A gente tem feito e tal, mas precisa de alguém, isso é uma questão mesmo de quem trabalha com a gente e tal, que é de ter alguém ali mais cotidianamente dando e gerando debate, conteúdo no Twitter. É uma vontade, porque eu acho que tem muito formador de opinião lá e a gente está experimentando, mas o Instagram acho que é a porta de entrada, ainda mais para o público que a gente tem, eu acho que é.


[01:00:02] Thalita: Sim, é mais fácil, né? Mais fácil para você ter o primeiro acesso com tudo que está sendo lançado ali na hora.

[01:00:09] Gilberto: E tem uma coisa de apelo estético também, né?


[01:00:14] Beatriz: Com certeza. E finalmente uma pergunta que acaba sendo obrigatória. Como vocês conseguem a sustentabilidade financeira? Como é feito esse trabalho ano a ano? E se ele tem ficado mais fácil ou mais difícil com o tempo?

[01:00:34] Gilberto: A gente só recebe recurso internacional, basicamente. A maioria, na verdade, 90% do recurso é internacional. E é um trabalho de relacionamento muito grande que eu faço, de ficar acessando as fundações, os editais, as chamadas públicas, os fundos de emergência, mapeando as fundações internacionais que estão ligadas ao jornalismo, à democracia, à tecnologia, à tecnologias cívicas, que é um termo que as pessoas usam nesse campo do financiamento de coisas tecnológicas. É um trabalho muito, muito difícil de fazer, mas que a gente tem feito de forma muito exitosa desde 2018. Então desde 2018 que o Data Labe tem financiamento ininterrupto de diferentes fontes. A maioria delas são essas fundações internacionais, como eu falei para vocês, tipo a Ford, a Fundação Ford, que é uma fundação muito importante para filantropia no Brasil e a outra é a Open Society, outra fundação também muito importante para esses financiamentos. E outras fundações menores, que aportam dinheiros menores, a gente faz prestação de serviço também, então a gente... algumas oficinas em parceria com a Énois... A Énois contrata a gente para fazer uma coisa, a gente faz alguns eventos. A gente faz a Criptofunk [criptofunk.org], que está acontecendo agora. Inclusive agora estou aqui com outra aba aberta que está acontecendo, o encerramento da Criptofunk, que é um evento que a gente consegue fazer por financiamento coletivo. Então também entra dinheiro por financiamento coletivo. E outras parcerias que a gente vai fazendo. Então é um trabalho constante, mês a mês, não funciona ano a ano, funciona mês a mês. A gente vai tentando, é claro que eu fecho balanços anuais, mas mês a mês a gente vai tentando recorrer ao que está aberto, prêmio, edital e tal.


[01:02:57] Thalita: Falando agora sobre o Criptofunk, que a gente inclusive ia mencionar ele para para perguntar sobre ele, como o Data Labe se identifica com esse movimento, com o Criptofunk?

[01:03:11] Gilberto: Eu faço parte do movimento das criptofestas já há um tempo, não como ativista, mas como entusiasta, porque quando eu morei em São Paulo eu fui de um movimento que era da cultura digital, que a gente chamava ainda - velhos. Mas era um movimento um pouco da política pública voltada para o digital, para a cultura digital e tal. E aí foi quando eu conheci muita gente que era de fato ativista desse movimento da criptografia, da segurança digital, da segurança dos dados e tal. Em 2017, alguém propôs para a gente, tinha um movimento começando a acontecer nesse meio, de fazer criptofestas que não fossem ligadas à CryptoRave, que é a grande festa, grande evento que acontece nesse sentido em São Paulo, uma vez por ano. Em 2017 começou um movimento do Intervozes, que é uma organização que vocês têm que conhecer, de democratização da comunicação de jornalismo no Brasil. E eles começaram a incentivar alguns grupos a fazerem criptofestas nas suas cidades. E aí tinha um grupo já que eu fazia parte aqui no Rio, que chamava Casa Nuvem, que eram umas pessoas que discutiam um pouco algumas coisas que tinham a ver com tecnologia, segurança, vigilância. E aí elas falaram "cara, vamos fazer uma Criptofunk e seria muito legal se essa Criptofunk acontecesse na Maré". Aí eu falei, cara, vamos ver, vamos ver o que acontece. E aí foi começando a surgir isso. A gente foi começando a discutir com outras organizações, "vamos fazer, vamos fazer". A gente não queria fazer sem grana, porque todas as outras criptos estavam fazendo sem grana. A gente costuma não fazer quase nada sem grana, porque a gente trabalha com a galera que está na luta pesada, então a gente paga todo mundo, sabe? A gente quer sempre fazer as coisas com todo mundo recebendo, a gente não trabalha com voluntário. Voluntário no Data Labe é só gringo. Gringo a gente aceita voluntário, mas se não, não. E aí foi começando a ficar muito central para gente fazer a Criptofunk porque tinha tudo a ver com o que a gente discutia. E também porque a gente trouxe para CriptoFunk a ideia do corpo, da segurança integral, da coisa feita de forma mais consciente, sobre tecnologia e corpo, sobre o funk mesmo, funk como tecnologia, como ferramenta política. E aí a gente começou a achar isso muito maravilhoso. E eu e a Clara [Sacco], a gente sempre foi produtor de eventos, produtor de ações, então a gente gosta muito de fazer isso. E o evento deu muito certo. Todo ano é muito foda, muito legal. Esse ano a gente ficou muito surpreso de ter conseguido fazer um evento tão massa, digital, online, que todo mundo colou, foi muito legal. Enfim, está acabando agora a mesa de encerramento e para a gente é muito central falar disso, porque tem tudo a ver com o dado. Criptografia, segurança digital, tem tudo a ver com dado. Só que desse lado obscuro dos dados. A gente fala desse lado engajado, político, do ponto de vista político, bom, dos dados. E a Criptofunk é nossa oportunidade de falar desse lado mais punk, desse lado mais... mais... maléfico, assim, dos dados.


[01:07:20] Thalita: A gente já está caminhando para o final e tem uma pergunta que é mais uma reflexão, a gente gostaria de ouvir uma visão sua, que está inserido nesse meio. É que assim, na faculdade, a gente, como você até mencionou durante a entrevista, a gente não aprende muito sobre o jornalismo de dados, a gente não fala muito sobre esses dados abertos. Você acredita que, nessa última década principalmente, a gente está tendo uma redescoberta do fazer jornalismo? Porque a proposta que o trabalho da Data Labe traz é uma proposta que a gente não aprende na faculdade. É claro que tem alguns traços que é do Jornalismo mesmo, apuração, entrevista, saber, você conhecer o local onde você está produzindo o conteúdo, mas tem isso que é novo e que você aprende na prática. Você acredita que está tendo uma redescoberta? Um jornalismo que a gente não vê tanto dentro da sala de aula, mas que aqui fora está tendo e está crescendo?

[01:08:34] Gilberto: É, eu acho que tem, de fato, uma lacuna entre o que está acontecendo na universidade e o que está acontecendo no campo do jornalismo, de fato. E aí eu acho que... mais uma vez, como vem acontecendo há alguns anos, o mundo vai dando um pouco o recado para os currículos, vai dando um pouco o recado para a universidade, do tipo "olha, precisa acordar". É muito inadmissível que os cursos de jornalismo não entendam a importância e a centralidade que tem o jornalismo de dados hoje. Então, eu acho que está rolando no mundo real, de fato, uma redescoberta do que é fazer Jornalismo. Eu acho que ainda mais agora, nessa crise democrática que a gente está vivendo, é muito difícil fazer Jornalismo profissional, porque a gente começou a disputar o campo do Jornalismo com quem começou a entender também que o Jornalismo era inventar realidades, o que de fato é um pouco, mas ao mesmo tempo de forma muito irresponsável, de forma muito violenta, de forma muito desleal. Então, eu acho que a gente está num momento muito crítico para o Jornalismo do ponto de vista crítico e efervescente, que eu quero dizer. Eu acho que se teve um momento que era da minha formação, porque durante a minha formação as pessoas falavam assim: "o jornalismo está morrendo, o jornal está morrendo e as pessoas agora só vão escrever em blogs", na minha época era isso, o medo era esse. Dez anos depois, mais de dez anos, a gente já está entendendo que o problema não é esse. Esse problema foi se transformando numa coisa maior, que as pessoas estão se informando cada vez mais. A internet foi capaz de fazer com que as pessoas se informassem cada vez mais. E existe um monopólio da informação, como sempre existiu, só que agora ele está mais difuso, agora é mais difícil, justamente por conta dos dados, justamente porque agora as grandes corporações têm controle sobre os dados e quem está produzindo conteúdo está produzindo para nichos muito específicos que estão vendendo seus dados sem saber e consumindo informação sem saber. Porque antes você tinha assim, "ah, eu escolho o canal que eu olho, eu escolho o site que eu vejo", e agora a informação simplesmente chega para você através das plataformas. Você lê o que chega para você no Facebook, o que chega para você no Instagram, o que chega para você no Twitter. Então assim, a gente está refém dos algoritmos que definem o que a gente lê, o que a gente acessa de informação. E quem está produzindo essa informação está refletindo sobre isso, está nesse campo um pouco de saber onde está pisando, de decidir se fala disso ou se fala daquilo, se apura bem ou se apura mal. Então, eu acho que, de fato, tem rolado um reposicionamento do campo do jornalismo justamente por causa disso, porque a gente está lidando com novas camadas, com novas... com novas perspectivas de produção de conteúdo. Entende o que eu quero dizer? Não sei se eu estou viajando muito, mas é isso. Como se eu sou jornalista hoje, eu preciso entender que eu estou escrevendo para um público específico o que eu quero que ele entenda. As pessoas compram bases de dados, as pessoas compram mailings e dizem "cara, eu quero falar para essa pessoa específica aqui". E aí o que quem está produzindo o conteúdo quer falar é muito específico, é muito direto. De certa forma, é isso que a gente está fazendo também. Mas eu acho que o que tem valido a pena, e aí é esse lado bom da coisa, para não ser apocalíptico, é que é possível falar para nicho, é possível falar sobre um grupo específico, mas em prol de alguma coisa que seja menos catastrófica, entendeu? Em prol de uma democracia mais plural, em prol da vida das pessoas, em prol de um mundo um pouco mais feliz, em prol de comunidades mais sustentáveis. Nesse mesmo campo de redescoberta do jornalismo, dos dados, da vigilância, é possível construir um mundo melhor, é possível construir um Jornalismo mais responsável, narrativas mais cuidadosas. Eu nem sei se eu respondi.


[01:14:22] Beatriz: Respondeu sim. O trabalho de vocês é incrível, é revolucionário, né? Agora eu vou fazer uma última pergunta, acho que vai ser a nossa última pergunta. Você pode falar para gente quais são os planos futuros do Data Labe? Quais são as expectativas, onde vocês querem chegar, se vocês querem continuar caminhando, caminhando, caminhando, como vai ser?

[01:14:52] Gilberto: A gente tem muitos planos. Este ano a gente conseguiu começar a construir essa equipe mais organizada, maior. Então a ideia para o ano que vem é que a gente consolide essa estrutura, como eu falei para vocês, hoje tem uma estrutura de comunicação, estrutura de dados, uma estrutura do CocôZap, uma estrutura administrativa. Então, a ideia é que a gente consolide um pouco essas áreas, que a gente siga produzindo muito conteúdo, que a gente siga estabelecendo essas caixas de forma mais consciente para dentro e também para fora - que são essas caixas da produção de conteúdo, dos eventos, da produção de dados, da análise de dados, de consultorias que tenham a ver com essas coisas de dados e tal, e dessa parte política, de advocacy, de incidência política e tal. A ideia é continuar fazendo o que a gente está fazendo, mas cada vez mais de forma cada vez mais profissional, de forma cada vez mais cuidadosa, atenta para o que está acontecendo. A ideia não é ser um veículo de hard news, de coberturas muito quentes sobre o cotidiano, sobre a vida, mas que a gente siga falando do que interessa, que a gente siga falando sobre a gente, que a gente siga informando mais gente, falando por aí. Que a gente diversifique um pouco mais essas vozes que falam sobre o Jornalismo, que falam sobre os dados, que falam sobre a favela, que falam sobre gênero. A ideia é um pouco essa, a gente tem uma perspectiva garantida para mais dois anos de operação, então tem muito mais coisa para acontecer e tal. Então, acho que pelo menos esses dois anos aí, eu acho que a gente está garantido para seguir fazendo o que a gente está fazendo hoje, mas de forma mais organizada. Eu acho que o grande desafio do Data Labe hoje é isso, se manter organizado nesse contexto. Como ser uma organização, como ser uma organização da sociedade civil, um veículo de comunicação, como ser uma organização de mídia no Brasil hoje, com todas as burocracias, com todas as questões éticas, jurídicas e ao mesmo tempo estéticas, sabe? Nesse mundo tão caótico, nesse Brasil tão fudido. Eu acho que é um desafio grande, que é o que eu acho que a gente vai seguir fazendo pelos próximos anos.


[01:17:55] Thalita: Muito obrigada, Gilberto, pela entrevista. Foi maravilhoso. Aqui ficou bem claro que esse é um trabalho árduo, é um trabalho de formiguinha mesmo, é detalhe minucioso. Coisinhas bem pequenas que fazem a diferença no final. É um trabalho incrível, muito bacana de conhecer. Influencia e inspira muita gente que está na faculdade ainda a sair de lá, de dentro da sala de aula e produzir mesmo.

[01:18:26] Beatriz: Sair dessa caixinha, né?

[01:18:28] Thalita: Sair dessa caixinha e ver que... Vamos encarar aqueles dados. Vamos cavar tudo ali para encontrar mesmo, porque tem respostas, né? A gente só precisa aprimorar, a gente só precisa melhorar o nosso olhar. Muito, muito obrigada, mesmo

[01:18:51] Beatriz: Espero que vocês continuem por muitos anos. Realmente é muito inspirador o trabalho de vocês. Eu vejo como revolucionário, não só para o público em geral que vai ter acesso a esse conteúdo, mas para a gente que é jornalista também, ainda mais a gente que, por coincidência, eu sou da Baixada de Mesquita e a Thalita aqui é de São Gonçalo, então assim, isso com certeza abre o nosso olhar e o trabalho de vocês é incrível. Eu espero que continue por muitos anos.

[01:19:18] Thalita: Vida longa.


[01:19:22] Gilberto: Vida longa. Obrigado vocês. E assim, segue lá a gente, publica, faz publicidade, compartilha, para gente chegar aí mais gente, chegarem mais gente aí onde vocês estão, eu acho que é um pouco sobre isso.












Comments


bottom of page