Repórter Brasil: jornalismo investigativo de alto calibre
- ReconfiguraƧƵes JornalĆsticas
- 2 de fev. de 2024
- 63 min de leitura
Por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle FonsecaĀ
11 de dezembro de 2020Ā
A Repórter BrasilĀ nasceu praticamente junto com o sĆ©culo XXI, em 2001, fundada pelo jornalista Leonardo Sakamoto, seu presidente atĆ© hoje, quando o jornalismo comeƧava a vislumbrar de maneira mais efetiva possibilidades de trabalho nas mĆdias digitais. O veĆculo surgiu com uma proposta que, atualmente, confirma-se como tendĆŖncia mais ampla do jornalismo no mundo, de ter uma linha editorial bem delineada, com um objetivo social claro e especĆfico (nĆ£o se trata de cobrir hardnews no dia a dia), sendo uma organização sem fins lucrativos, patrocinada por organizaƧƵes do terceiro setor (no site, hĆ” uma seção de transparĆŖncia, com informação sobre apoiadores e relatórios de atividades). Com foco inicialmente voltado somente para a cobertura de trabalho escravo, o veĆculo ampliou suas pautas ao longo dos anos para cobrir questƵes de terra, indĆgenas e de meio ambiente. Seu jornalismo investigativo, realizado de maneira minuciosa, foi reconhecido em inĆŗmeros prĆŖmios e houve muitas ocasiƵes em que reportagens do veĆculo, republicadas na grande mĆdia a partir de acordos firmados pela Repórter Brasil, tiveram repercussĆ£o nacional, como contou na entrevista Ana MagalhĆ£es, na Ć©poca coordenadora de jornalismo do site. A conversa foi realizada em 2020, pelo aplicativo zoom, no auge da pandemia.Ā Ā Ā
O jornalismo Ć© uma das frentes de atuação da Repórter Brasil,Ā que tambĆ©m possui um setor de documentĆ”rios, um de educação e outro de pesquisa. Ana MagalhĆ£es detalhou como sĆ£o os protocolos e os cuidados adotados em coberturas difĆceis e arriscadas que jĆ” fizeram frente a gigantes econĆ“micos como Starbucks e JBS, entre muitos outros. SĆ£o protocolos que tĆŖm como objetivo proteger os repórteres que atuam em campo, o próprio veĆculo de aƧƵes judiciais (cada vez mais frequentes, embora a Repórter BrasilĀ nunca perdido um processo, segundo a editora), alĆ©m de ser uma ação Ć©tica em relação Ć s empresas retratadas, jĆ” que as denĆŗncias de que sĆ£o alvo costumam ser gravĆssimas e delicadas. As reportagens sĆ£o publicadas somente depois de muitas checagens, sempre buscando reunir provas sólidas das acusaƧƵes. Mesmo realizando projetos com jornalismo de dados (como o RuralĆ“metroĀ e o aplicativo Moda Livre), "o DNA do site", de acordo Ana MagalhĆ£es, sĆ£o as reportagens em campo. A editora conta como o trabalho da Repórter BrasilĀ vem, ao longo dos anos, contribuindo para ampliar a percepção da gravidade de problemas sociais como o do trabalho escravo no paĆs.Ā
Transcrição da entrevista com Ana Magalhães, da Repórter Brasil
Coordenação do projeto ReconfiguraƧƵes JornalĆsticas: Profa. Rachel Bertol e Profa. Barbara EmanuelĀ
Universidade Federal Fluminense (UFF) - Departamento de Comunicação
Roteiro: Rachel Bertol, Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca
Realizada por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca
Edição: Filipe PavĆ£o (bolsista)Ā Ā
Transcrição, edição e revisĆ£o final: Rachel Bertol e Mateus Stƶgmüller (bolsista)Ā Ā
Clique aqui para acessar. o PDF da entrevista.
[00:12] Oi Ana, boa noite, primeiramente, eu queria comeƧar te agradecendo por vocĆŖ participar no projeto com a gente, cedendo um pouco do seu tempo. A Repórter BrasilĀ Ć© um veĆculo muito importante para a gente abordar aqui no nosso projeto.Ā
[00:29] Ana MagalhĆ£es:Ā Boa noite, eu que agradeƧo, Ć© uma honra e um prazer poder falarĀ um pouco do trabalho da Repórter Brasil e conversar com vocĆŖs, eu acho que Ć© uma interaçãoĀ importante e eu estou muito feliz por estar aqui. Muito obrigada pelo convite.Ā Ā
[00:42] EntĆ£o Ana, eu queria que vocĆŖ comeƧasse nos contando de onde vocĆŖ, seu nome completo, sua formação e o que te levou ao jornalismo.Ā
[00:52] Ana MagalhĆ£es:Ā Meu nome Ć© Ana MagalhĆ£es, eu nasci em Belo Horizonte, eu souĀ de Belo Horizonte, eu me formei em BH na PUC-Minas e quando eu era adolescente, ali pelos 13, 14 anos, eu tinha uma grande amiga na escola que falava assim, "Ana, eu te acho muito boa de comunicação, eu acho que vocĆŖ devia fazer vestibular para Comunicação". Foi a primeira vez que eu pensei nisso. Mas Ć© muito interessante, porque eu nasci numa famĆliaĀ muito... Eu ia usar a palavra culta, mas eu nĆ£o sei se esta Ć© a melhor palavra, mas muitoĀ interessada em notĆcias, que buscava sempre se informar e uma famĆlia com muitos bonsĀ hĆ”bitos de leitura. EntĆ£o, eu aos 13, 14 anos jĆ” comecei a ler jornal. Eu via meu pai e minhaĀ mĆ£e lendo o jornal todos os dias e eu achava legal e eu queria ler jornal e eu jĆ” gostava disso,Ā eu jĆ” lia um bocado quando era adolescente. E quando eu comecei a me preocupar mesmo emĀ fazer vestibular, assim, eu pensava muito em Jornalismo e eu pensava muito em História. E eu acho que, ao longo da minha formação, sem dĆŗvida nenhuma, o que me levou a,Ā principalmente me conduziu para o Jornalismo e eu nĆ£o tenho dĆŗvida nenhuma disso atĆ© hoje, era um desejo de mudar o mundo para melhor, de lutar por justiƧa social. Eu cresci numaĀ famĆlia com uma tendĆŖncia comunista, entĆ£o eu sempre me preocupei muito com a sociedade, com o coletivo e eu acho que isso interferiu na minha escolha profissional. E hoje,Ā trabalhando na Repórter Brasil, eu me encontrei muito profissionalmente porque é exatamente isso que a organização tambĆ©m quer. A missĆ£o da Repórter BrasilĀ Ć© denunciarĀ violaƧƵes de direitos humanos, violaƧƵes trabalhistas, violaƧƵes ambientais, violaƧƵes sociais,Ā com o objetivo de construir uma sociedade menos desigual, mais justa, com mais justiƧa social e essa sempre foi uma das minhas metas desde que eu era pequena e adolescente. EntĆ£o, acho que eu cheguei no momento da minha vida em que o meu desejo pessoal coincidiu com aĀ missĆ£o da organização onde eu trabalho. EntĆ£o, eu estou muito agradecida por isso, semĀ dĆŗvida nenhuma o meu o meu trabalho Ć© movido, o meu trabalho jornalĆstico Ć© movido porĀ um desejo de transformação social com vistas a que a gente tenha um mundo um pouco maisĀ justo e um pouco mais igualitĆ”rio.Ā
[03:46] Sem dĆŗvida, Ć© uma questĆ£o que a gente busca a cada dia, aindaĀ mais no mundo de hoje, nĆ©? Em 2001, foi criada a Repórter Brasil. Quando foi que vocĆŖ entrouĀ na organização, como seu trabalho lĆ” foi se modificando ao longo dos anos?Ā
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[04:03] Ana MagalhĆ£es: A minha história na RepórterĀ Ć© uma história muito interessante, porque euĀ acho que foi um encontro, mesmo, um grande encontro, sabe, entre os meus desejos pessoaisĀ e os desejos institucionais, as missƵes e metas institucionais da Repórter Brasil. Eu comecei na RepórterĀ em 2017, como freelancer. Me pediram uma reportagem como freelancer e eu fiz uma matĆ©ria, uma reportagem para eles como repórter freelancer mesmo. Eles gostaram e pediram uma segunda. Gostaram de novo e me pediram uma terceira. Foi bem interessanteĀ que logo, poucos meses depois, uns quatro meses depois, me fizeram uma proposta deĀ contratação, de eu ser contratada CLT na Repórter Brasil. A Repórter BrasilĀ trabalha comĀ freelancers, mas o time fixo dela Ć© todo CLT. E eu, imagina, eu amei a proposta. Eu jĆ” estavaĀ gostando muito de escrever para a Repórter, de trabalhar para a RepórterĀ como freelancer.Ā EntĆ£o, eu aceitei a contratação de CLT. Eu fui contratada como repórter e foi muitoĀ interessante a minha história na Repórter Brasil. Como eu acho que esse grande encontro,Ā meu pessoal, essa grande coincidĆŖncia minha pessoal com a missĆ£o da Repórter Brasil,Ā com a missĆ£o institucional dela, eu acabei crescendo muito rĆ”pido lĆ” dentro. Mas Ć© porque euĀ me identifiquei muito. Eu me lembro que quando eu entrei na Repórter, assim que eu fuiĀ contratada na Repórter, eu costumava falar para os meus amigos, eu costumava falar isso,Ā gente, eu estou no emprego dos meus sonhos. Eu tenho essa sensação ainda, tenho umaĀ sensação de que eu e a Repórter Brasil, a gente precisava se encontrar no mundo, sabe? E euĀ tive essa sorte, eu sou muito agradecida por isso. EntĆ£o, eu comecei como freela,Ā fiquei uns quatro meses como freela, logo depois eu fui contratada e pouco depois que eu fuiĀ contratada como repórter, alguns meses depois, uns quatro meses, cinco meses depois que euĀ estava contratada, o time de jornalismo da Repórter Brasil ele tinha que desenvolver umĀ especial multimĆdia que ia dar muito trabalho e a nossa entĆ£o coordenadora, que continuaĀ com a gente, que Ć© uma figura maravilhosa, chamada Ana Aranha, a nossa entĆ£oĀ coordenadora, ela estava cuidando de vĆ”rios outros projetos grandes e ela meio que passou para mim pouco a pouco a responsabilidade de tocar esse especial multimĆdia, que vocĆŖs conhecem ele, ele se chama RuralĆ“metro, a gente publicou ele em janeiro de 2018. EntĆ£o ali, por outubro, setembro, por agosto ou setembro de 2017, eu estava hĆ” pouco tempo na Repórter, a Ana Aranha me faz essa proposta de eu assumir mais responsabilidades noĀ desenvolvimento do RuralĆ“metro. E o RuralĆ“metro Ć© outro projeto que, com o qual eu me encontrei muito. Era um projeto que foi, o RuralĆ“metro ele foi um projeto desenvolvido pela equipe da Repórter Brasil, foi a equipe da Repórter, eu incluĆda, que tivemos a ideia doĀ projeto, do que a gente queria, a gente queria fazer uma discussĆ£o com a polĆtica tambĆ©m. No RuralĆ“metro a gente pega os 513 deputados federais brasileiros e analisa como eles votaram, em medidas e projetos de lei que tĆŖm um impacto socioambiental para os povos do campo. E aĆ eu mergulhei de cabeƧa no RuralĆ“metro, era um projeto que eu amava e eu mergulhei de cabeƧa e eu acabei me tornando a coordenadora do RuralĆ“metro. EuĀ acabei gestionando uma equipe de 12 pessoas, Ć©ramos 12 pessoas, eu acabei gestionando uma equipe de 11 pessoas no RuralĆ“metro. E, eu nĆ£o sei, eu imagino que eu tenha desenvolvido bem essa função, porque, pouco depois do RuralĆ“metro, a Ana Aranha me fez uma proposta de eu virar a coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil. Eu fiquei muito lisonjeada com essa proposta, naturalmente, muito certa de que a Repórter BrasilĀ tinha muito a ver comigo e eu tinha muito a ver com a Repórter BrasilĀ e aĆ eu pedi para Ana Aranha para pensar, porque eu era repórter entĆ£o e de repente eu ia virar uma coordenadora. Eu sabia que era um cargo de extrema responsabilidade, eu sabia que nĆ£o era um cargo fĆ”cil, porque, Ć© o cargo que eu ocupo hoje, Ć© um cargo muito delicado, Ć© um cargo muito desafiador,Ā porque, como coordenadora do jornalismo, a gente termina desenvolvendo duas funƧƵes, euĀ acho. Uma função, que Ć© muito mais ligada ao jornalismo, de ser editora, de pensar aĀ cobertura, de orientar repórteres, de melhorar texto, de articular com veĆculosĀ republicadores. Ć uma função mais jornalĆstica. Mas tambĆ©m hĆ” uma função da coordenadora de jornalismo, que eu executo hoje, que Ć© a função mais ligada Ć gestĆ£o de projetos e captação de recursos, captação de financiadores. E nesse universo eu nĆ£o tinha nenhuma experiĆŖncia. No universo jornalĆstico eu jĆ” tinha uma boa experiĆŖncia, eu jĆ” tinha mais seguranƧa para trabalhar como editora e etc. e tal. No entanto, nesse universo de captação e gestĆ£o de orƧamento, gestĆ£o de pessoas, gestĆ£o de projeto, eu era totalmente inexperiente. EntĆ£o, naquela ocasiĆ£o, ali, inĆcio de 2018, o que eu pedi para Ana Aranha, que havia feito essa proposta, a antiga coordenadora, o que eu pedi para ela foi um tempo para eu pensar e eu pensei durante um tempo longo, eu fiquei um mĆŖs pensando nessa proposta. Durante essa temporada eu escutei vĆ”rias pessoas que eram importantes para mim sobre o que elas achavam, vĆ”rios amigos, minha famĆlia e etc. E aĆ, sim, eu decidi que era uma proposta muitoĀ irrecusĆ”vel, digamos, que eu nĆ£o poderia deixar passar essa oportunidade. E aĆ eu faƧo uma contraproposta para Ana, que era de que durante, como era um cargo muito novo para mim, com uma função muito nova para mim, digamos, sobretudo essa função de captação de recursos e de gestĆ£o de projetos, eu sugeri a gente fizesse uma lenta transição, de uma coordenadora para outra, e que durante um tempo nós duas fĆ“ssemos co-coordenadoras e a Ana aceitou, eu acho que isso encaixou bem para a Repórter Brasil, acho que foi legal a gente ter feito isso. EntĆ£o, em julho de 2018, eu e Ana Aranha, somos duas āAnasā para aĀ gente para facilitar a vida, eu e a Ana Aranha ficamos como co-coordenadoras, as duas juntas. E aĆ, em 1Āŗ de janeiro de 2019 do ano passado, eu jĆ” assumo como a coordenadora principal. E aĆ hoje, analisando para trĆ”s, eu acho que foi muito interessante de fato esse perĆodo de co-coordenação. Foi um perĆodo em que a Ana pĆ“de me ensinar uma sĆ©rie de coisas, me mostrar na prĆ”tica os desafios desse cargo, me ensinar uma sĆ©rie de coisas, me apresentar uma sĆ©rie de pessoas que eu pensava conhecer. Foi incrĆvel, nĆ©? E aĆ agora eu estou na coordenação desde entĆ£o atĆ© hoje, ou seja, no frigir dos ovos, eu tenho quatro anos deĀ Repórter Brasil.Ā Ā
[12:11] Eu vou aproveitar, eu vou entrar nessa questĆ£o, entĆ£o, do RuralĆ“metro, que jĆ” tinha uma pergunta sobre. O RuralĆ“metro Ć© um projeto que ele possui uma forte base de jornalismo de dados, que Ć© um outro recurso que o jornalismo usa bastante, principalmente nas mĆdias digitais hoje em dia. E eu queria saber como foi realizar esse projeto, se vocĆŖs pensam em repetir nessas eleiƧƵes agora de 2020, que estĆ£o bem perto,Ā e o quĆŖ que vocĆŖs mudariam, se fosse o caso. Ā
[12:41] Ana MagalhĆ£es:Ā Ćtima pergunta. Sim, a boa notĆcia que nós temos Ć© que, sim,Ā faremos um novo RuralĆ“metroĀ em 2022, pretendemos lanƧƔ-lo atĆ© junho ou julho eĀ justamente para pegar as eleiƧƵes majoritĆ”rias de outubro de 2022. EntĆ£o sim, nós faremosĀ novamente o RuralĆ“metro, e⦠acho que esqueci da primeira pergunta... Ah! Os desafios.Ā Como foi fazer, nĆ©? Nossa, foi um projeto muito desafiador, eu acho que talvez tenha sido umĀ dos maiores projetos e ferramentas de consulta especiais multimĆdias feitas pela RepórterĀ BrasilĀ nesses Ćŗltimos dez anos, pelo menos. Ć um projeto grande, que envolveu umaĀ equipe grande. Ć muito interessante porque nossa equipe era multidisciplinar. Ć legal quando a gente tem oportunidade de executar um projeto que conta com a colaboração de profissionais de vĆ”rias Ć”reas diferentes. Isso Ć© muito enriquecedor. Na nossa equipe, tĆnhamos os jornalistas, mas tĆnhamos designer, tĆnhamos atĆ© um cientista polĆtico, que nos ajudou, tĆnhamos atĆ© um estatĆstica em matemĆ”tica nos ajudando a fazer e jornalismo de dados especializadoĀ em cruzamentos. E foi um projeto incrĆvel, eu sou muito suspeita para falar, sou muito orgulhosa do RuralĆ“metro, tenho um envolvimento muito Ćntimo com o RuralĆ“metro, euĀ acompanhei o RuralĆ“metro do princĆpio ao fim. Eu costumo brincar que ele Ć© um filho meu, assim, de certa maneira. NĆ£o só meu, mas de todo o time da RepórterĀ ali. Mas fui eu queĀ assumi mais a frente de cuidar do RuralĆ“metro. Ć muito gratificante, quente mexer com jornalismo de dados, muito desafiador tambĆ©m. Só para vocĆŖs terem uma ideia. Eu chamo o RuralĆ“metro carinhosamente de Rura, tĆ”? Tem um momento no Rura que... O que a gente faz no RuralĆ“metro? A gente tenta pontuar e avaliar a atuação dos deputados federais brasileiros de acordo com como eles votam em medidas que impactam povos do campo e quais os projetos que lei que eles propuseram que impactam os povos do campo ou o meio ambiente de alguma forma. Para a gente fazer esse levantamento, teve um momento em que eu e um assistente meu, um jornalista colega nosso, a gente analisou trĆŖs mil votaƧƵes que aconteceram na CĆ¢mara dos Deputados na Ćŗltima legislatura, de 2015 a 2018. TrĆŖs mil votaƧƵes. Eu e o Gui Zocchio, nós sentamos em um momento e analisamos trĆŖs mil votaƧƵes paraĀ entender quais tinham impactos no campo ou nĆ£o. EntĆ£o, Ć© um trabalho de formiguinha. Tem alguns trabalhos no jornalismo de dados que sĆ£o trabalhos de formiguinha, que vocĆŖ vaiĀ garimpando e analisando um grande volume de informaƧƵes. Ć claro que tem, existem hoje, eĀ isso Ć© muito revolucionĆ”rio no jornalismo, de certa maneira, Ć© muito revolucionĆ”rio hĆ” um tempo, existem jornalistas especializados em cruzar dados, ou extrair dados, de pegarĀ grandes volumes de informação e cruzar um dado com o outro. EntĆ£o, a gente tinha oĀ Reinaldo Chaves fazendo esses cruzamentos, mas nem sempre Ć© possĆvel vocĆŖ automatizarĀ alguns processos. Alguns processos eles terminam sendo manuais, acaba tendo um trabalhoĀ de uma equipe sentando e analisando trĆŖs mil votaƧƵes e entendendo se aquelas tĆŖm impactoĀ ou nĆ£o nos povos do campo. EntĆ£o, eu acho que foi um trabalho incrĆvel, muito gratificante. E eu acho que o mais gratificante Ć© que o RuralĆ“metro acabou incentivando e inspirando outrosĀ projetos que estĆ£o por aĆ, tipo o Elas no Congresso, que tem esse mesmo repórter doĀ programa, só que focado na questĆ£o de gĆŖnero, na questĆ£o da mulher e da representatividadeĀ da mulher. Enfim, foi uma experiĆŖncia incrĆvel, mas eu jĆ” destaco para vocĆŖs que o jornalismoĀ de dados Ć© bem desafiador e Ć© interessante que vocĆŖ ter um especialista dessa Ć”rea junto,Ā trabalhando junto com vocĆŖ, porque sĆ£o trabalhos muito complementares. E Ć© isso, oĀ RuralĆ“metro acabou contando com a colaboração de 12 pessoas e eu acho que a gente foi uma equipe muito multidisciplinar que acabou agregando muito ao projeto. EntĆ£o, estamos aĆ, jĆ” nos preparativos para 2022.Ā
[17:43] E como vocĆŖ acha que os leitores da Repórter BrasilĀ receberamĀ essas visualizaƧƵes dos dados que vocĆŖs fizeram?Ā
[17:53] Ana MagalhĆ£es:Ā Muito interessante tua pergunta, novamente. A gente quebrou muito a cabeƧa para que o RuralĆ“metro fosse um projeto para entender. Muito. O tempo todo o trabalho da equipe era quebrar a cabeƧa de qual o jeitoĀ mais fĆ”cil do nosso leitor entender o RuralĆ“metro, entender essas informaƧƵes que estĆ£o aqui, entender o potencial da ferramenta, entender esse monte de informação que estÔ jogada ali. O RuralĆ“metro tem milhares de informaƧƵes, tem milhares de layers de informação, e eu entendo que isso pode ser um pouco confuso ou um pouco assustador para um leitor que nĆ£o estĆ” acostumado. A gente quebrou muito a cabeƧa para que ele fosseĀ muito fĆ”cil de usar. Se a gente conseguiu cumprir isso, eu nĆ£o consigo nem te dar com certeza.Ā Eu sim, sei, que para algumas pessoas, eu me lembro que, na Ć©poca que eu lancei o RuralĆ“metro eu era casada e eu mostrei para o meu ex-marido, ele nem era jornalista, ele era historiador, eu joguei para ele e "me fala o que vocĆŖ entende, o que vocĆŖ acha que vocĆŖ, por onde vocĆŖ clica". Eu fui testando ele por onde ele navegava no Rura. E, bom, ele era um historiador muito interessado nesse assunto, entĆ£o ele estava muito interessado em explorarĀ aquela ferramenta. E foi muito interessante que no teste que fiz com ele, ele entendeu muito bem,Ā ele foi fuƧando, foi entendendo e foi bem interessante. Mas depois que o RuralĆ“metro foiĀ publicado, eu tive o feedback de algumas pessoas assim: "Ai Ana, eu mostrei para o meu pai eĀ minha mĆ£e, eles sĆ£o pessoas um pouco mais simples, mais humildes, eu percebi que eles tiveram um pouco de dificuldade de entender o que era aquilo ali, eu tive que explicar um pouco", entĆ£o, eu acho que o Rura talvez tenha falhado um pouco nisso, ele poderia ter tentado ainda mais simples, mas jĆ” garanto para vocĆŖs que a gente quebrou muito a cabeƧa para facilitar o mĆ”ximo possĆvel, para ser intuitivo e fĆ”cil de usar. Teve uma experiĆŖncia interessante que a gente fez que Ć© antes de lanƧƔ-lo, isso Ć© uma coisa rara no jornalismo, mas antes de lanƧƔ-lo, nós mandamos o RuralĆ“metro para umas cinquenta pessoas que eram mais ou menos próximas a nós, que nunca tinham visto o RuralĆ“metro antes e fizemos uma pesquisa com essas pessoas para entender o que elas estavam achando, o quĆ£o difĆcil era entender, oĀ quĆ£o fĆ”cil era entender, o quĆ£o fĆ”cil era navegar, o quĆ£o difĆcil era navegar. O feedback que a gente teve dessas pessoas foi interessante, foi bem interessante. Eu percebi que oĀ RuralĆ“metro nĆ£o era uma ferramenta tĆ£o difĆcil de ser usada e de ser compreendida, mas, outra vez, eu testei em pessoas que sĆ£o mais ou menos parecidas comigo, eu nunca cheguei aĀ testar o RuralĆ“metro pegando uma pessoa da periferia de SĆ£o Paulo, por exemplo, ou uma pessoa do interior de Minas Gerais, que saiba usar o computador, mas que nĆ£o tenha necessariamente tanta desenvoltura nesse universo. Esse teste eu realmente nĆ£o fiz, mas no frigir dos ovos, eu acho que o RuralĆ“metro nĆ£o Ć© uma ferramenta tĆ£o difĆcil assim de ser usada, eu acho que ele conseguiu. Ele poderia ser mais acessĆvel? Poderia, mas eu acho que no geral eleĀ conseguiu cumprir bem a missĆ£o dele de que as pessoas conseguissem navegar e soubessem mais ou menos por onde elas estĆ£o navegando. Eu acho que nĆ£o tiramos nota dez nesse quesito, acessibilidade e facilidade de entendimento, mas acho que a gente passou nessaĀ prova, tirando um pouco mais de seis, talvez. Eu respondi sua pergunta? [a entrevistadora responde no vĆdeo afirmativamente com um gesto de cabeƧa, em silĆŖncio] Boa.Ā
[22:00] EntĆ£o, Ana, aproveitando esse ponto que vocĆŖ falou sobre acessibilidade, vocĆŖ falou sobre os pĆŗblicos e como Ć s vezes Ć© difĆcil atingir determinados pĆŗblicos e tudo mais, vocĆŖ acha que aĀ Repórter BrasilĀ consegue atingir pĆŗblicos que Ć s vezes nĆ£o tĆŖm um fĆ”cil acesso a essa comunicação digital e que poderiam tambĆ©m se beneficiar dessasĀ informaƧƵes que sĆ£o Ćŗteis para muitas pessoas que nĆ£o tĆŖm ciĆŖncia disso, mas tambĆ©m para quem vivencia algumas [dessas] coisas de perto. VocĆŖ acha que a R.B.Ā tambĆ©m consegueĀ atingir esse objetivo?Ā
[22:42] Ana MagalhĆ£es: Olha, eu acho que a gente tem trabalhado duramente para ampliarĀ o alcance do nosso trabalho, para que ele seja facilmente entendĆvel. A gente trabalha duroĀ nesse aspecto todo tempo, nem sempre os temas que a gente aborda sĆ£o simples e de fĆ”cilĀ compreensĆ£o, mas a gente faz um esforƧo muito grande por meio por meio de materiaisĀ complementares, como artes e grĆ”ficos, para tentar deixar isso mais claro para o leitor. Sempre foi uma meta estratĆ©gica na Repórter BrasilĀ de que nosso texto seja muito acessĆvel eĀ entendĆvel para qualquer pessoa, que ele possa atingir um pĆŗblico amplo. Em 2017, eu estava entrando na Repórter Brasil, a gente jĆ” tinha comeƧado a fazer uma estratĆ©gia em termos de audiĆŖncia que era o seguinte, a gente comeƧou em 2017 a fazer parcerias com grandes veĆculos brasileiro para comeƧar a republicar o conteĆŗdo da Repórter Brasil nessesĀ veĆculos e hoje essas parcerias de republicação estĆ£o muito consolidadas. Quais sĆ£o os principais veĆculos que nos republicam? UOL, que Ć© o maior portal jornalĆstico do paĆs; Folha deĀ S.Paulo, que se nĆ£o me engano ainda Ć© o jornal mais lido do Brasil; Carta Capital, El PaĆsĀ Brasil. SĆ£o alguns deles, tĆ”? EntĆ£o, como Ć© que funciona, a Repórter BrasilĀ faz umaĀ reportagem com o olhar dela, com a linha editorial dela, dentro dos temas que ela cobre.Ā Quando essa reportagem estĆ” pronta, a gente oferece para o UOL e pergunta se o UOL temĀ interesse em republicar aquele material. Ć de graƧa, nĆ£o hĆ” dinheiro envolvido nessa parceria, Ć© uma parceria win-win, Ć© bom para o UOL e Ć© bom para a Repórter BrasilĀ e o queĀ acontece hoje na Repórter? Eu te diria que mais ou menos 85%Ā das nossasĀ reportagens sĆ£o republicadas nesses veĆculos, hoje principalmente FolhaĀ e UOL. Eu acho que essa experiĆŖncia Ć© muito rica para a Repórter. O que a gente quer com essas parcerias de republicação? A gente quer atingir um pĆŗblico mais amplo e sobretudo um pĆŗblico mais variado. Se vocĆŖ pensar que o UOL Ć© o portal mais lido do Brasil, a gente estĆ” falando de milhares e milhares de cliques por dia no portal UOL. EntĆ£o, quando a gente publica no UOL... E o UOL tem um viĆ©s muito interessante, como Ć© um portal muito grande e tem gente de todo tipo lendo, gente de esquerda, gente de direita, gente do interior, gente de grandes cidades. Tem uma grande variedade de tipos de pessoas lendo UOL, ele jĆ” necessariamente tem uma linguagem mais simples e mais clara para o pĆŗblico amplo e nós tambĆ©m temos essa linguagem. EntĆ£o, foi uma parceria perfeita. EntĆ£o, eu acho que por meio dessas parcerias, Gabrielle, a gente acaba, sim, atingindo pĆŗblicos variados, mas, agora vocĆŖ tem razĆ£o nessa sua pergunta, quando vocĆŖ analisa os leitores que estĆ£o clicando no site da Repórter Brasil, a gente tem um nĆŗmero muito bom de cliques no nosso site anualmente, anualmente chega a 3 milhƵes, 3,5 milhƵes de cliques no nosso site. Ć um nĆŗmero relativamente alto para esse universo do jornalismoĀ independente, nĆ£o Ć© um nĆŗmero que eu ignoro. EntĆ£o temos pessoas, temos leitores fiĆ©is que entram no nosso site, que clicam, que nos acompanham, que nos acompanham nas redes.Ā Temos um pĆŗblico fiel, digamos, mas jĆ” sabemos que esse nosso pĆŗblico fiel, que entra no site, a gente jĆ” entende que ele tem um perfil, ele jĆ” tem uma escolaridade um pouco mais alta do que a mĆ©dia, digamos que Ć© um pĆŗblico mais qualificado, mas quando essa mesma matĆ©ria que estĆ” no meu site, estĆ” no UOL, muitas vezes a gente "manchetou" o UOL, a genteĀ foi manchete do UOL vĆ”rias vezes, inĆŗmeras vezes a gente "mancheta" o UOL, e aĆ eu tenho uma ideia de que a gente estĆ” atingindo um pĆŗblico muito maior do que a gente pensa, na verdade, por meio dessas parcerias com esses veĆculos. EntĆ£o, eu acho que a história Ć© essa, oĀ nosso leitor do site Ć© um leitor mais qualificado, mais fiel e menor, mas essas parcerias nos permitem ampliar esse pĆŗblico e ampliar nossa perspectiva de impacto. A gente quer fazer um jornalismo investigativo, a gente quer fazer nĆ£o, a gente faz um jornalismo investigativo de impacto, ou seja, queremos impactar o mundo, a gente quer transformar a realidade. Acho que Ć© por aĆ.Ā
[00:27:51] Legal, Ana. E acho que como vocĆŖ falou, isso Ć© muito importante quando a gente atinge um pĆŗblico variado mesmo e acho que essa iniciativa do UOL realmenteĀ abre portas para vocĆŖs terem um pĆŗblico bem mais amplo que eu imagino que seja um poucoĀ diferente de quem acessa diretamente o site da Repórter Brasil.Ā
[28:10] Ana MagalhĆ£es:Ā Posso só fazer um comentĆ”rio rĆ”pido, Gabrielle? Ć atĆ© interessanteĀ essa historia do UOL e da nossa parceira com o UOL porque jĆ” aconteceu antes de a gente dar um furo nosso, um furo de reportagem nosso que sai junto com o UOL, que repercute naĀ imprensa inteira, mas as pessoas acham que Ć© um furo do UOL, entendeu? Só um leitor atento percebe que na verdade Ć© um furo da Repórter Brasil. E isso jĆ” aconteceu vĆ”rias vezes. Por exemplo, nĆ£o sei se vocĆŖ se lembra no ano passado, na Ć©poca que os brigadistas de Alter do ChĆ£o foram presos, nós soltamos junto com o UOL, em parceria com o UOL, um Ć”udio do prefeito de SantarĆ©m que desmentia a tese de que os culpados pelo incĆŖndio lĆ” em Alter do ChĆ£o eram os brigadistas. Cara, essa matĆ©ria nossa foi para o FantĆ”stico, ela repercutiu em todos os lugares do Brasil, todos. Assim, eu vi a GloboNews citando essa matĆ©ria, eu me lembroĀ que a GloboNews foi muito correta e falou āsegundo a Repórter Brasilā, mas euĀ lembro que, por exemplo, quando um desses brigadistas de Alter de ChĆ£o ou aquele cara daĀ ONG de āDoutores da Alegriaā, quando ele foi para o āRoda Vivaā, uma das jornalistas perguntaĀ para ele sobre o tal Ć”udio do prefeito e ela fala "ai, eu acho que foi um furo do UOL". NĆ£o, nĆ£o foi um furo do UOL, foi um furo da Repórter BrasilĀ que o UOL republicou. Mas tudo bem, a gente nĆ£o fica enciumado quando isso acontece porque o que a gente quer Ć© isso, eu quero que essa noticia, que ela tenha o mĆ”ximo de impacto possĆvel e se ela estĆ” indo para oĀ āRoda Vivaā, esse assunto estĆ” indo para o āRoda Vivaā, eu jĆ” fico feliz, entende. Só queriaĀ fazer esse comentĆ”rio.Ā
[30:02] Legal, Ana. Eu acho que condiz muito tambĆ©m com a visĆ£o daĀ própria R.B.Ā que vocĆŖ falou, nessa questĆ£o de realmente. Ć um objetivo muito maior do que apenas o nome.Ā
[30:13] Ana MagalhĆ£es:Ā Exato. A marca em si, claro que a gente estĆ” preocupado comĀ nosso nome e com nossa marca, mas a gente quer transformar o mundo. EntĆ£o, se as nossasĀ notĆcias estĆ£o circulando por aĆ, eu estou feliz. Se ela estĆ” gerando impacto, gerandoĀ investigaƧƵes, gerando denĆŗncias, gerando mudanƧas, estamos cumprindo a nossa missĆ£o.Ā Acho que Ć© isso.Ā
[30:36] Eu queria aproveitar que vocĆŖ falou um pouquinho sobre maneiras de tornar as reportagens mais acessĆveis e falar um pouquinho dos formatos com os quais vocĆŖs trabalham. VocĆŖs hoje tĆŖm podcasts, tambĆ©m fizeram muitos documentĆ”rios e tĆŖm vĆ”rios prĆŖmios. EntĆ£o eu queria entender como Ć© para vocĆŖ trabalhar com esses formatos diferentes e qual a importĆ¢ncia deles para tornar esses conteĆŗdos mais pulverizados e acessĆveis.Ā
[31:09] Ana MagalhĆ£es:Ā Perfeito. AĀ Repórter BrasilĀ tem quatro nĆŗcleos dentro dela. EuĀ gosto de explicar isso primeiro porque nem todo mundo entende. Um dos nĆŗcleos Ć© o nĆŗcleoĀ de jornalismo. A gente tem o nĆŗcleo de documentĆ”rios que nĆ£o Ć© tocado por mim, Ć© tocadoĀ pelo Carlos Juliano Barros que Ć© um documentarista brilhante. A gente tem um braƧo maisĀ ONG, mais educacional, Ć© o programa "Escravo Nem Pensar", que faz formação de professores, e a gente tem um braƧo mais voltado para pesquisa, que vai a campo e faz pesquisa em campo, escreve mais relatórios. EntĆ£o, todo esse trabalho que vocĆŖ estĆ” dizendo, muitas vezes ele nĆ£o Ć© tocado pela agĆŖncia de jornalismo que Ć© coordenada por mim, pode ser tocada porĀ outro nĆŗcleo, mas sim, a gente sempre teve muita preocupação e a gente costuma dizer que o que a Repórter BrasilĀ faz Ć© comunicação, nĆ£o Ć© só jornalismo, Ć© comunicação, no sentido mais amplo, digamos. E aĆ, foi este ano que a gente lanƧou nossos podcasts, a gente lanƧou duas sĆ©ries de podcasts, um pouco diferentes entre si. Foi muito interessante a experiĆŖncia do podcast porque a gente reparou que, com o podcast, nós estamos atingindo um novo tipo deĀ pĆŗblico que nĆ£o necessariamente lĆŖ nossas reportagens ou vĆŖ nossos documentĆ”rios e isso é muito interessante para a organização. Ć isso mais ou menos o que a gente quer. Mas sim, a Repórter BrasilĀ tem uma longa tradição em documentĆ”rios, a gente tem documentĆ”rios premiadĆssimos, com prĆŖmios internacionais. Desde 2012, tem dez anos que a gente faz longas, documentĆ”rios de longa-metragem. TambĆ©m fazemos na agĆŖncia de jornalismo o que a genteĀ chama de mini documentĆ”rios que sĆ£o vĆdeos muito mais curtos, muitas vezes de quatro minutos, cinco minutos. Houve uma Ć©poca que esses nossos vĆdeos viralizavam, com cinco milhƵes de cliques e tal. E tambĆ©m, dentro do universo de reportagem, a gente tem diferentes tipos deĀ trabalho. A Repórter,Ā ela tambĆ©m tem uma tradição muito interessante em fazer duas coisas: especiais multimĆdias, que Ć© uma pĆ”gina que tenta trazer o leitor para uma imersĆ£o maior usando vĆ”rios recursos, usando vĆdeos, usando Ć”udios, usando texto, usando fotos, usando imagens, usando grĆ”ficos, usando movimento. E a gente tem tambĆ©m uma longa e antiga tradição de fazer uma coisa que chamo de ferramentas de utilidade pĆŗblica, porque para mim tecnicamente elas nĆ£o sĆ£o um especial multimĆdia. Por exemplo, o RuralĆ“metro Ć© uma ferramenta de jornalismo de dados e ele Ć© uma ferramenta que tem uma utilidade pĆŗblica. VocĆŖ entra ali e vocĆŖ consegue ter uma visĆ£o de como estĆ” sendo o trabalho de algunsĀ parlamentares brasileiros e se vocĆŖ quer votar novamente naquele cara que estĆ” se candidatando Ć reeleição. Parecido com o RuralĆ“metro a gente tem o Moda LivreĀ tambĆ©m, que Ć© um aplicativo que tem um site, Ć© um aplicativo de celular em que a gente meio que pontua vĆ”rias marcas da moda sobre como e quĆ£o transparente elas sĆ£o e quĆ£o respeitosas elas sĆ£o no universo, no que tange Ć s condiƧƵes trabalhistas do universo tĆŖxtil. E eu acho que Ć© muito interessante porque essa tradição de multimĆdias e de ferramentas de consulta deĀ utilidade pĆŗblica sĆ£o um baita de um diferencial da Repórter Brasil. Eu acho que nĆ£o por acaso a gente acaba de ser premiado pelo prĆŖmio Vladimir Herzog pelo especial multimĆdia. Acho que Ć© um diferencial da Repórter BrasilĀ e eu acho que a ideia Ć© essa. O que a RepórterĀ faz Ć© comunicação de vĆ”rias formas, vĆ”rios tipos, formas diferentes, buscando amplidĆ£o deĀ pĆŗblico e impacto mesmo. Eu acho que a ideia Ć© essa.Ā
[35:36] VocĆŖ falou bastante sobre esses projetos que vocĆŖs tĆŖm, que sĆ£o realmente bem diferentes, e tem um que Ć© muito legal, que a gente tinha separado paraĀ conversar com vocĆŖ que Ć© o RobotoxĀ [bot desenvolvido para o antigo Twitter em 2019 no projeto Por trĆ”s do alimento, parceria entre a Repórter BrasilĀ e a AgĆŖncia PĆŗblica]. VocĆŖs criaram basicamente um robĆ“ do bem, projeto super legal, e ele tweeta toda vez que o governo federal libera algum registro deĀ agrotóxico etc. Como tem sido essa experiĆŖncia? Eu acho que Ć© um recurso bem diferente dentro do jornalismo. Ć uma coisa que vocĆŖ recomenda para outros veĆculos, outros portais? E como vocĆŖ enxerga a integração desse tipo de ferramenta no jornalismo?Ā
[36:19] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu acho que Ć© uma tendĆŖncia muito forte no jornalismo usar a inteligĆŖncia artificial, usar robĆ“s para monitorar uma determinada Ć”rea. Eu acho que isso é muito enriquecedor, tanto para o jornalismo em si, quanto para a sociedade de maneira geral. Ć muito Ćŗtil que vocĆŖ tenha, o Robotox Ć© muito incrĆvel, ele faz tudo aquiloĀ automaticamente. VocĆŖ fala assim: "gente, nĆ£o tem um ser humano por trĆ”s, fazendoĀ isso?". NĆ£o, tem um ser humano pensando aquele projeto, desenvolvendo oĀ Robotox e ele toca isso sozinho. Tem vĆ”rias experiĆŖncias similares, se nĆ£o me engano oĀ Aos Fatos,Ā que Ć© um site independente de checagem de notĆcias, tem vĆ”rios robĆ“s por aĆ. EuĀ acho que Ć© uma tendĆŖncia e eu acho que Ć© uma tendĆŖncia muito enriquecedora. Como euĀ te disse, tem muito para atividade jornalĆstica, quanto para a sociedade de maneira geral. Ć um jeito prĆ”tico de a sociedade de se informar, por exemplo, sobre os registros dosĀ agrotóxicos por meio do RoboTalks. Eu só fico com medo deles roubarem nossos empregos,Ā esses robĆ“s, mas isso nĆ£o vai acontecer, nĆ£o, gente (ela ri). Ć brincadeira.Ā
[37:46] Ai, Ana, nem fala, nossa nova geração é da Ôrea tecnológica agora. Eu queria voltar um pouquinho, naquela parte que você jÔ explicou, que era até uma pergunta da gente sobre os ramos da Repórter Brasil: Jornalismo; Pesquisa; Educação⦠E qual dessas Ôreas você acredita que é o carro-chefe da Repórter Brasil? O que os leitores vão para o site procurar.
[38:17] Ana MagalhĆ£es:Ā Nesse aspecto do site, realmente o jornalismo Ć© o carro-chefe. PorĀ quĆŖ? Ć muito interessante, porque o jornalismo, na essĆŖncia, ele trabalha com isso. NĆ£o adianta vocĆŖ fazer uma muito boa matĆ©ria, uma muito boa investigação, uma muito boa reportagem e ninguĆ©m ler aquela reportagem. EntĆ£o, hĆ” uma parte do trabalho jornalĆstico que Ć© a divulgação, que Ć© fazer aquele trabalho chegar Ć s pessoas. O site e as redes sociais sĆ£o nossas ferramentas de trabalho o tempo todo, Ć© a minha ferramenta de trabalho. OsĀ nossos colegas do Escravo Nem Pensar, por exemplo, que Ć© o braƧo educacional da Repórter Brasil, eles tĆŖm vĆ”rias outras ferramentas de trabalho, alĆ©m das redes sociais, alĆ©m daĀ divulgação do trabalho deles. Eles tĆŖm, por exemplo, a sala de aula. Ć principalmente na sala de aula onde eles trabalham, fazendo formação de gestores pĆŗblicos e de professoresĀ pĆŗblicos. JĆ” no caso da agĆŖncia de jornalismo, as minhas principais ferramentas de trabalhoĀ sĆ£o o site e as redes sociais. EntĆ£o, sem dĆŗvida nenhuma, a maior parte dos leitores que entraĀ no site, eles entram buscando jornalismo, sem dĆŗvida nenhuma, mas um pouco por contaĀ disso, o jornalismo só completa a sua missĆ£o quando ele chega no pĆŗblico leitor.Ā
[39:50] Ć verdade, concordo com vocĆŖ. JĆ” que a gente estĆ” falando sobre as reportagens, a questĆ£o do jornalismo e o seu pĆŗblico, como vocĆŖ acha que ao longo dos anos tem evoluĆdo a questĆ£o do financiamento que vocĆŖs tĆŖm? Porque financiamento Ć© uma palavra-chave para o bom jornalismo e como vocĆŖs sĆ£o uma ONG (a Repórter BrasilĀ Ć© formalmente uma Oscip - Organização da Sociedade Civil de Interesse PĆŗblico), vocĆŖ acredita que facilita o financiamento do trabalho de vocĆŖs? Como funciona essa parte?Ā
[40:18] Ana MagalhĆ£es:Ā Ćtima pergunta. A Repórter BrasilĀ tem hoje um modelo deĀ negócios muito parecido com outros veĆculos independentes, como a AgĆŖncia PĆŗblicaĀ ou atĆ© mesmo outros projetos como, por exemplo, como a AmazĆ“nia RealĀ que sĆ£o projetos que aĀ gente acompanha tĆ£o de perto e sĆ£o parceiros nossos tambĆ©m. Ć o seguinte modelo: Ć© umaĀ instituição sem fins lucrativos e que ela Ć© financiada por projeto, por organizaƧƵesĀ normalmente filantrópicas e normalmente internacionais. EntĆ£o, hoje a agĆŖncia de jornalismo da Repórter Brasil, vouĀ falar pela agĆŖncia, hoje a agĆŖncia de jornalismo da Repórter BrasilĀ Ć© financiada por fundaƧƵes, como por exemplo a Ford Foundation. Ć uma das fundaƧƵes que financiou o nosso trabalho jornalĆstico. Tem outras tambĆ©m, nós temos outras trĆŖs fundaƧƵes que hoje financiam o nosso trabalho jornalĆstico. Eu acho, Danielly, que esse Ć© um modelo que veio para ficar. A gente vĆŖ nos Estados Unidos, por exemplo, uma das mais importantes agĆŖncias de jornalismo investigativo hoje Ć© a ProPublicaĀ que ela Ć© financiada pela filantropia, seja por doaƧƵes de grandes instituiƧƵes que estĆ£o doando para a ProPublica, para ela fazer o trabalho jornalĆstico investigativo que ela faz, ou seja por meio de doaƧƵes de pessoas. Nos Estados Unidos - Ć© muito interessante de a gente discutir sobre isso, eu gosto muito de falar sobre isso -, nos Estados Unidos existe uma cultura muito maior da filantropia do que no Brasil. Ć uma questĆ£o cultural mesmo. Muitas vezes Ć© isso: o trabalhador mĆ©dio doa US$ 50,00 (cinquenta dólares) por mĆŖs para a ProPublicaĀ e eu acho que Ć© interessante porque hoje Ć© a maior parte dos financiadores da Repórter BrasilĀ sĆ£o grandes instituiƧƵes e principalmente internacionais, mas a gente tambĆ©m tem um esquema de que os próprios leitores podem doar para Repórter BrasilĀ por meio do site nĆ© ou por meio de campanhas crowdfunding e similares. Eu incentivo sempre essa doação, que as pessoas que podem que elas faƧam doaƧƵes para essas organizaƧƵes ou para a organização que ela tem mais afinidade, porque sair do modelo de negócios de anĆŗncio publicitĆ”rio Ć© muito interessante. Eu, na minha vida, na minha carreira, eu trabalhei em grandes veĆculos. Eu comecei minha carreira em Belo Horizonte, num jornal de Belo Horizonte. EntĆ£o eu tenho uma certa experiĆŖncia em como Ć© trabalhar em organizaƧƵes que tĆŖm um outroĀ modelo de negócios, que Ć© esse modelo da publicidade, que Ć© o modelo do anĆŗncio publicitĆ”rio. O modelo do anĆŗncio publicitĆ”rio eu acho que ele estĆ” pouco a pouco ruindo, com essa migração toda para aĀ internet, mas eu me lembro, em SĆ£o Paulo nĆ£o, mas em BH, neste jornal que eu prefiro nĆ£oĀ mencionar do nome, jĆ” aconteceu de eu ver claramente influĆŖncia do comercial no trabalhoĀ jornalĆstico. Assim, "dessa empresa nĆ£o, a gente nĆ£o fala muito dessa empresa porque elaĀ gasta fortunas em anĆŗncios aqui no jornal". Eu jĆ” vi isso acontecendo e enfim... Quando vocĆŖĀ parte para esse novo modelo, o modelo da Repórter Brasil, da AgĆŖncia PĆŗblica, da AmazĆ“nia Real, da ProPublicaĀ e de tantos outros que estĆ£o aparecendo aĆ, no Brasil e no mundo, vocĆŖ de fato parte para um jornalismo que ele Ć© um pouco mais independente, no seguinte sentido: nĆ£o Ć© Ć toa que nós, na Repórter Brasil, uma das nossas grandes especialidades Ć© investigar grandes empresas. A gente investiga muito grandes empresas, tipo, posso te dar alguns exemplos: JBS, Vale (do Rio Doce), Cargill. SĆ£o grandes empresas, algumas delas multinacionais no Brasil, algumas delas inclusive com laƧos muito estreitos na polĆtica, como a gente pode ver com a JBS, que sempre foi uma grande financiadora de polĆticos e tem mil escĆ¢ndalos envolvendo a JBS com caixa dois, porĀ exemplo, ela comprando polĆticos e afins, mas Ć© muito interessante de vocĆŖ ver isso. Nós nĆ£o temos nenhum problema de investigar esses grandes empresas, muito pelo contrĆ”rio, Ć© uma das nossas metas Ć© investigar essas grandes empresas. E, claro, qual Ć© a vantagem da Repórter Brasil? Eu nĆ£o recebo nenhum centavo do JBS de publicidade, concorda? Nenhum centavo. Meu modelo de negócios Ć© outro, ele passa por outro lugar. Agora, para o outro lado, se vocĆŖ ligar a TV, a primeira coisa que vocĆŖ vai ver Ć© um monte de anĆŗncio da JBS, inclusive neste exato momento tem um monte de anĆŗncio da JBS na imprensa brasileira, em rĆ”dio, TV e em todo lugar. E aĆ eu ficoĀ sempre me perguntando, o quanto essas grandes organizaƧƵes tĆŖm ou nĆ£o um rabo preso com a JBS ou o quanto elas sĆ£o capazes ou nĆ£o, bancam ou nĆ£o investigar a JBS, sendo que elas estĆ£o sendo, de certa maneira, sustentadas, estĆ£o recebendo um grande volume de recursos pela JBS. EntĆ£o, acho que esse novo modelo de negócios que ele Ć© mais baseado na filantropia, seja de pessoas, de indivĆduos ou de grandes fundaƧƵes, ele Ć© um pouco mais independente. NĆ£o Ć© Ć toa que a gente fala que este novo nicho do mundo jornalĆstico Ć© o chamado jornalismo independente, ele tem menos amarras, entĆ£o ele pode investigar o que ele quiser, pode investigar grandes empresas, grandes empresĆ”rios, empresĆ”rios poderosos e eu acho que isso talvez seja interessante para o futuro do jornalismo, essa mudanƧa um pouco de eixo, do modelo de negócios pode ser enriquecedor do jornalismo, de certa maneira. Eu entendo que as grandes relaƧƵes e o modelo de negócio tradicional estĆ£o passando por uma crise e isso Ć© muito ruim porque a gente vĆŖ muitas demissƵes e a gente ainda nĆ£o sabe para onde vamos, mas hĆ” tambĆ©m o surgimento de novos modelos que eu acho que sĆ£o muito promissores e muito positivo. EntĆ£o, eu nĆ£o vejo o mercado jornalĆstico com tanto pessimismo nĆ£o, muito pelo contrĆ”rio. Eu sou muito otimista quanto a esse momento de transição que a gente vive.Ā
[47:23] Olha, Ć© muito bom ouvir isso vindo de vocĆŖ, uma jornalista, porque Ć s vezes a gente fica bem desanimado com as questƵes atuais, nĆ£o vou mentir.Ā
[47:32] Ana MagalhĆ£es:Ā Pois Ć©, Danielly, sabe o que eu acho? Ć muito interessante, porqueĀ eu converso muito com coordenadores e editores do universo independente e Ć© lindo de ver.Ā Eu comecei a trabalhar no jornalismo independente em 2015, um pouco antes da RepórterĀ Brasil, mas Ć© bonito de ver o quanto essas organizaƧƵes estĆ£o: primeiro, crescendo;Ā segundo, cada vez mais fazendo um trabalho muito relevante; terceiro, cada vez mais fazendo um trabalho muito inovador tambĆ©m, diferente, mais arrojado, mais moderno, com novos recursos, com muita inteligĆŖncia artificial, com jornalismo de dados. Ć muitoĀ gratificante. Eu sim jĆ” vi, nesses Ćŗltimos cinco anos, um crescimento muito grande desse universo de veĆculos independente e eu tenho certeza que Ć© uma tendĆŖncia, que eles vĆ£oĀ continuar crescendo e eu tenho certeza que vocĆŖs terĆ£o, daqui a alguns anos, quando vocĆŖs seĀ formarem, mais oportunidades nesses independentes tambĆ©m que estĆ£o fazendo umĀ trabalho exemplar. EntĆ£o, eu nĆ£o vejo o mundo jornalĆstico com tanta preocupação e essaĀ história de que o jornalismo vai acabar, imagina, o jornalismo nunca vai acabar.
[48:54] Ai, que bom ouvir isso. Eu acredito sim, uma parte assim do que eu acho, Ć© que o jornalismo independente mais bonito de ver Ć© que apesar de lidar com aĀ instantaneidade das questƵes, do momento, dĆ” para fazer reportagem boa, de qualidade,Ā mesmo com essa dinĆ¢mica toda do digital que Ć© tudo corrido. EntĆ£o, o que eu mais gosto de ver Ć© isso, porque hoje em dia que a gente mais vĆŖ no dia a dia, apesar de ser um outro tipo,Ā serem notĆcias e nĆ£o serem reportagens longas e tudo, Ć© a coisa do corrido, pouca informação, aquela coisa do ter que postar logo porque notĆcia tem que ir logo. Eu sinto falta desse jornalismo mais detalhado, mais reportagem e Ć© bonito de ver que os veĆculos independente como a Repórter BrasilĀ fazem um trabalho bonito e grande. Ć muito legal ver isso.Ā
[49:46] Ana MagalhĆ£es:Ā Acho que vocĆŖ tem razĆ£o, acho que tem muita razĆ£o nisso. Assim,Ā claro, veĆculos diĆ”rios como a Folha de S. Paulo, UOL, EstadĆ£o (Estado de S. Paulo), eles cumprem uma missĆ£o muito importante, muito importante, eles precisam cobrir a notĆcia do dia, o quente mesmo e isso Ć© muito relevante, lembrando que, claro, todos esses veĆculos sempre fizeram jornalismo investigativo de qualidade, sobretudo para a publicação nos finais de semana. Mas Ć© muito curioso isso, eu nunca tinha pensado muito sobre isso, Danielly. Realmente, os veĆculos independentes, por terem uma equipe muito menor, porque a nossa equipe Ć© muito menor do que uma Folha de S. PauloĀ da vida ou do UOL, vocĆŖ imagina. Na Repórter BrasilĀ nós somos cinco jornalistas hoje e um estagiĆ”rio, com alguns freelancers que nos ajudam ali. Mas talvez esses veĆculos independentes, por terem uma equipe muito menor e menos estrutura, e tambĆ©m porque UOL, EstadĆ£oĀ e FolhaĀ e O GloboĀ fazem muito bem o trabalho dele na cobertura do dia, esses veĆculos terminam entrando onde a grande imprensa nĆ£o entra e muitas vezes aonde ela nĆ£o consegue entrar. Como a grande empresa estĆ” muito focada no dia, no quente, no que estĆ” acontecendo no Congresso, no presidente estĆ” falando, no que o Rodrigo Maia estĆ” falando,Ā ela tem que estar, alguĆ©m tem que estar fazendo isso, eles acabam nos empurrando para fazer o que⦠fazendo investigaƧƵes profundas, grandes reportagens. Ć muito interessante mesmo ver esse processo, eu acho que o jornalismo brasileiro nos Ćŗltimos cinco anos, sobretudo oĀ independente, ele amadureceu muito. Se vocĆŖ olhar, sei lĆ”, a relação de veĆculos premiados no PrĆŖmio Vladimir Herzog, tem muitos veĆculos independentes ali premiados, talvez mais veĆculos independentes do que os tradicionais e isso Ć© muito rico, ou seja, sinal de que a gente estĆ” indo no caminho certo, fazendo investigaƧƵes profundas, indo a campo. Durante muito tempo na Repórter, atĆ© hoje a gente tem um pouco essa sensação, muitas vezes nós enviamos repórteres, antes da pandemia porque agora nĆ£o pode - a gente estĆ” um pouco mais parado com viagem -, mas antes da pandemia, muitas vezes, a gente enviava repórteres a lugares para investigar coisas que nĆ£o tinha ninguĆ©m da grande imprensa lĆ”. Um exemplo que euĀ posso te dar, um exemplo claro disso, no ano passado, nós enviamos uma equipe - sĆ£o viagens mais caras, mas tudo bem, Ć© isso que a gente quer fazer, sĆ£o viagens caras, sĆ£o viagens longas e caras, mas esse Ć© o DNA da Repórter Brasil:Ā a gente vai hoje ninguĆ©m vai. Quando no ano passado,Ā em outubro, em setembro, nós mandamos uma equipe para Novo Progresso, no meio do ParĆ”,Ā para investigar o Dia do Fogo, que Ć© a história do fogo, do ataque sincronizado que teria queimado e triplicado os incĆŖndios na AmazĆ“nia, na Ć©poca da seca e que foi um ataque orquestrado, nĆ£o foi um acidente, foi um ataque orquestrado por fazendeiros e empresĆ”riosĀ da regiĆ£o de Novo Progresso. Quando a gente foi para Novo Progresso, Danielly, eu sabia queĀ tinha jornalista do The Guardian, eu sabia que tinha jornalista do The New York Times mas nĆ£o tinha jornalistas da grande imprensa brasileira. A Repórter BrasilĀ foi e foi muito interessanteĀ porque nós estamos com um material muito rico e inĆ©dito sobre o Dia do Fogo, comoĀ aconteceu esse ataque orquestrado Ć AmazĆ“nia e, enfim, eu acho que Ć© isso.Ā
[53:36] VocĆŖ falou do prĆŖmio, a Repórter BrasilĀ jĆ” ganhou vĆ”rios prĆŖmios, e agora a gente vai entĆ£o falar um pouco sobre reportagens. Em maio deste ano, no inĆcio da pandemia, vocĆŖs publicaram a reportagem especial AmeaƧas, MilĆcia e Morte: A nova cara do Velho Chico, que ganhou o prĆŖmio do Vladimir Herzog na categoria de produção jornalĆstica e multimĆdia. VocĆŖ pode nos contar como pensaram essa pauta, como ela foi desenvolvida e em quantoĀ tempo? AtĆ© por conta das questƵes da pandemia tambĆ©m.Ā
[54:12] Ana MagalhĆ£es:Ā Claro, a pessoa perfeita para contar isso para vocĆŖ seria o DanielĀ Camargos, o repórter, mas eu acompanhei de perto todo processo, Ć© uma história bemĀ curiosa. O Daniel Camargos, ele cobre hĆ” muito tempo esse tipo de discussĆ£o que Ć© a violĆŖncia no campo, disputa por território, disputa por terra e questƵes fundiĆ”rias, Ć© um assunto muito delicado no Brasil. Ć muito interessante isso, porque quem mora na cidade nĆ£o tem muita noção de que isso estĆ” acontecendo no campo brasileiro, mas isso estĆ” acontecendo. A gente costuma falar que tem uma guerra no campo do Brasil. Ć uma disputa por terra, Ć© fazendeiro, grandes fazendeiros querendo mais terra, querendo mais terra para aumentar a plantação, para aumentar a lucratividade dele, para aumentar a produção dele, para aumentar pastagem, para aumentar o lucro dele e, por outro lado, a gente tem um enorme contingente de camponeses, humildes, que nĆ£o tĆŖm terra para plantar ou que estĆ£o lutando por uma terra para plantar e sobreviver ou que foram recĆ©m-assentados no programa da reforma agrĆ”ria, enfim, a gente tem uma dĆvida histórica no que tange Ć reforma agrĆ”ria no Brasil. O Brasil nunca fez de fato uma reforma agrĆ”ria ampla e que pudesse atender a demanda e hoje a configuração Ć© bem delicada, a genteĀ vive uma guerra no campo. Bom, Daniel Camargos Ć© um jornalista com 15, 16 anos de experiĆŖncia aĆ e ele vem se especializando muito nesse tema da violĆŖncia no campo. E eu me lembro claramente como comeƧou essa pauta: uma fonte dele, ligada a esse setor, ligou para ele e sugeriu que fossem tomar um cafĆ©. Eu me lembro porque o Daniel me falou e me pediu essa autorização - "Ana, eu marquei com uma fonte minha de tomar um cafĆ©, na hora tal, euĀ estou indo lĆ”. Só queria te avisar, tudo bem?". E eu falei, "claro, vai sim, estou curiosa. QueĀ pauta Ć© essa? Que pauta Ć© essa?". E essa pessoa contou essa história para ele, eu nĆ£o possoĀ revelar quem Ć© essa pessoa, Ć© uma questĆ£o de sigilo da fonte, mas essa pessoa contou toda a história para o Daniel, dizendo isso, de que havia nĆ£o só uma sĆ©rie de ameaƧas em cima desses quilombolas e fazendeiros ali no Rio SĆ£o Francisco, mas essa fonte tambĆ©m nos informou que estava acontecendo no governo federal um processo para garantir a demarcação de terras ali para os quilombolas e os ribeirinhos e que quando o presidente (Jair) Bolsonaro assumiu, este processo de regularização fundiĆ”ria nas margens do Rio SĆ£o Francisco foi paralisado. Essa Ć© a denĆŗncia que a gente recebeu. Quando o Daniel me conta essa história, eu falei "uau, baita história, vamosĀ fazer?". Eu me lembro atĆ© dessa história, na Ć©poca a gente estava atolado com outras coisas, a gente estĆ” sempre muito lotado de trabalho, a gente sempre quer fazer muito mais coisas do que a gente dĆ” conta de fazer, entĆ£o isso demanda uma organização nossa muito grande e eu meĀ lembro de ter falado para ele "Daniel, vamos fazer essa história, vamos te mandar para lĆ”, mas agora nesse exato momento nĆ£o consigo. Vamos esperar a poeira baixar". Se nĆ£o me engano, inclusive, essa fonte contou isso para o Daniel antes, foi no ano passado. Se nĆ£o me engano foi antes das queimadas ali na AmazĆ“nia, a gente ficou um tempo rodeando essa história, paquerando e flertando com essa história. E aĆ o que acontece? Vem as queimadas, eu decido enviar o DanielĀ para Novo Progresso para investigar o "Dia do Fogo", ele faz uma longa viagem no final doĀ ano. Quando ele volta da viagem e eu lembro de ter falado "olha, agora que vocĆŖ voltou doĀ ParĆ”, eu acho que tua próxima viagem vai ser essa aĆ para apurar essa história nas margens doĀ rio SĆ£o Francisco". AĆ armamos, ele foi, se nĆ£o me engano, em dezembro do ano passado, em novembro ou dezembro do ano passado para o Rio SĆ£o Francisco ou talvez em janeiro desteĀ ano, e ele volta com o material, ele e o Fernando Martinho, fotógrafo. Quando eu vejo o material na minha frente eu falo "uau, que puta história", que baita material, belas fotografias, belos vĆdeos, eu fico encantada e a gente jĆ” tinha decidido que isso seria um especial multimĆdia. AĆ comeƧamos a desenvolver o especial multimĆdia. O especial multimĆdia Ć© um processo muito mais demorado do que as pessoas pensam, nĆ£o Ć© muito simples, tem programação, todo um trabalho de edição de vĆdeo, todo um trabalho de vocĆŖĀ discutir como que esteticamente esse especial vai ser, entĆ£o nos tomou - o Daniel, se nĆ£o me engano, voltou dessa viagem em janeiro e nós só publicamos o especial em maio. Mas, nesse tempo, estĆ”vamos ajustando, fazendo os ajustes finais, como seria a estĆ©tica, como que a gente traz o leitor para a história, como estĆ£o nossos vĆdeos, enfim, foi mais ou menos esse processo. Mas foi uma fonte do Daniel e aĆ eu acho que fica essa dica, falo em nome do Daniel, que Ć© um super parceiro meu trabalho, parceiro nosso, um jornalista excepcional e alĆ©m de tudo, alĆ©m de ser um cara muito foda, ele Ć© muito humilde, o que Ć© lindo nele, mas eu acho que o Daniel faz isso muito bem, ele faz vĆ”rias coisas muito bens, uma delas Ć© manter fontes, ele se comunica muito bem, ele mantĆ©m as fontes dele e sempre quando uma fonte dele liga para ele e fala assim "estou precisando tomar um cafĆ© com vocĆŖ porque eu quero te contar umaĀ história", ele presta atenção e vai tomar um cafĆ©, eu acho que ele faz isso muito bem. AlĆ©m disso, oĀ Daniel Ć© um cara muito bom a apuração em campo, porque ele tem e eu acho que nesseĀ aspecto sintoniza muito com a Repórter Brasil, a gente costuma dizer que nós nĆ£o queremosĀ apenas denunciar as violaƧƵes que estĆ£o atingindo pessoas humildes no Brasil, a gente querĀ saber quem estĆ” cometendo essas violaƧƵes, a gente tem uma linha editorial na RepórterĀ BrasilĀ de que a gente quer investigar os vilƵes, os responsĆ”veis, os vilƵes nĆ£o, mas osĀ responsĆ”veis por aquelas violaƧƵes e o Daniel Ć© muito bom Ć© fazendo isso, investigando osĀ responsĆ”veis. EntĆ£o foi em campo, quando a gente foi para o Vale do Rio SĆ£o Francisco, oĀ Velho Chico, eu nĆ£o fui, mas eu coordenei todo esse processo dele ir, mas quando ele foi, aĀ gente nĆ£o sabia que o secretĆ”rio de seguranƧa pĆŗblica estava envolvido nessa naquela milĆciaĀ rural, a gente descobriu isso em campo. Como que a gente descobriu isso? O Daniel, no caso,Ā ele estava lĆ” em um dos acampamentos ali, num dos assentamentos dos sem-terra ali e estava tendo uma ação de despejo, os policiais estavam despejando os sem-terra de uma fazenda, enfim. Nessa ação de despejo, a polĆcia chega junto com uma advogada, que era advogada doĀ fazendeiro que havia entrado com uma ação na JustiƧa pedindo o despejo daquelas pessoas,Ā daqueles trabalhadores muito humildes e sem-terra ali. EntĆ£o chega a polĆcia junto com essaĀ advogada do fazendeiro, a representante do fazendeiro. E numa conversa com a advogada,Ā a advogada revela que o secretĆ”rio de SeguranƧa PĆŗblica do Estado de Minas Gerais, que Ć© o GeneralĀ MĆ”rio AraĆŗjo, que ele integrava aquele grupo que eles chamavam de "seguranƧa no campo". AĆ o Daniel, entĆ£o foi ali, por meio daquela conversa informal com a advogada que o Daniel obteve essa informação e depois que ele obteve essa informação, ele utilizou em vĆ”rios recursos para checar aquela informação, de que de fato havia um envolvimento do MĆ”rio AraĆŗjo e ele consegue de fato checar, existe toda mundo uma denĆŗncia anterior feita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais jĆ” mostrando uma foto do MĆ”rio AraĆŗjo em atuação naquela Ć”rea, tem umaĀ denĆŗncia formalizada, assinada por vĆ”rias organizaƧƵes lĆ” na Assembleia que jĆ” sinalizava que o General MĆ”rio AraĆŗjo estaria envolvido nessa história, nesse grupo armado de fazendeiros. A gente chama isso de uma milĆcia rural, porque o nome tĆ©cnico para isso em isso Ć© milĆcia mesmo, da mesma forma como existem as milĆcias urbanas atuando fortemente no Rio de Janeiro, existem milĆcias rurais de fazendeiros e seguranƧas armados, atuando com poder paralelo no campo, e foi ali que a gente confirmou tudo e entĆ£o decidimos publicar.
[01:04:04] Nossa, que legal que deve ter sido esse trabalho, dĆ” atĆ© vontade.Ā
[01:04:09] Ana MagalhĆ£es: Ć interessante, viu, Ć© bem interessante, mas Ć© desafiador tambĆ©m, dĆ” medo.Ā
[01:04:16] Essa Ć© justamente a pergunta que a gente ia fazer agora, justamente sobre isso, porque apurar as milĆcias, como nessa reportagem e outras violĆŖncias, deve ser difĆcil. Eu queria saber se vocĆŖs jĆ” passaram por alguma dificuldade grande e se vocĆŖs jĆ” desenvolveram algum protocolo de proteção dos profissionais nesse trabalho de campo.Ā
[01:04:41] Ana MagalhĆ£es:Ā Sim, a gente segue protocolos, a gente segue a maioria dosĀ protocolos sugeridos pelas organizaƧƵes internacionais especializadas nisso, que sĆ£oĀ basicamente o seguinte: 1) sempre tem uma equipe de apoio acompanhando muito de perto aĀ equipe que estĆ” em campo. Muitas vezes, sou eu que faƧo isso. Eu estou sempre em contatoĀ com o Daniel, ele sempre me dĆ” um roteiro dele dia a dia. Ele acorda fala "bom dia, hoje euĀ vou passar por esses caminhos, vou passar nesses lugares". Quando ele chegar no hotel, ele meĀ fala "boa noite, estou no hotel, estĆ” tudo certo". Houve situaƧƵes mais delicadas em que eu monitorei o Daniel por GPS. Em Novo Progresso eu monitorava ele por GPS. EntĆ£o, ele tinha umĀ GPS o tempo todo ligado no celular dele e eu com esse GPS o tempo todo na minha frente. Ć claro que nĆ£o ficava o tempo todo parada vendo o GPS dele, enfim, porque tenho que trabalhar, eu tenho que fazer mil coisas, mas euĀ sempre olhava, jĆ” aconteceu de eu monitorar o Daniel pelo GPS. A gente tem outros protocolos que Ć© sempre ir para esses lugares com lideranƧas, com contatos prĆ©vios, tanto com lideranƧas locais de comunidades quanto de telefone de autoridades, caso alguma coisa aconteƧa, de pessoas representantes do MinistĆ©rio PĆŗblico, atĆ© da PolĆcia Federal e sempre a gente entra nessas histórias com pessoas que a gente sabe que tĆŖm uma articulação muito boa com essas comunidades, por exemplo, a CPT, que Ć© a ComissĆ£o Pastoral da Terra, entĆ£o, tambĆ©m nĆ£o entramos nesses lugares sozinhos e desavisados. A gente sempre, antes, sonda com membros da CPT ou do Cimi [Conselho Indigenista MissionĆ”rio], que Ć© o movimento indĆgena, tudo que acontece na Ć”rea, "vocĆŖĀ pode me levar lĆ” em apresentar essas pessoas". EntĆ£o, sempre fazemos nossas articulaƧƵes tambĆ©m. E sim, seguimos fielmente esse protocolo de seguranƧa em campo, mas muitas vezes, Danielly, eu fiquei preocupada com o Daniel na Ć©poca da publicação da matĆ©ria mesmo. NĆ£o Ć© a primeira matĆ©ria que o Daniel faz, ele assinando porque ele dĆ” mais o nome do que eu, sempre tem uma atuação minha de bastidor, mas o nome que estĆ” impresso Ć© o dele, ele estÔ um pouco mais exposto do que eu, digamos, com essas matĆ©rias. JĆ” aconteceu de a gente publicar a matĆ©ria e eu ficar um pouco preocupada do que pode acontecer, sabe? JĆ” aconteceu e eu me lembro de uma vez em que o Daniel, assim que ele entrou na Repórter Brasil, ele fez um perfil de um dos maiores grileiros do Brasil. Esse cara atĆ© morreu recentemente, nos Ćŗltimos dois anos. Um dosĀ maiores grileiros do Brasil, ele era um cara perigoso, um cara que tem na conta dele milhares de assassinatos, enfim, o grileiro Ć© um criminoso, um alto criminoso e esse cara, nao vou falar o nome dele, imagina, que ele Ć© falecido, que descanse em paz, e esse cara morava no interior de SĆ£o Paulo. E nessa Ć©poca o Daniel morava aqui em SĆ£o Paulo e a gente trabalhava em SĆ£o Paulo. Eu fazia essa brincadeira, em tom de brincadeira, mas lĆ” no fundo era na verdade, de "nossa, Daniel, estou morrendo de medo de a gente aqui trabalhando e o Fulano de Tal passar aqui na porta e sair atirando aqui na casa da Repórter Brasil". A gente faz direto essa brincadeira, mas assim, Ć© uma brincadeira? Ć, mas tem um fundinho de verdade, sabe, de eu ficar, tipo, "putz, estamos publicando a matĆ©ria, vamos ficar esperto agora, Daniel me diz qualquer movimento estranho que vocĆŖ sentir, me avisa qualquer telefonema estranho que vocĆŖ receber". Eu sempre fico meio assim, mas, olha, graƧas aos nossos orixĆ”s e graƧas Ć s deusas nunca aconteceu nada, mas sempre a gente, o time inteiro Ć© muito atento com isso. Ć perigoso.Ā
[01:09:18] Isso me fez lembrar a pesquisa que eu fiz, para fazer as perguntas e para fazer a outra reportagem tambĆ©m, a questĆ£o da Starbucks [por conta da reportagem "Starbucks: fazendas de cafĆ© certificadas sĆ£o flagradas com trabalho escravo e infantil em Minas Gerais"], que eu tinha lido, que eles procuraram a redação de vocĆŖs para poder saber sobre a situação da reportagem e foi uma das reportagens que ganharam cunho nacional e internacional. EntĆ£o, como vocĆŖs lidaram com essa situação naquele momento? Porque, como estĆ” falando dos ataques, do medo de atingir a Repórter Brasil, uma empresa renomada procurou vocĆŖs e essas situaƧƵes assim, como vocĆŖs lidam?Ā
[01:09:55] Ana MagalhĆ£es:Ā Ćtima pergunta, Danielly. Eu jĆ” tinha te contado um pouco essaĀ história naquela nossa primeira conversa. EngraƧado, eu costumo brincar aqui, eu tenhoĀ vontade de escrever um livro sobre a pressĆ£o que as empresas fazem sobre o bom jornalismo, as grandes empresas. Essa história com a Starbucks nĆ£o foi a Ćŗnica, houve uma outra grandeĀ empresa que uma Ć©poca nos procurou. O que eles fazem, qual Ć© estratĆ©gia dessas grandesĀ empresas? Pelo menos no caso da Starbucks ficou muito comprovado que era uma estratĆ©giaĀ dela. Ela passou dois meses, ela nos escreveu, nós publicamos uma matĆ©ria dizendo que aĀ Starbucks estava comprando cafĆ© de uma fazenda que havia sido autuada por trabalho escravo. Checamos, a Repórter BrasilĀ Ć© muito rigorosa, como a gente faz denĆŗncias muitoĀ sĆ©rias, como essa, Ć© uma denĆŗncia muito sĆ©ria que mancha a marca Starbucks de um jeitoĀ que nós temos consciĆŖncia, a gente carrega uma grande responsabilidade para com isso, aĀ gente sabe disso. Como a gente faz denĆŗncias muito sĆ©rias, o nosso esquema de checagem eĀ o de comprovação daquela denĆŗncia, eles sĆ£o sempre muito rigorosos na redação, a gente sempre checa muito tudo, o que a gente estĆ” publicando ou escrevendo sempre tem comprovação documental disso. No caso da Starbucks, a comprovação documental que nós tĆnhamos eram duas, inclusive, se nĆ£o me falha a memória. Uma delas Ć© que a nossa repórter foi a campo junto com os auditores. Primeiro que foram auditores-fiscais do trabalho que fizeram esse flagrante dos escravizados. Quando euĀ falo de auditores-fiscais do trabalho, eu estou falando de servidores pĆŗblicos do governo federal. Eles sĆ£o trabalhadores do MinistĆ©rio da Economia, ok? Ć um órgĆ£o do governo, sĆ£o servidores do governo dizendo que ali tinha trabalho escravo, naquela fazenda tinha trabalho escravo. E na fazenda, quando a gente entra na fazenda, quando o nosso repórter entra na fazenda, tem uma placa na fazenda com todos os selos de qualidade que aquela fazenda tinha e um dos selos Ć© o C.A.F.E. Practices, que Ć© ligado Ć Starbucks, ok? EntĆ£o assim, temos um servidor federal do MinistĆ©rio da Economia dizendo que ali tem trabalho escravo, nós vimos aquilo, nós presenciamos aquela autuação, nós temos documentos pĆŗblicos e oficiais que dizem que ali havia trabalho escravo e havia ali uma placa que era um indĆcio, dizendo que o selo de qualidade da Starbucks estava, que aquela fazenda tinha um selo de qualidade da Starbucks.Ā
[01:12:54] Nessa reportagem, só para te perguntar que eu fiquei curiosa, nessa reportagem vocĆŖ estava tambĆ©m em campo?Ā
[01:13:00] Ana MagalhĆ£es: NĆ£o, eu estava na redação, infelizmente. Ć triste, Danielly, mas infelizmente como coordenadora Ć© muito complicado para eu ir a campo, mas eu estou sempre acompanhando o que estĆ” acontecendo em campo, estou sempre orientando esse jornalista do que a gente pode fazer, por onde a gente vai. Bom, vimos aquela placa, para a gente Ć© um sinal, era um indĆcio, nĆ£o era uma prova, era indĆcio de que havia um selo da Starbucks ali naquela fazenda. EntĆ£o, continuamos fazendo o nosso bom trabalho jornalĆstico que Ć© checar aquela informação. Primeiro, perguntamos para o fazendeiro que foi autuado, o vendedor de cafĆ© e, se nĆ£o me engano, ele sim confirma que ele vendia para a Starbucks e tal. Claro, procuramos a Starbucks antes de publicar a matĆ©ria, fizemos mais de uma procura Ć StarbucksĀ antes de publicar matĆ©ria e, claro, a conversa era "olha aconteceu isso e isso na fazenda tal, na entrada da fazenda... o fazendeiro diz que tem um selo boas prĆ”ticas da Starbucks, tem uma placa com o nome da Starbucks, da C.A.F.E. Practices, ligada Ć Starbucks na porta da Fazenda, vocĆŖs confirmam que vocĆŖs deram oĀ selo de qualidade para essa fazenda? O que vocĆŖs vĆ£o fazer diante dessa autuação por trabalhoĀ escravo?". E a primeira resposta que a Starbucks nos dĆ”, se nĆ£o me engano a primeira, essa resposta veio da StarbucksĀ Estados Unidos, se nĆ£o me engano, Ć© que eles confirmavam mesmo, de que eles tinham dado o selo de boas prĆ”ticas para aquela fazenda, mas que agora, diante dos novos fatos, a "Fazenda tal"Ā - tem o nome lĆ” da fazenda, a fazenda XPTO -, mas que agora que eles estavam recebendo aquela denĆŗncia, que eles iam investigar o caso e eventualmente suspender as compras daquela fazenda. EntĆ£o eles, num primeiro e-mail, eles nos confirmam que a fazenda XPTO tinha o selo de boas prĆ”ticas e vendia cafĆ© para eles. Quando eles fazem isso, a gente sente seguranƧa para publicar a história e publicamos a história. Bom, na verdade eu te dei uma informação errada, a nossa conversa era com a Starbucks Brasil, se nĆ£o me engano, a gente publica história emĀ portuguĆŖs e na sequĆŖncia gente publica a história em inglĆŖs, com um parceiro o nosso republicar. Essa história, nos Estados Unidos - ela repercutiu muito bem aqui no Brasil, na Repórter Brasil, se nĆ£o me engano o UOL tambĆ©m republicou, mas nos Estados Unidos ela bomba, de circular⦠Eu acho que o americano Ć© muito mais colado na StarbucksĀ do que o brasileiro. Outro dia eu estava em Nova York, Ć© impressionante, eles vĆ£o muito na Starbucks, tem Starbucks para todo lado, nĆ£o sei se o Brasil estĆ” tĆ£o conectado na Starbucks, mas o americano estĆ”. EntĆ£o, essa notĆcia da (inaudĆvel) circula horrores nos Estados Unidos e aĆ chega na Starbucks Estados Unidos, na sede central, quando chega na sede central, a diretora de comunicação da sede central escreve para o veĆculo que nos ser publicou em inglĆŖs e escreve para a gente tambĆ©m,Ā dizendo que eles haviam cometido um erro interno, que eles se confundiram, que a fazenda XPTO nĆ£o era exatamente de onde eles estavam comprando cafĆ©, que eles estavam comprando cafĆ© da fazenda ao lado da fazenda XPTO. Quando isso acontece, Danielly, sempre que a genteĀ recebe uma contestação com informaƧƵes, a gente reabre a investigação. Ć muito sĆ©rio, a Starbucks estava me dizendo que nós erramos, que ela errou, ela estava dizendo que ela errou no primeiro e-mail, que ela confundiu o nome da fazenda, que ela misturou uma fazenda com a outra e, portanto, a matĆ©ria estava errada, portanto a gente tinha que corrigir a matĆ©ria. A gente decide reabrir a investigação, a gente volta a entrevistar todas as nossas fontes, todos os servidores do MinistĆ©rio da Economia, os auditores. Os auditores voltam a dizer que tem selo daĀ Starbucks sim. A gente reabre, a gente fica dois meses investigando novamente essa história para entender se o erro, que a Starbucks tinha dito que ela cometeu, se procedia. Eu sei, Danielly, essa Ć© uma história⦠Eu passei dois meses tensa e estressada, quase sem dormir Ć noite. E, assim, o que eu sempre dizia Ć©: se nós estivermos errados, nós vamos corrigir o nosso erro e corrigir a nossa reportagem, mas eu preciso ter certeza de que eu estou errada, porque atĆ© agora Ć© a Starbucks que estĆ” dizendo que a minha matĆ©ria estĆ” errada por conta de um erro dela. Quando a gente pedia a prova para ela, eu falava "entĆ£o me prova, se vocĆŖ puder, nos dĆŖ provas documentais de que vocĆŖ nĆ£o comprou da fazenda XPTO, mas que vocĆŖ comprou da fazenda ao lado da XPTO e que elasĀ sĆ£o diferentes". AĆ a Starbucks dizia que ela nĆ£o podia enviar documentos porque eram documentos confidenciais. Bom, mesmo a Starbucks tendo essa atitude tĆ£o estranha, dizer que ela errou e, portanto, a Repórter BrasilĀ tinha errado, mas que ela nĆ£o consegue me comprovar que ela errou, nem que eu estou errada, nem que a Repórter BrasilĀ estĆ” errada, a gente decide porĀ dignidade e Ć©tica reabrir a investigação. Bom, eu estou simplificando a história, foram vĆ”rias idas e vindas de e-mail, vĆ”rias horas do meu trabalho preocupada, "estamos errados ou nĆ£o estamos? O que acontece? Vamos investigar, levanta o registro de novo da propriedade, qualĀ fazenda que Ć© a fazenda de fato?". No meio dessas idas e vindas, tem um momento que a moƧa da Starbucks dos Estados Unidos nos manda um e-mail, porque ela vai mandando um e-mail e a gente vai tentando confirmar e pedindo umas coisas e contestando o e-mail e tal, dizendo "Olha, aĀ gente vai reabrir a investigação, estamos checando se a gente estĆ” errado, se a gente tiverĀ errado, a gente vai corrigir nosso erros mas preciso que me ajude". Uma longa troca de e-mails e numa dessas trocas de e-mail, eu acho que eu te contei isso para entrevista, mas eu gosto de lembrar dessa história porque eu acho absurda essa história, ela nos manda uma carta de um cara, de um consultor dessa Ć”rea de cafĆ© aqui no Brasil, dizendo que a tal placa, que a gente viu na porta da fazenda, que ele tinha enviado a placa para a fazenda errada. EntĆ£o, ela me manda um documento que Ć© um consultor do cafĆ© aqui no Brasil, um documento assinado por ele, dizendo que a tal placa estava na fazenda errada e que nĆ£o procedia a tal placa com o selo de qualidade da Starbucks. E eu acho aquilo muito estranho, e falo "que coisaĀ estranha Ć© esse documento".Ā E aĆ a nossa repórter entrevista esse consultor do cafĆ©, que havia assinado essa tal carta dizendo que ele mandou a placa para fazenda errada. Quando a genteĀ entrevista ele, Danielly, ele nĆ£o estava sabendo de nada. O documento que a Starbucks disse que ele assinou, ele nunca tinha visto isso na vida, era mentira. E ali, eu falei: "agora eu jĆ” nĆ£o vouĀ seguir nessa conversa", e aĆ o que eu fiz, eu falei para a repórter, a Daniela Penha, umaĀ excelente jornalista, por sinal, ali a Daniela Penha ficou muito preocupada todo esse tempo com essa pressĆ£o da Starbucks, nĆ£o Ć© fĆ”cil vocĆŖ ter uma multinacional do tamanho da Starbucks te mandando e-mail todo dia e pressionando para vocĆŖ tirar uma reportagem do ar. Eu acho queĀ a Repórter BrasilĀ agiu muito bem naquele momento. Hoje, analisando emĀ retrospecto, eu acho que a gente agiu corretamente, de nĆ£o ter cedido Ć pressĆ£o, de ter reaberto a investigação e de ter desmascarado a Starbucks ali. Essa Ć© uma história que a gente nunca publicou, mas eu tenho atĆ© vontade de publicar um dia, um livro, nĆ£o sei, mas a história Ć© essa. Quando a Daniela Penha faz essa entrevista com o cara e o cara desmente a tal carta, aĆ eu falei, Daniela, "arrasou, nós vamos parar nossa investigação de novo agora". Ela gravou a entrevista com o cara, porque era essa a minha orientação, grava a entrevista. EntĆ£o, quando a gente descobre isso, eu falei "pronto, Ć© assunto encerrado, a Starbucks estĆ” mentindo, ela estĆ” forjando documento para me pressionar a tirar uma matĆ©ria do ar". EntĆ£o, o meu combinado Ć©: "Daniella, faz um relatório de toda a investigação passo a passo do que vocĆŖ fez, inclui nesse relatório a entrevista com esse cara, me passa todo o documento, todos os Ć”udios", e o que eu faƧo Ć© mandar para o Starbucks Estados Unidos um grande relatório, de cinco pĆ”ginas, comĀ tudo que a gente havia feito nessa reabertura da investigação, tudo que a gente jĆ” havia descoberto e, entre elas, a gente havia descoberto que o tal cara que teria assinado a tal carta estava desmentindo numa ligação gravada. Mandamos esse e-mail mandei e aĆ me pergunta se a gente recebeu algum tipo de resposta? Ou se voltaram a nos incomodar? Nada aconteceu, assunto encerrado. Mas olha, eu vivi um pequeno inferno durante os dois meses e a Daniela Penha, nĆ£o quero te contar, ela estava desesperada, mas deu tudo certo no final.Ā
[01:23:38] Situação difĆcil, hein, Ana. Complicado, tem que fazer um livro com todas essas histórias.Ā
[01:23:38] Ana Magalhães: Pois é, estou achando também. à muita história para contar.
[01:23:44] Muita. E, assim pelo compromisso social que a Repórter BrasilĀ tem nas reportagens, nos conteĆŗdos produz e publica, a gente sabe que nĆ£o Ć© a primeira vez que vocĆŖs apertam o calo de alguĆ©m. Aquela lista de transparĆŖncia sobre o trabalho escravoĀ contemporĆ¢neo deu o que falar e imagino que isso tambĆ©m resultou em algunsĀ ataques, pressƵes e eu entender com vocĆŖ como que Ć© (inaudĆvel).Ā
(Problema TĆ©cnico)Ā
[01:24:47] A gente ia te perguntar justamente sobre essa questĆ£o da lista (do trabalho escravo). Com ela teve a Lei de Acesso Ć Informação (LAI) e a gente queria esse trabalho tĆ£o importante assim, como foi esse processo todo?Ā
[01:25:04] Ana MagalhĆ£es: VocĆŖ diz da lista de da transparĆŖncia? Na Ć©poca que a lista suja foiĀ suspensa?Ā
[01:25:09] Isso mesmo, teve a questão do Ricardo Lewandowski, toda essa questão.
[01:25:16] Ana MagalhĆ£es:Ā Gente, eu conheƧo essa história, mas eu nĆ£o trabalhava na Repórter BrasilĀ nessa Ć©poca. Eu nĆ£o sei se eu sou a melhor pessoa para falar para vocĆŖ sobre essa história, mas posso dizer em Ć¢mbito geral que a gente fica muito orgulhosos, de a gente ter seguido nessa resistĆŖncia de suspender a "Lista Suja", mas a RepórterĀ continua pressionando o governo por ser transparente, Ć© um momento que nos dĆ” muito orgulho na história da Ā Repórter Brasil,Ā atĆ© hoje.Ā
[01:26:02] NĆ£o sei se vocĆŖs estĆ£o me escutando bem agora, mas eu ia complementar tambĆ©m do que a Dani falou, Ć© que esse tipo situaƧƵes que vocĆŖs fazem que euĀ acho que estĆ£o super pertinentes, quando vocĆŖ pensa no compromisso social que a RepórterĀ Brasil tem, acabam gerando alguns ataques, alguns podem ser pressƵes maiores, outrasĀ menores e eu queria saber como Ć© para vocĆŖs conciliar essa produção de reportagem, essa rotina, com os ataques que vocĆŖs inevitavelmente sofre em alguns momentos em virtudeĀ dessas reportagens.Ā
[01:26:39] Ana MagalhĆ£es: A gente tem, muitas vezes esses ataques, Gabrielle, eles afetamĀ nosso dia a dia, de certa maneira. Hoje em dia, a maneira mais fĆ”cil de vocĆŖ atacar um site é colocando um robĆ“ clicando no site para o site cair. Isso acontece, nĆ£o Ć© tĆ£o incomum issoĀ acontecer, eu posso te falar, sei lĆ”, eu posso te falar que ano passado eu vi um, ano passado,Ā em abril do ano passado, abril ou maio do ano passado, houve uma sĆ©rie de ataquesĀ robotizados ao site da Repórter Brasil,Ā que deixaram site mais lento e faziam o site cair muito. EntĆ£o, quando isso acontece, afeta a minha rotina de trabalho porque eu trabalho com o site o dia inteiro. Se o site estĆ” mais lento, atrapalha a minha rotina. EntĆ£o, teve um mĆŖs ali que a gente sofreu muitos ataques e o site ficou muito instĆ”vel e tivemos que aprimorar oĀ esquema de seguranƧa do site. Isso acontece com muita frequĆŖncia. NĆ£o só na RepórterĀ Brasil,Ā mas em outros veĆculos independentes, a gente percebe isso. E tem muita história dosĀ ataques na internet. Eu acho que tem toda essa história de fake news aĆ na internet, circulando. Na Repórter Brasil,Ā sem dĆŗvida nenhuma, a pessoa que Ć© mais atacada nĆ£o Ć© mesmo tanto a Repórter Brasil, nesse tipo de ataque nas redes sociais, Ć© o Leonardo Sakamoto, que Ć© o nosso fundador e presidente. O Leo, Ć© bem interessante deĀ escutar quando ele fala sobre isso. O LĆ©o, hoje em dia, ele fala desses ataques nas redes sociais que ele recebe direto com tanta naturalidade de tanto que ele jĆ” foi atacado, ele jĆ” conseguiuĀ chegar naquele ponto em que nem o afeta tanto, enfim, publicam milhƵes de mentira sobre o LĆ©o, publicam com o Leo Ć© fundador da (AgĆŖncia) PĆŗblica, publicam que o Leo tem um gabinete do ódio da esquerda no Brasil e, nĆ£o sei, ele Ć© tĆ£o atacado nesse aspecto, ele Ć© muito mais atacado que a Repórter Brasil, mas o Leo Ć© tĆ£o atacado que ele, hoje em dia, lida com uma naturalidade que me surpreende atĆ©. Agora, nĆ£o Ć© fĆ”cil, nĆ£o Ć© simples, eu acho que hoje em dia vemĀ acontecendo um outro fenĆ“meno que os jornalistas, nós jornalistas temos discutido muito, que Ć© um fenĆ“meno chamado "ataque JudiciĆ”rio", eu estou criando esse termo. Saiu atĆ© umĀ texto na Folha, se nĆ£o me engano ontem ou domingo, da TaĆs Gasparian, falando sobre isso e eu recomendo que vocĆŖs deem uma olhada nesse artigo dela, da TaĆs Gasparian. Ela fala exatamente sobre isso, Ć© uma discussĆ£o muito forte que tem no jornalismo independente. Existe um fortalecimento muito grande desse fenĆ“meno, e que fenĆ“meno que Ć©? Uma sĆ©rie de empresas ou pessoas, pessoas fĆsicas ou empresas processando veĆculos e processando com grande volume de aƧƵes judiciais, pedindo retiradas de matĆ©rias do ar, pedindo danos morais, pedindo danos indenizatórios, acusando a gente de calĆŗnia e difamação. HĆ” uma sensação de que no universo judicial tambĆ©m hĆ” uma disputa mais forte aĆ, de que hĆ” uma tendĆŖncia de que as pessoas processem mais esses veĆculos. O que a TaĆs Gasparian fala no artigo dela Ć© bem interessante porque ela fala assim "muitas vezes sĆ£o aƧƵes tĆ£o frĆ”geis que o advogado que estĆ” entrando com a ação sabe que ele vai perder, mas ele faz isso para intimidar". Isso naĀ Repórter BrasilĀ a gente jĆ” tem toda uma estrutura jurĆdica para nos defender das aƧƵes judiciais, mas a gente recebe, a gente Ć© processado nĆ£o digo com uma certa frequĆŖncia, mas temos processos, nós temos muitos processos. Respondemos processos na JustiƧa. Eu te digo pela agĆŖncia de jornalismo, nós recebemos um processo ano passado e um processo esse ano. Agora, eu acho que tem esse universo tambĆ©m, claro, Ć© o processo das pessoas que se sentiremĀ ofendidas com as nossas denĆŗncias ou acharam que nĆ£o estamos publicando a verdade, ela tem todo o direito de entrar na JustiƧa e a gente dignamente comprovar a nossa correção por meio da JustiƧa. Nós nunca perdemos um processo desses porque o nosso material Ć© muito bem documentado. O time hoje da RepórterĀ estĆ” muito preparado, muito preparado, ele Ć© muitoĀ bem estruturado para esses trĆŖs assuntos que eu estou dizendo: para ataques e pressƵes porĀ parte de grandes empresas multinacionais, entĆ£o nĆ£o Ć© Ć toa que a gente Ć© muito rigoroso na prova documental e nas provas que a gente tem antes de publicar uma matĆ©ria, a gente é muito rigoroso com isso. AtĆ© porque sabemos o nĆvel de responsabilidade com o qual nós estamos lidando. Quando a gente fala de trabalho escravo, essa acusação de trabalho escravo, de autuação do trabalho escravo, Ć© uma acusação muito delicada, pode atrapalhar muito a vida de uma empresa, atĆ© de um fazendeiro, de um pecuarista se essa acusação Ć© feita sem as devidas comprovaƧƵes. A gente tem consciĆŖncia da nossa responsabilidade, como a gente precisa fazer um trabalho muito sĆ©rio, muito checado e rechecado. AtĆ© porque muitas das vezes a gente jĆ” faz esse levantamento se preparando para apresentar isso para a JustiƧa no caso de sermosĀ processados. EntĆ£o, eu acho que com o tempo a gente foi se preparando muito bem para lidar com esse tipo de configuração, sejam ataques no nosso site, sejam ataques nas redes sociais ou seja um outro tipo de enfrentamento aĆ na JustiƧa. Hoje em dia, eu acho que a gente jÔ incorporou na nossa rotina mecanismos de comprovação, checagem, de reuniĆ£o documental,Ā de provas documentais, entĆ£o isso meio que jĆ” estĆ” na nossa rotina, sabe, mas Ć© um assunto que a gente estĆ” constantemente preocupados. A gente entende isso, entende o grau deĀ responsabilidade com o que a gente estĆ” lidando, jornalismo Ć© uma coisa muito sĆ©ria e eleĀ tem que ser levado muito a sĆ©rio. Só um Ćŗltimo exemplo para terminar meu pensamento. Com os outros lados, jĆ” aconteceu na Repórter BrasilĀ de a gente postergar uma semana, um mĆŖs, a publicação de uma matĆ©ria porque a gente nĆ£o conseguiu o outro lado e o cara ficou enrolando a gente e a gente falar "sem outro lado nĆ£o dĆ” para publicar essaĀ matĆ©ria". Temos que escutar a defesa desse cara, como ele justifica essa autuação por trabalho de escravo. A gente Ć© muito sĆ©rio e responsĆ”vel com isso. Esse Ć© um dos caminhos, vocĆŖ fazer um trabalho muito correto, muito sĆ©rio, checado e rechecado, com outros lados, para evitar problemas. EntĆ£o, acho que a gente jĆ” tem isso incorporado no nosso fluxo de trabalho normalmente.Ā
[01:35:13] Ć uma rotina bem interessante porque acho que Ć© um pouco diferente do que a gente costuma ver hoje. Ć um nĆvel de preparação e cuidado cinco mil vezes maior porque sĆ£o, como vocĆŖ disse, reportagens sĆ©rias com acusaƧƵes muito sĆ©rias.Ā
[01:35:31] Ana MagalhĆ£es:Ā Exatamente, Gabrielle. Eu me lembro de uma história, eu contei isso outro dia para alguĆ©m lĆ” da RepórterĀ que eu vou compartilhar com vocĆŖs. Tem umasĀ histórias muito curiosas na Repórter. Era um jornalista da nossa rede para uma matĆ©ria sobre a JBS. A JBS Ć© uma empresa muito grande, ela Ć© uma multinacional, ela Ć© a maiorĀ processadora de proteĆna animal do mundo, ela estĆ” criando uma sede agora nos EstadosĀ Unidos. Os irmĆ£os Wesley e Joesley Batista quase que derrubaram o Temer em 2017. Enfim,Ā estamos falando de uma grande multinacional. NĆ£o Ć© uma Starbucks, mas estĆ” quase lĆ”. Eu nĆ£o sei nem se dĆ” para comparar uma com a outra, sĆ£o duas grandes multinacionais de referĆŖncia aos seus respectivos setores. Bom, era uma reportagem que a gente ia dar sobre a JBS, que, se nĆ£o me engano, a gente estava denunciando que a JBS estava comprando gado de um grupo empresarial multado por desmatamento e isso nĆ£o pode porque a JBS assinou em 2009 um acordo de que ela nĆ£o faria isso. Enfim, era uma matĆ©ria desse tipo. O repórter, o jornalista, que Ć© o AndrĆ© Campos, que trabalha na Repórter BrasilĀ hĆ” mais tempo que eu, muito mais tempo que eu. Tem muito tempo que ele estĆ” na rede da Repórter Brasil, Ć© um jornalista brilhante tambĆ©m. O AndrĆ© Campos, naquela ocasiĆ£o, ele entende muito desse universo da pecuĆ”ria, ele jĆ” investigou muito a JBS, naquele momento, pouco antes da gente publicar a reportagem⦠uma das provas que a gente tinha era, se nĆ£o me engano, um print de uma parte do site da JBS. E o AndrĆ© Campos, como o jornalista cauteloso que ele Ć©, ele ficou com receio de a gente publicar matĆ©ria, da JBS derrubar esse site, tirar essa pĆ”gina do site, processar gente e a gente nĆ£o ter nenhuma comprovação de que aquilo havia sido publicado no site, de que aquilo estava no site da JBS. Era tipo essa a história, nĆ£o lembro dos detalhes, mas era tipo isso. O Campos me ligou e falou, eles me chamam de MagĆ” lĆ” na Repórter, ele falou "MagĆ”, estou aqui preocupado com isso, o que eu fiz e o queria saber se vocĆŖ topa fazer". O que o Campos fez? Ele primeiro tirou um printscreenĀ daquela pĆ”gina e depois ele me perguntou se eu topava fazer isso e eu topei, que era meio que fazer uma autenticação em cartório, era um processo lĆ” que o Campos me falou que era, mas que custou R$ 500,00 (quinhentos reais) para autenticar aquele documento e comprovar, por um processo XPTO, que aquela pĆ”gina, naqueleĀ momento, aquela pĆ”gina da JBS existia. Nós gastamos R$ 500,00 (quinhentos reais) para produzir este documento, para ter seguranƧa de que qualquer coisa que acontecesse, a gente estava muito bem calƧado. Foi a Ćŗnica vez que eu fiz isso, mas eu acho que foi prudente fazer. A JBS nĆ£o nos processou, nĆ£o aconteceu nada, mas Ć© esse tipo de coisa que a Repórter BrasilĀ faz. A gente gasta R$ 500,00 (quinhentos reais) no trĆ¢mite burocrĆ”tico, para comprovar, para pedir uma comprovação em auditoria de aquela pĆ”gina existia naquele dia e aquele tal e ter esse documento na minha mĆ£o para qualquer coisa que acontecesse. Ć esse tipo de procedimento que a Repórter BrasilĀ faz.Ā
[01:39:28]Acho que para lidar com uma empresa nĆvel JBS Ć© mais do queĀ necessĆ”rio, eu acho que R$ 500,00 (quinhentos reais) foi, assim, pouco para a dimensĆ£o do que poderiaĀ se tornar se ela tivesse essa comprovação.Ā
[01:39:45] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu acho que vale a tranquilidade que eu fiquei com aqueleĀ documento em mĆ£os, que o Campos ficou, que a equipe inteira ficou. A gente acabou nĆ£o usando aquele documento, estĆ” tudo certo, mas eu acho que valeu. Eu acho que Ć© muito simbólico. Essa história Ć© um sĆmbolo de como a Repórter BrasilĀ Ć© preocupada com esse tipo de coisa, porque a gente jĆ” foi muito atacado antes, ou virtualmente ou processados. A gente Ć© muito processado por conta do trabalho escravo, as denĆŗncias de trabalho escravo. EntĆ£o a gente estĆ” muito bem treinado. Eu acho que a gente foi aĆ adquirindo um know-how eĀ incorporando medidas extras de seguranƧa, prudĆŖncia, checagem, rechecagem, que sĆ£o coisasĀ do bom jornalismo mesmo. A gente foi incorporando isso na nossa rotina e eu acho isso é interessante hoje, eu prefiro um jornalismo cauteloso do que um jornalismo nĆ£o tĆ£o correto, mas ousado. A gente Ć© bem cauteloso e quando temos indĆcios, isso jĆ” aconteceu vĆ”rias vezes, quando temos bons indĆcios, mas nĆ£o temos provas na nossa mĆ£o, a gente nĆ£o publica. JĆ” aconteceu de a gente desistir de muitas boas histórias, com pistas muito fortes, muito fortes e de nĆ£o publicar porque falta uma prova mais sólida. A gente faz um jornalismo investigativo bem sĆ©rio.Ā
[01:41:18] Deve doer um pouquinho, mas como vocĆŖ falou acho que Ć© muito necessĆ”rio. Ana, queria aproveitar para finalizar um pouco a conversa, a gente tĆ” indo jĆ” para a reta final, nĆ£o dĆ” para ignorar que a gente estĆ” na pandemia. VocĆŖ jĆ” falou sobre os processos de trabalho da Repórter BrasilĀ e a gente queria saber como Ć© que a pandemia impactou os trabalhos de vocĆŖs, a produção de reportagens, porque Ć© difĆcil ir a campo, tem muitas questƵes de seguranƧa. Como esse cenĆ”rio impactou a produção deĀ reportagens?Ā
[01:42:00] Ana MagalhĆ£es: Ć, realmente, a pandemia nos afetou muito, sobretudo no queĀ tange Ć s nossas investigaƧƵes em campo. A gente praticamente passou aĆ uns dois, trĆŖs mesesĀ sem fazer. Hoje a gente faz de uma forma muito restrita, só o estritamente necessĆ”rio Ć© que a gente vai a campo. Aconteceu uma casualidade na Repórter BrasilĀ que um dos nossos repórteres pegou Covid, entĆ£o ele estĆ” uma imunizado hoje e ele comeƧou a querer viajar, porque ele jĆ” estava tranquilo para viajar, entĆ£o fizemosĀ uma que outra viagem com esse repórter, só porque ele estava querendo viajar e ele jĆ” tinha pegado Covid, com o teste e com tudo, entĆ£o entendemos que naquela circunstĆ¢ncia achamos que tudo bem, mas impactou muito o nosso trabalho nesse aspecto. Assim, por exemplo, nós tomamos a decisĆ£o na pandemia - a gente cobre muitas questƵes indĆgenas no Brasil - , nós tomamos a decisĆ£o de que na pandemia nĆ£o vamos visitar nenhuma terra indĆgena para nĆ£o corrermos o risco de estar levando o coronavĆrus para aquela aldeia. Acho que outra vez a Repórter BrasilĀ lanƧa um olhar muito responsĆ”vel, do mesmo olhar responsĆ”vel que a gente lanƧa sobre o jornalismo, a gente lanƧou para a pandemia. NĆ£o queremos em hipótese nenhuma imaginar que uma reportagem, que por conta de uma reportagem nossa nós contagiamos uma aldeia e eventualmente o risco de gerar mortes ou qualquer outra coisa do estilo. EntĆ£o nós suspendemos visita a aldeias. Isso atrapalha um pouco nosso trabalho, sobretudo na questĆ£o indĆgena, entĆ£o, por exemplo, um dos nossos repórteres, o mesmo Daniel Camargos que foi o que pegou Covid, foi para o Pantanal agora. A gente havia cogitado de ele ir a uma terra indĆgena, entrevistar um indĆgena para falar sobre o fogo naquela terra indĆgena. A gente tomou uma decisĆ£o de que a gente nĆ£o iria. Uma das lideranƧas dessa aldeia estava disposto a receber o Daniel, aceitar o Daniel ali dentro daĀ aldeia. Foi uma decisĆ£o institucional nossa de que a gente nĆ£o iria, por conta disso, por conta de que para a gente a maior preocupação Ć© a seguranƧa e a saĆŗde dessa aldeia e desses indĆgenas. Isso vale muito mais do que qualquer boa história. Mas conto com esse pensamento - e vale mesmo. Eu prefiro aqueles indĆgenas e aquelas lideranƧas e aquele cacique vivo do qualquer boa história da Repórter Brasil. Ć isso que me importa, me importa Ć© que os trabalhadores tenham direitos respeitados, que os indĆgenas tenham os direitos respeitados. EntĆ£o deixamos de fazer boas matĆ©rias em campo por conta dessa preocupação e faremos isso provavelmente atĆ© a reta final. E aĆ eu acho que o maior impacto Ć©, sem dĆŗvida nenhuma, essa impossibilidade de fazer investigaƧƵes em campo, especialmente em aldeias indĆgenas. Muitas vezes, claro, a gente tem conseguido segurar o nosso trabalho, fazendo muito trabalho na redação, apuração por telefone mesmo e similares, mas no que tange algumas histórias, nĆ£o tem como, sobretudo histórias indĆgenas de algumas etnias. VocĆŖ tem que ir a campo para ver, muitas dessas terras indĆgenas sĆ£o muito isoladas, nĆ£o tĆŖm celulares, nĆ£o tem cobertura, a gente nĆ£o consegue falar, eu acho que prejudica um pouco o nosso fluxo de trabalho aĆ. A Repórter BrasilĀ sempre fez um jornalismo muito de ir a campo. Eu jĆ” comecei aqui antes que a gente tem essaĀ história de que a gente vai aonde ninguĆ©m vai, a história de Daniel lĆ” em Novo Progresso. Enfim, Ć© um DNA muito forte da Repórter BrasilĀ fazer investigação a campo e a gente nĆ£o estĆ” fazendo com a mesma desenvoltura que a gente fez no ano passado, por exemplo,Ā por causa da pandemia. Mas eu acho que dĆ” para adaptar, acho que a gente fez excelentes reportagens nos Ćŗltimos meses sem ir a campo, fazendo uma investigação de cadeia produtiva, fazendo o cruzamento de dados, enfim, e eu acho que dĆ” para levar, mas eu acho que maior impacto foram viagens mesmo. Da minha parte, no meu trabalho Ć© um pouco mais difĆcil vocĆŖ coordenar uma equipe e sintonizar a tua equipe sem vĆŖ-lĆ”, sem estar com ela, sem ver no dia a dia, mas eu acho atĆ© que o jornalismo Ć© uma atividade que se adapta muito bem para o home office, muito mais do que se vocĆŖ faz formação de professor, por exemplo jĆ” Ć© maisĀ complicado, no mundo da educação jĆ” acho um pouco mais complicado o virtual. Nesse aspecto interno da Repórter Brasil, eu acho que a gente se adaptou muito bem ao home office, acho que estĆ” tudo certo e do que mais eu sinto falta Ć© essa liberdade de ir e vir e de fazer uma investigação em campo, mas tudo bem.Ā
[01:47:50] Tem um propósito, nĆ©, um propósito forte.Ā
[01:47:52] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu acho que tem uma boa justificativa por de trĆ”s e a boaĀ justificativa Ć© a melhor regra, eu prezo pela seguranƧa das comunidades sobre as quais eu falo, nĆ£o faz sentido eu ir a campo, numa terra indĆgena, para denunciar uma violação que estĆ” acontecendo naquele povo tradicional, naqueles povos, naquela aldeia e, por um lado, eu estou denunciando uma violação ali, mas tambĆ©m por outro eu estou colocando eles em risco com a Covid. NĆ£o faz sentido, entĆ£o eu acho que tem um bom propósito, concordo com vocĆŖ, Gabrielle, eu acho que tem um bom propósito por trĆ”s dessa nossa adoção de medidas. Nossa maior preocupação Ć© a seguranƧa das pessoas, tanto dos nossos profissionais, quanto das pessoas com quem a gente tem contato. Eu sinto falta.Ā
[01:48:53] Ć muito coerente mesmo com a ideia de vocĆŖs.Ā
[01:49:00] Ana MagalhĆ£es:Ā Mas morro de saudades de planejar uma investigação campo,Ā comeƧar a fazer uma produção de viagem. Quem sabe em 2021, gente. Quando? Quando?Ā
[01:49:10] Estamos torcendo para ser logo tambĆ©m. E Ana, nosso papo estĆ” assim muito, muito, muito bom mesmo, estou gostando muito de escutar essas histórias,Ā eu imagino que a Dani tambĆ©m esteja assim deslumbrada com algumas coisas que escutamosĀ hoje.Ā
[01:49:27] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu seria capaz de ficar falando aqui por horas e horas falando, mas uma hora eu tenho que parar de falar, nĆ©, gente.Ā
[01:49:37] Por mim, olha, pela gente, continuaria, confesso.Ā
[01:49:42] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu adorei nossa conversa, eu estava com saudades de ter boas conversas.Ā
[01:49:47] Eu queria te fazer só uma Ćŗltima perguntinha. Sobre a importĆ¢ncia do jornalismo e a importĆ¢ncia de estar no digital para poder tornar essa mensagem cada vez mais ampla e que ela chegue a mais pessoas.Ā
[01:50:02] Ana MagalhĆ£es:Ā O jornalismo Ć© uma atividade, Ć© uma profissĆ£o, Ć© uma atividade tĆ£o importante, mas tĆ£o absurdamente importante na sociedade contemporĆ¢nea, que, se vocĆŖ nĆ£o tem um bom jornalismo sendo produzido no paĆs ou veĆculos de imprensa relativamente independentes num determinado paĆs, o grau deĀ classificação do teu nĆvel de democracia Ć© outro.Ā Reformulo o que eu digo, eu acho que eu falei de um jeito meio confuso. NĆ£o existe um paĆs democrĆ”tico sem um jornalismo livre, independente, investigativo e fiscalizador. NĆ£o existe. Eu estudei ciĆŖncia polĆtica tambĆ©m na minha vida, fiz um mestrado em ciĆŖncia polĆtica, entĆ£o tambĆ©m faƧo uma discussĆ£o muito ligada Ć polĆtica nessa história. Na ciĆŖncia polĆtica o que se diz Ć© que a democracia tem gradaƧƵes de nĆvel de qualidade. Existem institutos e pesquisadores que dĆ£o uma classificação para o grau de democracia que um determinado paĆs tem e quando eles fazem esse estudo, do grau de democracia que vocĆŖ tem, se ele Ć© mais alto ou mais baixo, umĀ dos fatores fundamentais estudados, sĆ£o vĆ”rios fatores que entram: tĆŖm que ter eleiƧƵes livres; tem que ter partidos polĆticos; tem que ter divisĆ£o entre poderes; tem vĆ”rios critĆ©rios ali para os pesquisadores fazerem essa classificação. Um dos critĆ©rios Ć© o jornalismo, se hĆ”, e tambĆ©m nĆ£o só, se hĆ” jornalismo ou nĆ£o hĆ”, mas tambĆ©m o grau de qualidade deste jornalismo, o quanto as empresas jornalĆsticas sĆ£o independentes do governo, o quanto as empresas jornalĆsticas sĆ£o independentes das grandes empresas, o quanto o jornalista Ć© livre. Eu realmente nĆ£o consigo imaginar uma sociedade democrĆ”tica, sem nenhum trabalho do jornalismo, de jornalismo investigativo tambĆ©m, nĆ£o consigo nem imaginar, isso nĆ£o existe. E hoje eu acho que nesse cenĆ”rio atual, em que a gente vĆŖ ameaƧas constantes ao processo democrĆ”tico brasileiro, o jornalismo se faz mais relevante do que nunca. Ć muito interessante essa segunda pergunta de vocĆŖs sobre a questĆ£o digital, eu sou de uma geração, quando eu nasci, eu nasci em 1979, e quando eu nasci, eu peguei, eu sou da geração que pegou justamente a transição plena do analógico para o digital. Essa história Ć© bem curiosa, eu adoro contar essa historinha tambĆ©m. Desculpa, vou tomar uns minutinhos de vocĆŖs, mas essa história Ć© engraƧadinha. VocĆŖ pensa o seguinte, quando eu entrei na universidade 1997, janeiro de 97, era a PUC-Mina e eu fui a Ćŗltima turma da PUC a pegar um, na PUC vocĆŖ tinha um laboratório de produção de texto e eu fui a Ćŗltima turma da PUC a fazer esse laboratórios de produção de texto com mĆ”quina de escrever. Eu peguei mĆ”quina de escrever na PUC, incrĆvel, eu tenho muito orgulho de contar isso que para vocĆŖ vai ser muito doido. Como que era? Hoje vocĆŖs devem ter lĆ” na faculdade um laboratório de informĆ”tica, onde vocĆŖ entra e tem 40 computadores. Mano, na PUC vocĆŖ entrava na sala tinha e 40 mĆ”quinas de escrever e a gente tinha uma disciplina prĆ”tica, no primeiro perĆodo, que o professor levava os 40 alunos para essas mĆ”quinas de escrever, ele dava ele dava um tema ali, um assunto e pedia para a genteĀ escrever um texto no curso da aula. EntĆ£o, era aquele festival de taque-taque-taque (ela reproduz o som da mĆ”quina). Tinha gente que nĆ£o conseguia nem se concentrar com 40 mĆ”quinas de escrever no seu ouvido. Eu fiz essas aulas, assim que eu passei para o segundo perĆodo, a PUC acabou com barracĆ£o - esseĀ lugar era chamado barracĆ£o -, a PUC acabou com barracĆ£o, tirou todas as mĆ”quinas de escrever, comprou computadores e criou um laboratório com computadores. Mas eu, no meu primeiro semestre, eu escrevi numa mĆ”quina de escrever, eu tenho trabalho de faculdadeĀ com uma mĆ”quina de escrever, Ć© muito incrĆvel. O celular, gente, nĆ£o existia em 97 -Ā jĆ” existia mas eram os tijolƵes. Eu me lembro de ter o primeiro celular no meio da faculdade provavelmente, com 20 anos, por aĆ quando eu fui ter um celular. Quando eu entrei numa primeira redação, onde eu trabalhei lĆ” em Belo Horizonte, euĀ me lembro claramente disso que a internet comeƧou a ganhar esse essa visĆ£o comercial dela 95 e eu demorei ainda uns anos para ter um e-mail, meu primeiro e-mail deve ter sido de 98, por aĆ, entĆ£o, eu entrei na faculdade sem e-mail, nĆ£o tinha e-mail atĆ© outro dia, gente. Eu tinha a idade de vocĆŖs e talvez eu nĆ£o tivesse e-mail, e-mail foi uma coisa que veio depois. Eu estou contando essas histórias todas para mostrar o quanto tudo mudou e muito rĆ”pido. Quando eu entrei, este Ć© o Ćŗltimo exemplo, quando eu comecei a trabalhar num jornal, em 2001/ 2000, no jornal jĆ” tinham computadores, tudo certo, mas nem todos os computadores eram conectados na internet, eram cinco computadores os conectados na internet. Quando eu comecei a atuar como jornalista profissional, eu usava lista telefĆ“nica impressa, eu nĆ£o sei se vocĆŖs jĆ” viram isso antes na vida, talvez no museu vocĆŖs encontrem. Lista telefĆ“nica, eu comecei minha carreira com lista telefĆ“nica. EntĆ£o, eu peguei essa transição e Ć© muito rico vocĆŖ pegar essa transição porque vocĆŖ consegue comparar um mundo com o outro, o que melhorou e o que piorou. Para o universo jornalĆstico, estĆ” dado que de fato a internet, os avanƧos tecnológicos facilitaram muito o trabalho. Agora, tem problemas, eu tambĆ©m vejo problemas. Agora o que eu queria comentar Ć© o seguinte, em 95 quando a internet comeƧa, eu jĆ” estava quase entrando na faculdade, eu tinha 16, 17 anos, 15 anos, sei lĆ”, quando comeƧa a internet,Ā comeƧa toda uma discussĆ£o, a qual eu acompanhei muito de perto porque eu gostava desseĀ debate, comeƧa toda uma discussĆ£o sobre para onde a internet vai nos levar. Tinha um grupoĀ de pessoas que diziam assim "uau. Que foda, a internet vai democratizar a informação, oĀ conhecimento, vai dar acesso para todo mundo com um clique". Ć em parte verdade? Ć, deĀ fato se pensa hoje, a Repórter BrasilĀ faz todo esse conteĆŗdo tĆ£o primoroso, com tantoĀ cuidado, com tanta responsabilidade e o cara que tĆ” lĆ” no interior do PiauĆ, se ele tiver umĀ celular conectado, ele pode ler a matĆ©ria da Repórter Brasil. Uau, que incrĆvel, Ć© incrĆvel isso. NĆ£o Ć© tĆ£o simples o processo, Ć© um pouco mais complexo, eu andei pensando um pouco nisso esses dias, por conta desse desse documentĆ”rio que vocĆŖs devem ter visto, das redes sociais, The social dilemma. EntĆ£o, lĆ” em 95, havia todo esse debate, uau a internet vai democratizar tudo, que incrĆvel, ela vai revolucionar o mundo, ela vai democratizar, mas tambĆ©m tinha um grupo de pessoas que diziam assim "cuidado, gente, ela tambĆ©m pode gerar uma exclusĆ£o digital, ela tambĆ©m pode gerar na problemas e tal". Eu acho interessante hoje a gente analisar isso, depois de duas dĆ©cadas, como que tem lado positivo, mas tem um lado negativo. Eu sim, acho que as redes sociais, da forma como elas estĆ£o andando, elas estĆ£o gerando uma sĆ©rie de problemas que sĆ£o graves, que Ć© a fake news, que Ć© o mundo da pós-verdade, que Ć© essa polarização, o tal discurso do ódio. SĆ£o as redes sociais que estĆ£o fazendo isso, elas estĆ£o alimentando isso e elas sĆ£o fruto da internet ao mesmo tempo, percebe? EntĆ£o, eu entendo a tua pergunta, Gabrielle, mas eu queria só polemizar um pouco porque eu sou uma moƧa polĆŖmica mesmo. Mas Ć© um pouco isso, Ć© incrĆvel vocĆŖ pensar que existem hoje tantos veĆculos com um conteĆŗdo tĆ£o primoroso a um clique de acesso, vocĆŖ pode hoje entrar internet e ler uma puta matĆ©ria da ProPublica, nos Estados Unidos, que 20 anos atrĆ”s vocĆŖ nĆ£o teria acesso a nĆ£o ser por um longo e tortuoso caminho. EntĆ£o, o mundo virtual ele vem com mil maravilhas, mas ele tambĆ©m vem com mil problemas. NĆ£o adianta nada a Repórter BrasilĀ estar de graƧa na internet e chegar na mĆ£o de um aposentado semianalfabeto no interior do PiauĆ, nĆ£o serve, nĆ£o funciona. Eu acho que tem essas dualidades, eu acho que sim, facilita muito o alcance de pĆŗblico, sem dĆŗvida nenhuma. A gente tem que comeƧar a traduzir mais para o inglĆŖs o nosso trabalho, a gente quer tambĆ©m que nosso trabalho fique um pouco mais conhecido internacionalmente e a internet me permite isso de um jeito muito fĆ”cil, muito prĆ”tico, mas eu acho que tambĆ©m tem dualidades, nĆ£o Ć© tĆ£o simples assim. Eu acho que a educação Ć© um negócio extremamente necessĆ”rio, programas de inclusĆ£o digital. Enfim, eu acho que no final das contas, o mais importante para o mundo Ć© que ele seja menos injusto, especialmente. Se tiver um mundo menos injusto, mais instruĆdo, mais bem estudado, todos com qualificação melhor, enfim, com oportunidade de saĆŗde e de estudo melhores, eu sempre acho que a solução estĆ” por aĆ. E aĆ Ć© muito lindo porque a gente volta lĆ” no inĆcio daĀ nossa conversa, na missĆ£o da Repórter Brasil, dos meus desejos de mudar o mundo, acho que Ć© isso, eu queria deixar um pouco esse pensamento: a internet Ć© incrĆvel, ela Ć© maravilhosa, mas semĀ educação, sem inclusĆ£o social, sem justiƧa social, sem melhores oportunidades de emprego e menor desigualdade, ela atinge um pĆŗblico muito restrito e se ela nĆ£o atingir outro e aĆ Ć© isso, a gente retroalimenta o mundo desigual. EntĆ£o vou deixar tambĆ©m essa reflexĆ£o aĆ com vocĆŖs.Ā Ā
FIM