top of page

Repórter Brasil: jornalismo investigativo de alto calibre

  • Foto do escritor: ReconfiguraƧƵes JornalĆ­sticas
    ReconfiguraƧƵes Jornalƭsticas
  • 2 de fev. de 2024
  • 63 min de leitura

Por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle FonsecaĀ 

11 de dezembro de 2020Ā 


A Repórter Brasil nasceu praticamente junto com o século XXI, em 2001, fundada pelo jornalista Leonardo Sakamoto, seu presidente até hoje, quando o jornalismo começava a vislumbrar de maneira mais efetiva possibilidades de trabalho nas mídias digitais. O veículo surgiu com uma proposta que, atualmente, confirma-se como tendência mais ampla do jornalismo no mundo, de ter uma linha editorial bem delineada, com um objetivo social claro e específico (não se trata de cobrir hardnews no dia a dia), sendo uma organização sem fins lucrativos, patrocinada por organizações do terceiro setor (no site, hÔ uma seção de transparência, com informação sobre apoiadores e relatórios de atividades). Com foco inicialmente voltado somente para a cobertura de trabalho escravo, o veículo ampliou suas pautas ao longo dos anos para cobrir questões de terra, indígenas e de meio ambiente. Seu jornalismo investigativo, realizado de maneira minuciosa, foi reconhecido em inúmeros prêmios e houve muitas ocasiões em que reportagens do veículo, republicadas na grande mídia a partir de acordos firmados pela Repórter Brasil, tiveram repercussão nacional, como contou na entrevista Ana Magalhães, na época coordenadora de jornalismo do site. A conversa foi realizada em 2020, pelo aplicativo zoom, no auge da pandemia.   


O jornalismo é uma das frentes de atuação da Repórter Brasil, que também possui um setor de documentÔrios, um de educação e outro de pesquisa. Ana Magalhães detalhou como são os protocolos e os cuidados adotados em coberturas difíceis e arriscadas que jÔ fizeram frente a gigantes econÓmicos como Starbucks e JBS, entre muitos outros. São protocolos que têm como objetivo proteger os repórteres que atuam em campo, o próprio veículo de ações judiciais (cada vez mais frequentes, embora a Repórter Brasil nunca perdido um processo, segundo a editora), além de ser uma ação ética em relação às empresas retratadas, jÔ que as denúncias de que são alvo costumam ser gravíssimas e delicadas. As reportagens são publicadas somente depois de muitas checagens, sempre buscando reunir provas sólidas das acusações. Mesmo realizando projetos com jornalismo de dados (como o RuralÓmetro e o aplicativo Moda Livre), "o DNA do site", de acordo Ana Magalhães, são as reportagens em campo. A editora conta como o trabalho da Repórter Brasil vem, ao longo dos anos, contribuindo para ampliar a percepção da gravidade de problemas sociais como o do trabalho escravo no país. 





Transcrição da entrevista com Ana Magalhães, da Repórter Brasil


Coordenação do projeto Reconfigurações Jornalísticas: Profa. Rachel Bertol e Profa. Barbara Emanuel 

Universidade Federal Fluminense (UFF) - Departamento de Comunicação


Roteiro: Rachel Bertol, Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca

Realizada por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca

Edição: Filipe Pavão (bolsista)  

Transcrição, edição e revisão final: Rachel Bertol e Mateus Stögmüller (bolsista)  


Clique aqui para acessar. o PDF da entrevista.


[00:12] Oi Ana, boa noite, primeiramente, eu queria começar te agradecendo por você participar no projeto com a gente, cedendo um pouco do seu tempo. A Repórter Brasil é um veículo muito importante para a gente abordar aqui no nosso projeto. 


[00:29] Ana Magalhães: Boa noite, eu que agradeço, é uma honra e um prazer poder falar  um pouco do trabalho da Repórter Brasil e conversar com vocês, eu acho que é uma interação  importante e eu estou muito feliz por estar aqui. Muito obrigada pelo convite.  


[00:42] Então Ana, eu queria que você começasse nos contando de onde você, seu nome completo, sua formação e o que te levou ao jornalismo. 


[00:52] Ana Magalhães: Meu nome é Ana Magalhães, eu nasci em Belo Horizonte, eu sou  de Belo Horizonte, eu me formei em BH na PUC-Minas e quando eu era adolescente, ali pelos 13, 14 anos, eu tinha uma grande amiga na escola que falava assim, "Ana, eu te acho muito boa de comunicação, eu acho que você devia fazer vestibular para Comunicação". Foi a primeira vez que eu pensei nisso. Mas é muito interessante, porque eu nasci numa família  muito... Eu ia usar a palavra culta, mas eu não sei se esta é a melhor palavra, mas muito  interessada em notícias, que buscava sempre se informar e uma família com muitos bons  hÔbitos de leitura. Então, eu aos 13, 14 anos jÔ comecei a ler jornal. Eu via meu pai e minha  mãe lendo o jornal todos os dias e eu achava legal e eu queria ler jornal e eu jÔ gostava disso,  eu jÔ lia um bocado quando era adolescente. E quando eu comecei a me preocupar mesmo em  fazer vestibular, assim, eu pensava muito em Jornalismo e eu pensava muito em História. E eu acho que, ao longo da minha formação, sem dúvida nenhuma, o que me levou a,  principalmente me conduziu para o Jornalismo e eu não tenho dúvida nenhuma disso até hoje, era um desejo de mudar o mundo para melhor, de lutar por justiça social. Eu cresci numa  família com uma tendência comunista, então eu sempre me preocupei muito com a sociedade, com o coletivo e eu acho que isso interferiu na minha escolha profissional. E hoje,  trabalhando na Repórter Brasil, eu me encontrei muito profissionalmente porque é  exatamente isso que a organização também quer. A missão da Repórter Brasil é denunciar  violações de direitos humanos, violações trabalhistas, violações ambientais, violações sociais,  com o objetivo de construir uma sociedade menos desigual, mais justa, com mais justiça social e essa sempre foi uma das minhas metas desde que eu era pequena e adolescente. Então, acho que eu cheguei no momento da minha vida em que o meu desejo pessoal coincidiu com a  missão da organização onde eu trabalho. Então, eu estou muito agradecida por isso, sem  dúvida nenhuma o meu o meu trabalho é movido, o meu trabalho jornalístico é movido por  um desejo de transformação social com vistas a que a gente tenha um mundo um pouco mais  justo e um pouco mais igualitÔrio. 


[03:46] Sem dúvida, é uma questão que a gente busca a cada dia, ainda  mais no mundo de hoje, né? Em 2001, foi criada a Repórter Brasil. Quando foi que você entrou  na organização, como seu trabalho lÔ foi se modificando ao longo dos anos? 

Ā 

[04:03] Ana MagalhĆ£es: A minha história na RepórterĀ Ć© uma história muito interessante, porque euĀ  acho que foi um encontro, mesmo, um grande encontro, sabe, entre os meus desejos pessoaisĀ  e os desejos institucionais, as missƵes e metas institucionais da Repórter Brasil. Eu comecei na RepórterĀ em 2017, como freelancer. Me pediram uma reportagem como freelancer e eu fiz uma matĆ©ria, uma reportagem para eles como repórter freelancer mesmo. Eles gostaram e pediram uma segunda. Gostaram de novo e me pediram uma terceira. Foi bem interessanteĀ  que logo, poucos meses depois, uns quatro meses depois, me fizeram uma proposta deĀ  contratação, de eu ser contratada CLT na Repórter Brasil. A Repórter BrasilĀ trabalha comĀ  freelancers, mas o time fixo dela Ć© todo CLT. E eu, imagina, eu amei a proposta. Eu jĆ” estavaĀ  gostando muito de escrever para a Repórter, de trabalhar para a RepórterĀ como freelancer.Ā  EntĆ£o, eu aceitei a contratação de CLT. Eu fui contratada como repórter e foi muitoĀ  interessante a minha história na Repórter Brasil. Como eu acho que esse grande encontro,Ā  meu pessoal, essa grande coincidĆŖncia minha pessoal com a missĆ£o da Repórter Brasil,Ā  com a missĆ£o institucional dela, eu acabei crescendo muito rĆ”pido lĆ” dentro. Mas Ć© porque euĀ  me identifiquei muito. Eu me lembro que quando eu entrei na Repórter, assim que eu fuiĀ  contratada na Repórter, eu costumava falar para os meus amigos, eu costumava falar isso,Ā  gente, eu estou no emprego dos meus sonhos. Eu tenho essa sensação ainda, tenho umaĀ  sensação de que eu e a Repórter Brasil, a gente precisava se encontrar no mundo, sabe? E euĀ  tive essa sorte, eu sou muito agradecida por isso. EntĆ£o, eu comecei como freela,Ā  fiquei uns quatro meses como freela, logo depois eu fui contratada e pouco depois que eu fuiĀ  contratada como repórter, alguns meses depois, uns quatro meses, cinco meses depois que euĀ  estava contratada, o time de jornalismo da Repórter Brasil ele tinha que desenvolver umĀ  especial multimĆ­dia que ia dar muito trabalho e a nossa entĆ£o coordenadora, que continuaĀ  com a gente, que Ć© uma figura maravilhosa, chamada Ana Aranha, a nossa entĆ£oĀ  coordenadora, ela estava cuidando de vĆ”rios outros projetos grandes e ela meio que passou para mim pouco a pouco a responsabilidade de tocar esse especial multimĆ­dia, que vocĆŖs conhecem ele, ele se chama RuralĆ“metro, a gente publicou ele em janeiro de 2018. EntĆ£o ali, por outubro, setembro, por agosto ou setembro de 2017, eu estava hĆ” pouco tempo na Repórter, a Ana Aranha me faz essa proposta de eu assumir mais responsabilidades noĀ  desenvolvimento do RuralĆ“metro. E o RuralĆ“metro Ć© outro projeto que, com o qual eu me encontrei muito. Era um projeto que foi, o RuralĆ“metro ele foi um projeto desenvolvido pela equipe da Repórter Brasil, foi a equipe da Repórter, eu incluĆ­da, que tivemos a ideia doĀ  projeto, do que a gente queria, a gente queria fazer uma discussĆ£o com a polĆ­tica tambĆ©m. No RuralĆ“metro a gente pega os 513 deputados federais brasileiros e analisa como eles votaram, em medidas e projetos de lei que tĆŖm um impacto socioambiental para os povos do campo. E aĆ­ eu mergulhei de cabeƧa no RuralĆ“metro, era um projeto que eu amava e eu mergulhei de cabeƧa e eu acabei me tornando a coordenadora do RuralĆ“metro. EuĀ  acabei gestionando uma equipe de 12 pessoas, Ć©ramos 12 pessoas, eu acabei gestionando uma equipe de 11 pessoas no RuralĆ“metro. E, eu nĆ£o sei, eu imagino que eu tenha desenvolvido bem essa função, porque, pouco depois do RuralĆ“metro, a Ana Aranha me fez uma proposta de eu virar a coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil. Eu fiquei muito lisonjeada com essa proposta, naturalmente, muito certa de que a Repórter BrasilĀ tinha muito a ver comigo e eu tinha muito a ver com a Repórter BrasilĀ e aĆ­ eu pedi para Ana Aranha para pensar, porque eu era repórter entĆ£o e de repente eu ia virar uma coordenadora. Eu sabia que era um cargo de extrema responsabilidade, eu sabia que nĆ£o era um cargo fĆ”cil, porque, Ć© o cargo que eu ocupo hoje, Ć© um cargo muito delicado, Ć© um cargo muito desafiador,Ā  porque, como coordenadora do jornalismo, a gente termina desenvolvendo duas funƧƵes, euĀ  acho. Uma função, que Ć© muito mais ligada ao jornalismo, de ser editora, de pensar aĀ  cobertura, de orientar repórteres, de melhorar texto, de articular com veĆ­culosĀ  republicadores. Ɖ uma função mais jornalĆ­stica. Mas tambĆ©m hĆ” uma função da coordenadora de jornalismo, que eu executo hoje, que Ć© a função mais ligada Ć  gestĆ£o de projetos e captação de recursos, captação de financiadores. E nesse universo eu nĆ£o tinha nenhuma experiĆŖncia. No universo jornalĆ­stico eu jĆ” tinha uma boa experiĆŖncia, eu jĆ” tinha mais seguranƧa para trabalhar como editora e etc. e tal. No entanto, nesse universo de captação e gestĆ£o de orƧamento, gestĆ£o de pessoas, gestĆ£o de projeto, eu era totalmente inexperiente. EntĆ£o, naquela ocasiĆ£o, ali, inĆ­cio de 2018, o que eu pedi para Ana Aranha, que havia feito essa proposta, a antiga coordenadora, o que eu pedi para ela foi um tempo para eu pensar e eu pensei durante um tempo longo, eu fiquei um mĆŖs pensando nessa proposta. Durante essa temporada eu escutei vĆ”rias pessoas que eram importantes para mim sobre o que elas achavam, vĆ”rios amigos, minha famĆ­lia e etc. E aĆ­, sim, eu decidi que era uma proposta muitoĀ  irrecusĆ”vel, digamos, que eu nĆ£o poderia deixar passar essa oportunidade. E aĆ­ eu faƧo uma contraproposta para Ana, que era de que durante, como era um cargo muito novo para mim, com uma função muito nova para mim, digamos, sobretudo essa função de captação de recursos e de gestĆ£o de projetos, eu sugeri a gente fizesse uma lenta transição, de uma coordenadora para outra, e que durante um tempo nós duas fĆ“ssemos co-coordenadoras e a Ana aceitou, eu acho que isso encaixou bem para a Repórter Brasil, acho que foi legal a gente ter feito isso. EntĆ£o, em julho de 2018, eu e Ana Aranha, somos duas ā€œAnasā€ para aĀ  gente para facilitar a vida, eu e a Ana Aranha ficamos como co-coordenadoras, as duas juntas. E aĆ­, em 1Āŗ de janeiro de 2019 do ano passado, eu jĆ” assumo como a coordenadora principal. E aĆ­ hoje, analisando para trĆ”s, eu acho que foi muito interessante de fato esse perĆ­odo de co-coordenação. Foi um perĆ­odo em que a Ana pĆ“de me ensinar uma sĆ©rie de coisas, me mostrar na prĆ”tica os desafios desse cargo, me ensinar uma sĆ©rie de coisas, me apresentar uma sĆ©rie de pessoas que eu pensava conhecer. Foi incrĆ­vel, nĆ©? E aĆ­ agora eu estou na coordenação desde entĆ£o atĆ© hoje, ou seja, no frigir dos ovos, eu tenho quatro anos deĀ  Repórter Brasil.Ā Ā 


[12:11] Eu vou aproveitar, eu vou entrar nessa questão, então, do RuralÓmetro, que jÔ tinha uma pergunta sobre. O RuralÓmetro é um projeto que ele possui uma forte base de jornalismo de dados, que é um outro recurso que o jornalismo usa bastante, principalmente nas mídias digitais hoje em dia. E eu queria saber como foi realizar esse projeto, se vocês pensam em repetir nessas eleições agora de 2020, que estão bem perto,  e o quê que vocês mudariam, se fosse o caso.  


[12:41] Ana MagalhĆ£es:Ā Ć“tima pergunta. Sim, a boa notĆ­cia que nós temos Ć© que, sim,Ā  faremos um novo RuralĆ“metroĀ em 2022, pretendemos lanƧƔ-lo atĆ© junho ou julho eĀ  justamente para pegar as eleiƧƵes majoritĆ”rias de outubro de 2022. EntĆ£o sim, nós faremosĀ  novamente o RuralĆ“metro, e… acho que esqueci da primeira pergunta... Ah! Os desafios.Ā  Como foi fazer, nĆ©? Nossa, foi um projeto muito desafiador, eu acho que talvez tenha sido umĀ  dos maiores projetos e ferramentas de consulta especiais multimĆ­dias feitas pela RepórterĀ  BrasilĀ nesses Ćŗltimos dez anos, pelo menos. Ɖ um projeto grande, que envolveu umaĀ  equipe grande. Ɖ muito interessante porque nossa equipe era multidisciplinar. Ɖ legal quando a gente tem oportunidade de executar um projeto que conta com a colaboração de profissionais de vĆ”rias Ć”reas diferentes. Isso Ć© muito enriquecedor. Na nossa equipe, tĆ­nhamos os jornalistas, mas tĆ­nhamos designer, tĆ­nhamos atĆ© um cientista polĆ­tico, que nos ajudou, tĆ­nhamos atĆ© um estatĆ­stica em matemĆ”tica nos ajudando a fazer e jornalismo de dados especializadoĀ  em cruzamentos. E foi um projeto incrĆ­vel, eu sou muito suspeita para falar, sou muito orgulhosa do RuralĆ“metro, tenho um envolvimento muito Ć­ntimo com o RuralĆ“metro, euĀ  acompanhei o RuralĆ“metro do princĆ­pio ao fim. Eu costumo brincar que ele Ć© um filho meu, assim, de certa maneira. NĆ£o só meu, mas de todo o time da RepórterĀ ali. Mas fui eu queĀ  assumi mais a frente de cuidar do RuralĆ“metro. Ɖ muito gratificante, quente mexer com jornalismo de dados, muito desafiador tambĆ©m. Só para vocĆŖs terem uma ideia. Eu chamo o RuralĆ“metro carinhosamente de Rura, tĆ”? Tem um momento no Rura que... O que a gente faz no RuralĆ“metro? A gente tenta pontuar e avaliar a atuação dos deputados federais brasileiros de acordo com como eles votam em medidas que impactam povos do campo e quais os projetos que lei que eles propuseram que impactam os povos do campo ou o meio ambiente de alguma forma. Para a gente fazer esse levantamento, teve um momento em que eu e um assistente meu, um jornalista colega nosso, a gente analisou trĆŖs mil votaƧƵes que aconteceram na CĆ¢mara dos Deputados na Ćŗltima legislatura, de 2015 a 2018. TrĆŖs mil votaƧƵes. Eu e o Gui Zocchio, nós sentamos em um momento e analisamos trĆŖs mil votaƧƵes paraĀ  entender quais tinham impactos no campo ou nĆ£o. EntĆ£o, Ć© um trabalho de formiguinha. Tem alguns trabalhos no jornalismo de dados que sĆ£o trabalhos de formiguinha, que vocĆŖ vaiĀ  garimpando e analisando um grande volume de informaƧƵes. Ɖ claro que tem, existem hoje, eĀ  isso Ć© muito revolucionĆ”rio no jornalismo, de certa maneira, Ć© muito revolucionĆ”rio hĆ” um tempo, existem jornalistas especializados em cruzar dados, ou extrair dados, de pegarĀ  grandes volumes de informação e cruzar um dado com o outro. EntĆ£o, a gente tinha oĀ  Reinaldo Chaves fazendo esses cruzamentos, mas nem sempre Ć© possĆ­vel vocĆŖ automatizarĀ  alguns processos. Alguns processos eles terminam sendo manuais, acaba tendo um trabalhoĀ  de uma equipe sentando e analisando trĆŖs mil votaƧƵes e entendendo se aquelas tĆŖm impactoĀ  ou nĆ£o nos povos do campo. EntĆ£o, eu acho que foi um trabalho incrĆ­vel, muito gratificante. E eu acho que o mais gratificante Ć© que o RuralĆ“metro acabou incentivando e inspirando outrosĀ  projetos que estĆ£o por aĆ­, tipo o Elas no Congresso, que tem esse mesmo repórter doĀ  programa, só que focado na questĆ£o de gĆŖnero, na questĆ£o da mulher e da representatividadeĀ  da mulher. Enfim, foi uma experiĆŖncia incrĆ­vel, mas eu jĆ” destaco para vocĆŖs que o jornalismoĀ  de dados Ć© bem desafiador e Ć© interessante que vocĆŖ ter um especialista dessa Ć”rea junto,Ā  trabalhando junto com vocĆŖ, porque sĆ£o trabalhos muito complementares. E Ć© isso, oĀ  RuralĆ“metro acabou contando com a colaboração de 12 pessoas e eu acho que a gente foi uma equipe muito multidisciplinar que acabou agregando muito ao projeto. EntĆ£o, estamos aĆ­, jĆ” nos preparativos para 2022.Ā 


[17:43] E como você acha que os leitores da Repórter Brasil receberam  essas visualizações dos dados que vocês fizeram? 


[17:53] Ana Magalhães: Muito interessante tua pergunta, novamente. A gente quebrou muito a cabeça para que o RuralÓmetro fosse um projeto para entender. Muito. O tempo todo o trabalho da equipe era quebrar a cabeça de qual o jeito  mais fÔcil do nosso leitor entender o RuralÓmetro, entender essas informações que estão aqui, entender o potencial da ferramenta, entender esse monte de informação que estÔ  jogada ali. O RuralÓmetro tem milhares de informações, tem milhares de layers de informação, e eu entendo que isso pode ser um pouco confuso ou um pouco assustador para um leitor que não estÔ acostumado. A gente quebrou muito a cabeça para que ele fosse  muito fÔcil de usar. Se a gente conseguiu cumprir isso, eu não consigo nem te dar com certeza.  Eu sim, sei, que para algumas pessoas, eu me lembro que, na época que eu lancei o RuralÓmetro eu era casada e eu mostrei para o meu ex-marido, ele nem era jornalista, ele era historiador, eu joguei para ele e "me fala o que você entende, o que você acha que você, por onde você clica". Eu fui testando ele por onde ele navegava no Rura. E, bom, ele era um historiador muito interessado nesse assunto, então ele estava muito interessado em explorar  aquela ferramenta. E foi muito interessante que no teste que fiz com ele, ele entendeu muito bem,  ele foi fuçando, foi entendendo e foi bem interessante. Mas depois que o RuralÓmetro foi  publicado, eu tive o feedback de algumas pessoas assim: "Ai Ana, eu mostrei para o meu pai e  minha mãe, eles são pessoas um pouco mais simples, mais humildes, eu percebi que eles tiveram um pouco de dificuldade de entender o que era aquilo ali, eu tive que explicar um pouco", então, eu acho que o Rura talvez tenha falhado um pouco nisso, ele poderia ter tentado ainda mais simples, mas jÔ garanto para vocês que a gente quebrou muito a cabeça para facilitar o mÔximo possível, para ser intuitivo e fÔcil de usar. Teve uma experiência interessante que a gente fez que é antes de lançÔ-lo, isso é uma coisa rara no jornalismo, mas antes de lançÔ-lo, nós mandamos o RuralÓmetro para umas cinquenta pessoas que eram mais ou menos próximas a nós, que nunca tinham visto o RuralÓmetro antes e fizemos uma pesquisa com essas pessoas para entender o que elas estavam achando, o quão difícil era entender, o  quão fÔcil era entender, o quão fÔcil era navegar, o quão difícil era navegar. O feedback que a gente teve dessas pessoas foi interessante, foi bem interessante. Eu percebi que o  RuralÓmetro não era uma ferramenta tão difícil de ser usada e de ser compreendida, mas, outra vez, eu testei em pessoas que são mais ou menos parecidas comigo, eu nunca cheguei a  testar o RuralÓmetro pegando uma pessoa da periferia de São Paulo, por exemplo, ou uma pessoa do interior de Minas Gerais, que saiba usar o computador, mas que não tenha necessariamente tanta desenvoltura nesse universo. Esse teste eu realmente não fiz, mas no frigir dos ovos, eu acho que o RuralÓmetro não é uma ferramenta tão difícil assim de ser usada, eu acho que ele conseguiu. Ele poderia ser mais acessível? Poderia, mas eu acho que no geral ele  conseguiu cumprir bem a missão dele de que as pessoas conseguissem navegar e soubessem mais ou menos por onde elas estão navegando. Eu acho que não tiramos nota dez nesse quesito, acessibilidade e facilidade de entendimento, mas acho que a gente passou nessa  prova, tirando um pouco mais de seis, talvez. Eu respondi sua pergunta? [a entrevistadora responde no vídeo afirmativamente com um gesto de cabeça, em silêncio] Boa. 


[22:00] Então, Ana, aproveitando esse ponto que você falou sobre acessibilidade, você falou sobre os públicos e como às vezes é difícil atingir determinados públicos e tudo mais, você acha que a Repórter Brasil consegue atingir públicos que às vezes não têm um fÔcil acesso a essa comunicação digital e que poderiam também se beneficiar dessas  informações que são úteis para muitas pessoas que não têm ciência disso, mas também para quem vivencia algumas [dessas] coisas de perto. Você acha que a R.B. também consegue  atingir esse objetivo? 


[22:42] Ana MagalhĆ£es: Olha, eu acho que a gente tem trabalhado duramente para ampliarĀ  o alcance do nosso trabalho, para que ele seja facilmente entendĆ­vel. A gente trabalha duroĀ  nesse aspecto todo tempo, nem sempre os temas que a gente aborda sĆ£o simples e de fĆ”cilĀ  compreensĆ£o, mas a gente faz um esforƧo muito grande por meio por meio de materiaisĀ  complementares, como artes e grĆ”ficos, para tentar deixar isso mais claro para o leitor. Sempre foi uma meta estratĆ©gica na Repórter BrasilĀ de que nosso texto seja muito acessĆ­vel eĀ  entendĆ­vel para qualquer pessoa, que ele possa atingir um pĆŗblico amplo. Em 2017, eu estava entrando na Repórter Brasil, a gente jĆ” tinha comeƧado a fazer uma estratĆ©gia em termos de audiĆŖncia que era o seguinte, a gente comeƧou em 2017 a fazer parcerias com grandes veĆ­culos brasileiro para comeƧar a republicar o conteĆŗdo da Repórter Brasil nessesĀ  veĆ­culos e hoje essas parcerias de republicação estĆ£o muito consolidadas. Quais sĆ£o os principais veĆ­culos que nos republicam? UOL, que Ć© o maior portal jornalĆ­stico do paĆ­s; Folha deĀ  S.Paulo, que se nĆ£o me engano ainda Ć© o jornal mais lido do Brasil; Carta Capital, El PaĆ­sĀ  Brasil. SĆ£o alguns deles, tĆ”? EntĆ£o, como Ć© que funciona, a Repórter BrasilĀ faz umaĀ  reportagem com o olhar dela, com a linha editorial dela, dentro dos temas que ela cobre.Ā  Quando essa reportagem estĆ” pronta, a gente oferece para o UOL e pergunta se o UOL temĀ  interesse em republicar aquele material. Ɖ de graƧa, nĆ£o hĆ” dinheiro envolvido nessa parceria, Ć© uma parceria win-win, Ć© bom para o UOL e Ć© bom para a Repórter BrasilĀ e o queĀ  acontece hoje na Repórter? Eu te diria que mais ou menos 85%Ā  das nossasĀ  reportagens sĆ£o republicadas nesses veĆ­culos, hoje principalmente FolhaĀ e UOL. Eu acho que essa experiĆŖncia Ć© muito rica para a Repórter. O que a gente quer com essas parcerias de republicação? A gente quer atingir um pĆŗblico mais amplo e sobretudo um pĆŗblico mais variado. Se vocĆŖ pensar que o UOL Ć© o portal mais lido do Brasil, a gente estĆ” falando de milhares e milhares de cliques por dia no portal UOL. EntĆ£o, quando a gente publica no UOL... E o UOL tem um viĆ©s muito interessante, como Ć© um portal muito grande e tem gente de todo tipo lendo, gente de esquerda, gente de direita, gente do interior, gente de grandes cidades. Tem uma grande variedade de tipos de pessoas lendo UOL, ele jĆ” necessariamente tem uma linguagem mais simples e mais clara para o pĆŗblico amplo e nós tambĆ©m temos essa linguagem. EntĆ£o, foi uma parceria perfeita. EntĆ£o, eu acho que por meio dessas parcerias, Gabrielle, a gente acaba, sim, atingindo pĆŗblicos variados, mas, agora vocĆŖ tem razĆ£o nessa sua pergunta, quando vocĆŖ analisa os leitores que estĆ£o clicando no site da Repórter Brasil, a gente tem um nĆŗmero muito bom de cliques no nosso site anualmente, anualmente chega a 3 milhƵes, 3,5 milhƵes de cliques no nosso site. Ɖ um nĆŗmero relativamente alto para esse universo do jornalismoĀ  independente, nĆ£o Ć© um nĆŗmero que eu ignoro. EntĆ£o temos pessoas, temos leitores fiĆ©is que entram no nosso site, que clicam, que nos acompanham, que nos acompanham nas redes.Ā  Temos um pĆŗblico fiel, digamos, mas jĆ” sabemos que esse nosso pĆŗblico fiel, que entra no site, a gente jĆ” entende que ele tem um perfil, ele jĆ” tem uma escolaridade um pouco mais alta do que a mĆ©dia, digamos que Ć© um pĆŗblico mais qualificado, mas quando essa mesma matĆ©ria que estĆ” no meu site, estĆ” no UOL, muitas vezes a gente "manchetou" o UOL, a genteĀ  foi manchete do UOL vĆ”rias vezes, inĆŗmeras vezes a gente "mancheta" o UOL, e aĆ­ eu tenho uma ideia de que a gente estĆ” atingindo um pĆŗblico muito maior do que a gente pensa, na verdade, por meio dessas parcerias com esses veĆ­culos. EntĆ£o, eu acho que a história Ć© essa, oĀ  nosso leitor do site Ć© um leitor mais qualificado, mais fiel e menor, mas essas parcerias nos permitem ampliar esse pĆŗblico e ampliar nossa perspectiva de impacto. A gente quer fazer um jornalismo investigativo, a gente quer fazer nĆ£o, a gente faz um jornalismo investigativo de impacto, ou seja, queremos impactar o mundo, a gente quer transformar a realidade. Acho que Ć© por aĆ­.Ā 


[00:27:51] Legal, Ana. E acho que como você falou, isso é muito importante quando a gente atinge um público variado mesmo e acho que essa iniciativa do UOL realmente  abre portas para vocês terem um público bem mais amplo que eu imagino que seja um pouco  diferente de quem acessa diretamente o site da Repórter Brasil. 


[28:10] Ana MagalhĆ£es:Ā Posso só fazer um comentĆ”rio rĆ”pido, Gabrielle? Ɖ atĆ© interessanteĀ  essa historia do UOL e da nossa parceira com o UOL porque jĆ” aconteceu antes de a gente dar um furo nosso, um furo de reportagem nosso que sai junto com o UOL, que repercute naĀ  imprensa inteira, mas as pessoas acham que Ć© um furo do UOL, entendeu? Só um leitor atento percebe que na verdade Ć© um furo da Repórter Brasil. E isso jĆ” aconteceu vĆ”rias vezes. Por exemplo, nĆ£o sei se vocĆŖ se lembra no ano passado, na Ć©poca que os brigadistas de Alter do ChĆ£o foram presos, nós soltamos junto com o UOL, em parceria com o UOL, um Ć”udio do prefeito de SantarĆ©m que desmentia a tese de que os culpados pelo incĆŖndio lĆ” em Alter do ChĆ£o eram os brigadistas. Cara, essa matĆ©ria nossa foi para o FantĆ”stico, ela repercutiu em todos os lugares do Brasil, todos. Assim, eu vi a GloboNews citando essa matĆ©ria, eu me lembroĀ  que a GloboNews foi muito correta e falou ā€œsegundo a Repórter Brasilā€, mas euĀ  lembro que, por exemplo, quando um desses brigadistas de Alter de ChĆ£o ou aquele cara daĀ  ONG de ā€œDoutores da Alegriaā€, quando ele foi para o ā€œRoda Vivaā€, uma das jornalistas perguntaĀ  para ele sobre o tal Ć”udio do prefeito e ela fala "ai, eu acho que foi um furo do UOL". NĆ£o, nĆ£o foi um furo do UOL, foi um furo da Repórter BrasilĀ que o UOL republicou. Mas tudo bem, a gente nĆ£o fica enciumado quando isso acontece porque o que a gente quer Ć© isso, eu quero que essa noticia, que ela tenha o mĆ”ximo de impacto possĆ­vel e se ela estĆ” indo para oĀ  ā€œRoda Vivaā€, esse assunto estĆ” indo para o ā€œRoda Vivaā€, eu jĆ” fico feliz, entende. Só queriaĀ  fazer esse comentĆ”rio.Ā 


[30:02] Legal, Ana. Eu acho que condiz muito tambĆ©m com a visĆ£o daĀ  própria R.B.Ā que vocĆŖ falou, nessa questĆ£o de realmente. Ɖ um objetivo muito maior do que apenas o nome.Ā 


[30:13] Ana Magalhães: Exato. A marca em si, claro que a gente estÔ preocupado com  nosso nome e com nossa marca, mas a gente quer transformar o mundo. Então, se as nossas  notícias estão circulando por aí, eu estou feliz. Se ela estÔ gerando impacto, gerando  investigações, gerando denúncias, gerando mudanças, estamos cumprindo a nossa missão.  Acho que é isso. 


[30:36] Eu queria aproveitar que você falou um pouquinho sobre maneiras de tornar as reportagens mais acessíveis e falar um pouquinho dos formatos com os quais vocês trabalham. Vocês hoje têm podcasts, também fizeram muitos documentÔrios e têm vÔrios prêmios. Então eu queria entender como é para você trabalhar com esses formatos diferentes e qual a importância deles para tornar esses conteúdos mais pulverizados e acessíveis. 


[31:09] Ana MagalhĆ£es:Ā Perfeito. AĀ Repórter BrasilĀ tem quatro nĆŗcleos dentro dela. EuĀ  gosto de explicar isso primeiro porque nem todo mundo entende. Um dos nĆŗcleos Ć© o nĆŗcleoĀ  de jornalismo. A gente tem o nĆŗcleo de documentĆ”rios que nĆ£o Ć© tocado por mim, Ć© tocadoĀ  pelo Carlos Juliano Barros que Ć© um documentarista brilhante. A gente tem um braƧo maisĀ  ONG, mais educacional, Ć© o programa "Escravo Nem Pensar", que faz formação de professores, e a gente tem um braƧo mais voltado para pesquisa, que vai a campo e faz pesquisa em campo, escreve mais relatórios. EntĆ£o, todo esse trabalho que vocĆŖ estĆ” dizendo, muitas vezes ele nĆ£o Ć© tocado pela agĆŖncia de jornalismo que Ć© coordenada por mim, pode ser tocada porĀ  outro nĆŗcleo, mas sim, a gente sempre teve muita preocupação e a gente costuma dizer que o que a Repórter BrasilĀ faz Ć© comunicação, nĆ£o Ć© só jornalismo, Ć© comunicação, no sentido mais amplo, digamos. E aĆ­, foi este ano que a gente lanƧou nossos podcasts, a gente lanƧou duas sĆ©ries de podcasts, um pouco diferentes entre si. Foi muito interessante a experiĆŖncia do podcast porque a gente reparou que, com o podcast, nós estamos atingindo um novo tipo deĀ  pĆŗblico que nĆ£o necessariamente lĆŖ nossas reportagens ou vĆŖ nossos documentĆ”rios e isso é  muito interessante para a organização. Ɖ isso mais ou menos o que a gente quer. Mas sim, a Repórter BrasilĀ tem uma longa tradição em documentĆ”rios, a gente tem documentĆ”rios premiadĆ­ssimos, com prĆŖmios internacionais. Desde 2012, tem dez anos que a gente faz longas, documentĆ”rios de longa-metragem. TambĆ©m fazemos na agĆŖncia de jornalismo o que a genteĀ  chama de mini documentĆ”rios que sĆ£o vĆ­deos muito mais curtos, muitas vezes de quatro minutos, cinco minutos. Houve uma Ć©poca que esses nossos vĆ­deos viralizavam, com cinco milhƵes de cliques e tal. E tambĆ©m, dentro do universo de reportagem, a gente tem diferentes tipos deĀ  trabalho. A Repórter,Ā ela tambĆ©m tem uma tradição muito interessante em fazer duas coisas: especiais multimĆ­dias, que Ć© uma pĆ”gina que tenta trazer o leitor para uma imersĆ£o maior usando vĆ”rios recursos, usando vĆ­deos, usando Ć”udios, usando texto, usando fotos, usando imagens, usando grĆ”ficos, usando movimento. E a gente tem tambĆ©m uma longa e antiga tradição de fazer uma coisa que chamo de ferramentas de utilidade pĆŗblica, porque para mim tecnicamente elas nĆ£o sĆ£o um especial multimĆ­dia. Por exemplo, o RuralĆ“metro Ć© uma ferramenta de jornalismo de dados e ele Ć© uma ferramenta que tem uma utilidade pĆŗblica. VocĆŖ entra ali e vocĆŖ consegue ter uma visĆ£o de como estĆ” sendo o trabalho de algunsĀ  parlamentares brasileiros e se vocĆŖ quer votar novamente naquele cara que estĆ” se candidatando Ć  reeleição. Parecido com o RuralĆ“metro a gente tem o Moda LivreĀ tambĆ©m, que Ć© um aplicativo que tem um site, Ć© um aplicativo de celular em que a gente meio que pontua vĆ”rias marcas da moda sobre como e quĆ£o transparente elas sĆ£o e quĆ£o respeitosas elas sĆ£o no universo, no que tange Ć s condiƧƵes trabalhistas do universo tĆŖxtil. E eu acho que Ć© muito interessante porque essa tradição de multimĆ­dias e de ferramentas de consulta deĀ  utilidade pĆŗblica sĆ£o um baita de um diferencial da Repórter Brasil. Eu acho que nĆ£o por acaso a gente acaba de ser premiado pelo prĆŖmio Vladimir Herzog pelo especial multimĆ­dia. Acho que Ć© um diferencial da Repórter BrasilĀ e eu acho que a ideia Ć© essa. O que a RepórterĀ faz Ć© comunicação de vĆ”rias formas, vĆ”rios tipos, formas diferentes, buscando amplidĆ£o deĀ  pĆŗblico e impacto mesmo. Eu acho que a ideia Ć© essa.Ā 


[35:36] VocĆŖ falou bastante sobre esses projetos que vocĆŖs tĆŖm, que sĆ£o realmente bem diferentes, e tem um que Ć© muito legal, que a gente tinha separado paraĀ  conversar com vocĆŖ que Ć© o RobotoxĀ [bot desenvolvido para o antigo Twitter em 2019 no projeto Por trĆ”s do alimento, parceria entre a Repórter BrasilĀ e a AgĆŖncia PĆŗblica]. VocĆŖs criaram basicamente um robĆ“ do bem, projeto super legal, e ele tweeta toda vez que o governo federal libera algum registro deĀ  agrotóxico etc. Como tem sido essa experiĆŖncia? Eu acho que Ć© um recurso bem diferente dentro do jornalismo. Ɖ uma coisa que vocĆŖ recomenda para outros veĆ­culos, outros portais? E como vocĆŖ enxerga a integração desse tipo de ferramenta no jornalismo?Ā 


[36:19] Ana MagalhĆ£es:Ā Eu acho que Ć© uma tendĆŖncia muito forte no jornalismo usar a inteligĆŖncia artificial, usar robĆ“s para monitorar uma determinada Ć”rea. Eu acho que isso é  muito enriquecedor, tanto para o jornalismo em si, quanto para a sociedade de maneira geral. Ɖ muito Ćŗtil que vocĆŖ tenha, o Robotox Ć© muito incrĆ­vel, ele faz tudo aquiloĀ  automaticamente. VocĆŖ fala assim: "gente, nĆ£o tem um ser humano por trĆ”s, fazendoĀ  isso?". NĆ£o, tem um ser humano pensando aquele projeto, desenvolvendo oĀ  Robotox e ele toca isso sozinho. Tem vĆ”rias experiĆŖncias similares, se nĆ£o me engano oĀ  Aos Fatos,Ā que Ć© um site independente de checagem de notĆ­cias, tem vĆ”rios robĆ“s por aĆ­. EuĀ  acho que Ć© uma tendĆŖncia e eu acho que Ć© uma tendĆŖncia muito enriquecedora. Como euĀ  te disse, tem muito para atividade jornalĆ­stica, quanto para a sociedade de maneira geral. Ɖ um jeito prĆ”tico de a sociedade de se informar, por exemplo, sobre os registros dosĀ  agrotóxicos por meio do RoboTalks. Eu só fico com medo deles roubarem nossos empregos,Ā  esses robĆ“s, mas isso nĆ£o vai acontecer, nĆ£o, gente (ela ri). Ɖ brincadeira.Ā 


[37:46] Ai, Ana, nem fala, nossa nova geração Ć© da Ć”rea tecnológica agora. Eu queria voltar um pouquinho, naquela parte que vocĆŖ jĆ” explicou, que era atĆ© umaĀ  pergunta da gente sobre os ramos da Repórter Brasil: Jornalismo; Pesquisa; Educação… E qualĀ  dessas Ć”reas vocĆŖ acredita que Ć© o carro-chefe da Repórter Brasil? O que os leitores vĆ£oĀ  para o site procurar.


[38:17] Ana MagalhĆ£es:Ā Nesse aspecto do site, realmente o jornalismo Ć© o carro-chefe. PorĀ  quĆŖ? Ɖ muito interessante, porque o jornalismo, na essĆŖncia, ele trabalha com isso. NĆ£o adianta vocĆŖ fazer uma muito boa matĆ©ria, uma muito boa investigação, uma muito boa reportagem e ninguĆ©m ler aquela reportagem. EntĆ£o, hĆ” uma parte do trabalho jornalĆ­stico que Ć© a divulgação, que Ć© fazer aquele trabalho chegar Ć s pessoas. O site e as redes sociais sĆ£o nossas ferramentas de trabalho o tempo todo, Ć© a minha ferramenta de trabalho. OsĀ  nossos colegas do Escravo Nem Pensar, por exemplo, que Ć© o braƧo educacional da Repórter Brasil, eles tĆŖm vĆ”rias outras ferramentas de trabalho, alĆ©m das redes sociais, alĆ©m daĀ  divulgação do trabalho deles. Eles tĆŖm, por exemplo, a sala de aula. Ɖ principalmente na sala de aula onde eles trabalham, fazendo formação de gestores pĆŗblicos e de professoresĀ  pĆŗblicos. JĆ” no caso da agĆŖncia de jornalismo, as minhas principais ferramentas de trabalhoĀ  sĆ£o o site e as redes sociais. EntĆ£o, sem dĆŗvida nenhuma, a maior parte dos leitores que entraĀ  no site, eles entram buscando jornalismo, sem dĆŗvida nenhuma, mas um pouco por contaĀ  disso, o jornalismo só completa a sua missĆ£o quando ele chega no pĆŗblico leitor.Ā 


[39:50] Ɖ verdade, concordo com vocĆŖ. JĆ” que a gente estĆ” falando sobre as reportagens, a questĆ£o do jornalismo e o seu pĆŗblico, como vocĆŖ acha que ao longo dos anos tem evoluĆ­do a questĆ£o do financiamento que vocĆŖs tĆŖm? Porque financiamento Ć© uma palavra-chave para o bom jornalismo e como vocĆŖs sĆ£o uma ONG (a Repórter BrasilĀ Ć© formalmente uma Oscip - Organização da Sociedade Civil de Interesse PĆŗblico), vocĆŖ acredita que facilita o financiamento do trabalho de vocĆŖs? Como funciona essa parte?Ā 


[40:18] Ana MagalhĆ£es:Ā Ć“tima pergunta. A Repórter BrasilĀ tem hoje um modelo deĀ  negócios muito parecido com outros veĆ­culos independentes, como a AgĆŖncia PĆŗblicaĀ ou atĆ© mesmo outros projetos como, por exemplo, como a AmazĆ“nia RealĀ que sĆ£o projetos que aĀ  gente acompanha tĆ£o de perto e sĆ£o parceiros nossos tambĆ©m. Ɖ o seguinte modelo: Ć© umaĀ  instituição sem fins lucrativos e que ela Ć© financiada por projeto, por organizaƧƵesĀ  normalmente filantrópicas e normalmente internacionais. EntĆ£o, hoje a agĆŖncia de jornalismo da Repórter Brasil, vouĀ  falar pela agĆŖncia, hoje a agĆŖncia de jornalismo da Repórter BrasilĀ Ć© financiada por fundaƧƵes, como por exemplo a Ford Foundation. Ɖ uma das fundaƧƵes que financiou o nosso trabalho jornalĆ­stico. Tem outras tambĆ©m, nós temos outras trĆŖs fundaƧƵes que hoje financiam o nosso trabalho jornalĆ­stico. Eu acho, Danielly, que esse Ć© um modelo que veio para ficar. A gente vĆŖ nos Estados Unidos, por exemplo, uma das mais importantes agĆŖncias de jornalismo investigativo hoje Ć© a ProPublicaĀ que ela Ć© financiada pela filantropia, seja por doaƧƵes de grandes instituiƧƵes que estĆ£o doando para a ProPublica, para ela fazer o trabalho jornalĆ­stico investigativo que ela faz, ou seja por meio de doaƧƵes de pessoas. Nos Estados Unidos - Ć© muito interessante de a gente discutir sobre isso, eu gosto muito de falar sobre isso -, nos Estados Unidos existe uma cultura muito maior da filantropia do que no Brasil. Ɖ uma questĆ£o cultural mesmo. Muitas vezes Ć© isso: o trabalhador mĆ©dio doa US$ 50,00 (cinquenta dólares) por mĆŖs para a ProPublicaĀ e eu acho que Ć© interessante porque hoje Ć© a maior parte dos financiadores da Repórter BrasilĀ sĆ£o grandes instituiƧƵes e principalmente internacionais, mas a gente tambĆ©m tem um esquema de que os próprios leitores podem doar para Repórter BrasilĀ por meio do site nĆ© ou por meio de campanhas crowdfunding e similares. Eu incentivo sempre essa doação, que as pessoas que podem que elas faƧam doaƧƵes para essas organizaƧƵes ou para a organização que ela tem mais afinidade, porque sair do modelo de negócios de anĆŗncio publicitĆ”rio Ć© muito interessante. Eu, na minha vida, na minha carreira, eu trabalhei em grandes veĆ­culos. Eu comecei minha carreira em Belo Horizonte, num jornal de Belo Horizonte. EntĆ£o eu tenho uma certa experiĆŖncia em como Ć© trabalhar em organizaƧƵes que tĆŖm um outroĀ  modelo de negócios, que Ć© esse modelo da publicidade, que Ć© o modelo do anĆŗncio publicitĆ”rio. O modelo do anĆŗncio publicitĆ”rio eu acho que ele estĆ” pouco a pouco ruindo, com essa migração toda para aĀ  internet, mas eu me lembro, em SĆ£o Paulo nĆ£o, mas em BH, neste jornal que eu prefiro nĆ£oĀ  mencionar do nome, jĆ” aconteceu de eu ver claramente influĆŖncia do comercial no trabalhoĀ  jornalĆ­stico. Assim, "dessa empresa nĆ£o, a gente nĆ£o fala muito dessa empresa porque elaĀ  gasta fortunas em anĆŗncios aqui no jornal". Eu jĆ” vi isso acontecendo e enfim... Quando vocĆŖĀ  parte para esse novo modelo, o modelo da Repórter Brasil, da AgĆŖncia PĆŗblica, da AmazĆ“nia Real, da ProPublicaĀ e de tantos outros que estĆ£o aparecendo aĆ­, no Brasil e no mundo, vocĆŖ de fato parte para um jornalismo que ele Ć© um pouco mais independente, no seguinte sentido: nĆ£o Ć© Ć  toa que nós, na Repórter Brasil, uma das nossas grandes especialidades Ć© investigar grandes empresas. A gente investiga muito grandes empresas, tipo, posso te dar alguns exemplos: JBS, Vale (do Rio Doce), Cargill. SĆ£o grandes empresas, algumas delas multinacionais no Brasil, algumas delas inclusive com laƧos muito estreitos na polĆ­tica, como a gente pode ver com a JBS, que sempre foi uma grande financiadora de polĆ­ticos e tem mil escĆ¢ndalos envolvendo a JBS com caixa dois, porĀ  exemplo, ela comprando polĆ­ticos e afins, mas Ć© muito interessante de vocĆŖ ver isso. Nós nĆ£o temos nenhum problema de investigar esses grandes empresas, muito pelo contrĆ”rio, Ć© uma das nossas metas Ć© investigar essas grandes empresas. E, claro, qual Ć© a vantagem da Repórter Brasil? Eu nĆ£o recebo nenhum centavo do JBS de publicidade, concorda? Nenhum centavo. Meu modelo de negócios Ć© outro, ele passa por outro lugar. Agora, para o outro lado, se vocĆŖ ligar a TV, a primeira coisa que vocĆŖ vai ver Ć© um monte de anĆŗncio da JBS, inclusive neste exato momento tem um monte de anĆŗncio da JBS na imprensa brasileira, em rĆ”dio, TV e em todo lugar. E aĆ­ eu ficoĀ  sempre me perguntando, o quanto essas grandes organizaƧƵes tĆŖm ou nĆ£o um rabo preso com a JBS ou o quanto elas sĆ£o capazes ou nĆ£o, bancam ou nĆ£o investigar a JBS, sendo que elas estĆ£o sendo, de certa maneira, sustentadas, estĆ£o recebendo um grande volume de recursos pela JBS. EntĆ£o, acho que esse novo modelo de negócios que ele Ć© mais baseado na filantropia, seja de pessoas, de indivĆ­duos ou de grandes fundaƧƵes, ele Ć© um pouco mais independente. NĆ£o Ć© Ć  toa que a gente fala que este novo nicho do mundo jornalĆ­stico Ć© o chamado jornalismo independente, ele tem menos amarras, entĆ£o ele pode investigar o que ele quiser, pode investigar grandes empresas, grandes empresĆ”rios, empresĆ”rios poderosos e eu acho que isso talvez seja interessante para o futuro do jornalismo, essa mudanƧa um pouco de eixo, do modelo de negócios pode ser enriquecedor do jornalismo, de certa maneira. Eu entendo que as grandes relaƧƵes e o modelo de negócio tradicional estĆ£o passando por uma crise e isso Ć© muito ruim porque a gente vĆŖ muitas demissƵes e a gente ainda nĆ£o sabe para onde vamos, mas hĆ” tambĆ©m o surgimento de novos modelos que eu acho que sĆ£o muito promissores e muito positivo. EntĆ£o, eu nĆ£o vejo o mercado jornalĆ­stico com tanto pessimismo nĆ£o, muito pelo contrĆ”rio. Eu sou muito otimista quanto a esse momento de transição que a gente vive.Ā 


[47:23] Olha, é muito bom ouvir isso vindo de você, uma jornalista, porque às vezes a gente fica bem desanimado com as questões atuais, não vou mentir. 


[47:32] Ana MagalhĆ£es:Ā Pois Ć©, Danielly, sabe o que eu acho? Ɖ muito interessante, porqueĀ  eu converso muito com coordenadores e editores do universo independente e Ć© lindo de ver.Ā  Eu comecei a trabalhar no jornalismo independente em 2015, um pouco antes da RepórterĀ  Brasil, mas Ć© bonito de ver o quanto essas organizaƧƵes estĆ£o: primeiro, crescendo;Ā  segundo, cada vez mais fazendo um trabalho muito relevante; terceiro, cada vez mais fazendo um trabalho muito inovador tambĆ©m, diferente, mais arrojado, mais moderno, com novos recursos, com muita inteligĆŖncia artificial, com jornalismo de dados. Ɖ muitoĀ  gratificante. Eu sim jĆ” vi, nesses Ćŗltimos cinco anos, um crescimento muito grande desse universo de veĆ­culos independente e eu tenho certeza que Ć© uma tendĆŖncia, que eles vĆ£oĀ  continuar crescendo e eu tenho certeza que vocĆŖs terĆ£o, daqui a alguns anos, quando vocĆŖs seĀ  formarem, mais oportunidades nesses independentes tambĆ©m que estĆ£o fazendo umĀ  trabalho exemplar. EntĆ£o, eu nĆ£o vejo o mundo jornalĆ­stico com tanta preocupação e essaĀ  história de que o jornalismo vai acabar, imagina, o jornalismo nunca vai acabar.


[48:54] Ai, que bom ouvir isso. Eu acredito sim, uma parte assim do que eu acho, Ć© que o jornalismo independente mais bonito de ver Ć© que apesar de lidar com aĀ  instantaneidade das questƵes, do momento, dĆ” para fazer reportagem boa, de qualidade,Ā  mesmo com essa dinĆ¢mica toda do digital que Ć© tudo corrido. EntĆ£o, o que eu mais gosto de ver Ć© isso, porque hoje em dia que a gente mais vĆŖ no dia a dia, apesar de ser um outro tipo,Ā  serem notĆ­cias e nĆ£o serem reportagens longas e tudo, Ć© a coisa do corrido, pouca informação, aquela coisa do ter que postar logo porque notĆ­cia tem que ir logo. Eu sinto falta desse jornalismo mais detalhado, mais reportagem e Ć© bonito de ver que os veĆ­culos independente como a Repórter BrasilĀ fazem um trabalho bonito e grande. Ɖ muito legal ver isso.Ā 


[49:46] Ana MagalhĆ£es:Ā Acho que vocĆŖ tem razĆ£o, acho que tem muita razĆ£o nisso. Assim,Ā  claro, veĆ­culos diĆ”rios como a Folha de S. Paulo, UOL, EstadĆ£o (Estado de S. Paulo), eles cumprem uma missĆ£o muito importante, muito importante, eles precisam cobrir a notĆ­cia do dia, o quente mesmo e isso Ć© muito relevante, lembrando que, claro, todos esses veĆ­culos sempre fizeram jornalismo investigativo de qualidade, sobretudo para a publicação nos finais de semana. Mas Ć© muito curioso isso, eu nunca tinha pensado muito sobre isso, Danielly. Realmente, os veĆ­culos independentes, por terem uma equipe muito menor, porque a nossa equipe Ć© muito menor do que uma Folha de S. PauloĀ da vida ou do UOL, vocĆŖ imagina. Na Repórter BrasilĀ nós somos cinco jornalistas hoje e um estagiĆ”rio, com alguns freelancers que nos ajudam ali. Mas talvez esses veĆ­culos independentes, por terem uma equipe muito menor e menos estrutura, e tambĆ©m porque UOL, EstadĆ£oĀ e FolhaĀ e O GloboĀ fazem muito bem o trabalho dele na cobertura do dia, esses veĆ­culos terminam entrando onde a grande imprensa nĆ£o entra e muitas vezes aonde ela nĆ£o consegue entrar. Como a grande empresa estĆ” muito focada no dia, no quente, no que estĆ” acontecendo no Congresso, no presidente estĆ” falando, no que o Rodrigo Maia estĆ” falando,Ā  ela tem que estar, alguĆ©m tem que estar fazendo isso, eles acabam nos empurrando para fazer o que… fazendo investigaƧƵes profundas, grandes reportagens. Ɖ muito interessante mesmo ver esse processo, eu acho que o jornalismo brasileiro nos Ćŗltimos cinco anos, sobretudo oĀ  independente, ele amadureceu muito. Se vocĆŖ olhar, sei lĆ”, a relação de veĆ­culos premiados no PrĆŖmio Vladimir Herzog, tem muitos veĆ­culos independentes ali premiados, talvez mais veĆ­culos independentes do que os tradicionais e isso Ć© muito rico, ou seja, sinal de que a gente estĆ” indo no caminho certo, fazendo investigaƧƵes profundas, indo a campo. Durante muito tempo na Repórter, atĆ© hoje a gente tem um pouco essa sensação, muitas vezes nós enviamos repórteres, antes da pandemia porque agora nĆ£o pode - a gente estĆ” um pouco mais parado com viagem -, mas antes da pandemia, muitas vezes, a gente enviava repórteres a lugares para investigar coisas que nĆ£o tinha ninguĆ©m da grande imprensa lĆ”. Um exemplo que euĀ  posso te dar, um exemplo claro disso, no ano passado, nós enviamos uma equipe - sĆ£o viagens mais caras, mas tudo bem, Ć© isso que a gente quer fazer, sĆ£o viagens caras, sĆ£o viagens longas e caras, mas esse Ć© o DNA da Repórter Brasil:Ā a gente vai hoje ninguĆ©m vai. Quando no ano passado,Ā  em outubro, em setembro, nós mandamos uma equipe para Novo Progresso, no meio do ParĆ”,Ā  para investigar o Dia do Fogo, que Ć© a história do fogo, do ataque sincronizado que teria queimado e triplicado os incĆŖndios na AmazĆ“nia, na Ć©poca da seca e que foi um ataque orquestrado, nĆ£o foi um acidente, foi um ataque orquestrado por fazendeiros e empresĆ”riosĀ  da regiĆ£o de Novo Progresso. Quando a gente foi para Novo Progresso, Danielly, eu sabia queĀ  tinha jornalista do The Guardian, eu sabia que tinha jornalista do The New York Times mas nĆ£o tinha jornalistas da grande imprensa brasileira. A Repórter BrasilĀ foi e foi muito interessanteĀ  porque nós estamos com um material muito rico e inĆ©dito sobre o Dia do Fogo, comoĀ  aconteceu esse ataque orquestrado Ć  AmazĆ“nia e, enfim, eu acho que Ć© isso.Ā 


[53:36] Você falou do prêmio, a Repórter Brasil jÔ ganhou vÔrios prêmios, e agora a gente vai então falar um pouco sobre reportagens. Em maio deste ano, no início da pandemia, vocês publicaram a reportagem especial Ameaças, Milícia e Morte: A nova cara do Velho Chico, que ganhou o prêmio do Vladimir Herzog na categoria de produção jornalística e multimídia. Você pode nos contar como pensaram essa pauta, como ela foi desenvolvida e em quanto  tempo? Até por conta das questões da pandemia também. 


[54:12] Ana MagalhĆ£es:Ā Claro, a pessoa perfeita para contar isso para vocĆŖ seria o DanielĀ  Camargos, o repórter, mas eu acompanhei de perto todo processo, Ć© uma história bemĀ  curiosa. O Daniel Camargos, ele cobre hĆ” muito tempo esse tipo de discussĆ£o que Ć© a violĆŖncia no campo, disputa por território, disputa por terra e questƵes fundiĆ”rias, Ć© um assunto muito delicado no Brasil. Ɖ muito interessante isso, porque quem mora na cidade nĆ£o tem muita noção de que isso estĆ” acontecendo no campo brasileiro, mas isso estĆ” acontecendo. A gente costuma falar que tem uma guerra no campo do Brasil. Ɖ uma disputa por terra, Ć© fazendeiro, grandes fazendeiros querendo mais terra, querendo mais terra para aumentar a plantação, para aumentar a lucratividade dele, para aumentar a produção dele, para aumentar pastagem, para aumentar o lucro dele e, por outro lado, a gente tem um enorme contingente de camponeses, humildes, que nĆ£o tĆŖm terra para plantar ou que estĆ£o lutando por uma terra para plantar e sobreviver ou que foram recĆ©m-assentados no programa da reforma agrĆ”ria, enfim, a gente tem uma dĆ­vida histórica no que tange Ć  reforma agrĆ”ria no Brasil. O Brasil nunca fez de fato uma reforma agrĆ”ria ampla e que pudesse atender a demanda e hoje a configuração Ć© bem delicada, a genteĀ  vive uma guerra no campo. Bom, Daniel Camargos Ć© um jornalista com 15, 16 anos de experiĆŖncia aĆ­ e ele vem se especializando muito nesse tema da violĆŖncia no campo. E eu me lembro claramente como comeƧou essa pauta: uma fonte dele, ligada a esse setor, ligou para ele e sugeriu que fossem tomar um cafĆ©. Eu me lembro porque o Daniel me falou e me pediu essa autorização - "Ana, eu marquei com uma fonte minha de tomar um cafĆ©, na hora tal, euĀ  estou indo lĆ”. Só queria te avisar, tudo bem?". E eu falei, "claro, vai sim, estou curiosa. QueĀ  pauta Ć© essa? Que pauta Ć© essa?". E essa pessoa contou essa história para ele, eu nĆ£o possoĀ  revelar quem Ć© essa pessoa, Ć© uma questĆ£o de sigilo da fonte, mas essa pessoa contou toda a história para o Daniel, dizendo isso, de que havia nĆ£o só uma sĆ©rie de ameaƧas em cima desses quilombolas e fazendeiros ali no Rio SĆ£o Francisco, mas essa fonte tambĆ©m nos informou que estava acontecendo no governo federal um processo para garantir a demarcação de terras ali para os quilombolas e os ribeirinhos e que quando o presidente (Jair) Bolsonaro assumiu, este processo de regularização fundiĆ”ria nas margens do Rio SĆ£o Francisco foi paralisado. Essa Ć© a denĆŗncia que a gente recebeu. Quando o Daniel me conta essa história, eu falei "uau, baita história, vamosĀ  fazer?". Eu me lembro atĆ© dessa história, na Ć©poca a gente estava atolado com outras coisas, a gente estĆ” sempre muito lotado de trabalho, a gente sempre quer fazer muito mais coisas do que a gente dĆ” conta de fazer, entĆ£o isso demanda uma organização nossa muito grande e eu meĀ  lembro de ter falado para ele "Daniel, vamos fazer essa história, vamos te mandar para lĆ”, mas agora nesse exato momento nĆ£o consigo. Vamos esperar a poeira baixar". Se nĆ£o me engano, inclusive, essa fonte contou isso para o Daniel antes, foi no ano passado. Se nĆ£o me engano foi antes das queimadas ali na AmazĆ“nia, a gente ficou um tempo rodeando essa história, paquerando e flertando com essa história. E aĆ­ o que acontece? Vem as queimadas, eu decido enviar o DanielĀ  para Novo Progresso para investigar o "Dia do Fogo", ele faz uma longa viagem no final doĀ  ano. Quando ele volta da viagem e eu lembro de ter falado "olha, agora que vocĆŖ voltou doĀ  ParĆ”, eu acho que tua próxima viagem vai ser essa aĆ­ para apurar essa história nas margens doĀ  rio SĆ£o Francisco". AĆ­ armamos, ele foi, se nĆ£o me engano, em dezembro do ano passado, em novembro ou dezembro do ano passado para o Rio SĆ£o Francisco ou talvez em janeiro desteĀ  ano, e ele volta com o material, ele e o Fernando Martinho, fotógrafo. Quando eu vejo o material na minha frente eu falo "uau, que puta história", que baita material, belas fotografias, belos vĆ­deos, eu fico encantada e a gente jĆ” tinha decidido que isso seria um especial multimĆ­dia. AĆ­ comeƧamos a desenvolver o especial multimĆ­dia. O especial multimĆ­dia Ć© um processo muito mais demorado do que as pessoas pensam, nĆ£o Ć© muito simples, tem programação, todo um trabalho de edição de vĆ­deo, todo um trabalho de vocĆŖĀ  discutir como que esteticamente esse especial vai ser, entĆ£o nos tomou - o Daniel, se nĆ£o me engano, voltou dessa viagem em janeiro e nós só publicamos o especial em maio. Mas, nesse tempo, estĆ”vamos ajustando, fazendo os ajustes finais, como seria a estĆ©tica, como que a gente traz o leitor para a história, como estĆ£o nossos vĆ­deos, enfim, foi mais ou menos esse processo. Mas foi uma fonte do Daniel e aĆ­ eu acho que fica essa dica, falo em nome do Daniel, que Ć© um super parceiro meu trabalho, parceiro nosso, um jornalista excepcional e alĆ©m de tudo, alĆ©m de ser um cara muito foda, ele Ć© muito humilde, o que Ć© lindo nele, mas eu acho que o Daniel faz isso muito bem, ele faz vĆ”rias coisas muito bens, uma delas Ć© manter fontes, ele se comunica muito bem, ele mantĆ©m as fontes dele e sempre quando uma fonte dele liga para ele e fala assim "estou precisando tomar um cafĆ© com vocĆŖ porque eu quero te contar umaĀ  história", ele presta atenção e vai tomar um cafĆ©, eu acho que ele faz isso muito bem. AlĆ©m disso, oĀ  Daniel Ć© um cara muito bom a apuração em campo, porque ele tem e eu acho que nesseĀ  aspecto sintoniza muito com a Repórter Brasil, a gente costuma dizer que nós nĆ£o queremosĀ  apenas denunciar as violaƧƵes que estĆ£o atingindo pessoas humildes no Brasil, a gente querĀ  saber quem estĆ” cometendo essas violaƧƵes, a gente tem uma linha editorial na RepórterĀ  BrasilĀ de que a gente quer investigar os vilƵes, os responsĆ”veis, os vilƵes nĆ£o, mas osĀ  responsĆ”veis por aquelas violaƧƵes e o Daniel Ć© muito bom Ć© fazendo isso, investigando osĀ  responsĆ”veis. EntĆ£o foi em campo, quando a gente foi para o Vale do Rio SĆ£o Francisco, oĀ  Velho Chico, eu nĆ£o fui, mas eu coordenei todo esse processo dele ir, mas quando ele foi, aĀ  gente nĆ£o sabia que o secretĆ”rio de seguranƧa pĆŗblica estava envolvido nessa naquela milĆ­ciaĀ  rural, a gente descobriu isso em campo. Como que a gente descobriu isso? O Daniel, no caso,Ā  ele estava lĆ” em um dos acampamentos ali, num dos assentamentos dos sem-terra ali e estava tendo uma ação de despejo, os policiais estavam despejando os sem-terra de uma fazenda, enfim. Nessa ação de despejo, a polĆ­cia chega junto com uma advogada, que era advogada doĀ  fazendeiro que havia entrado com uma ação na JustiƧa pedindo o despejo daquelas pessoas,Ā  daqueles trabalhadores muito humildes e sem-terra ali. EntĆ£o chega a polĆ­cia junto com essaĀ  advogada do fazendeiro, a representante do fazendeiro. E numa conversa com a advogada,Ā  a advogada revela que o secretĆ”rio de SeguranƧa PĆŗblica do Estado de Minas Gerais, que Ć© o GeneralĀ  MĆ”rio AraĆŗjo, que ele integrava aquele grupo que eles chamavam de "seguranƧa no campo". AĆ­ o Daniel, entĆ£o foi ali, por meio daquela conversa informal com a advogada que o Daniel obteve essa informação e depois que ele obteve essa informação, ele utilizou em vĆ”rios recursos para checar aquela informação, de que de fato havia um envolvimento do MĆ”rio AraĆŗjo e ele consegue de fato checar, existe toda mundo uma denĆŗncia anterior feita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais jĆ” mostrando uma foto do MĆ”rio AraĆŗjo em atuação naquela Ć”rea, tem umaĀ  denĆŗncia formalizada, assinada por vĆ”rias organizaƧƵes lĆ” na Assembleia que jĆ” sinalizava que o General MĆ”rio AraĆŗjo estaria envolvido nessa história, nesse grupo armado de fazendeiros. A gente chama isso de uma milĆ­cia rural, porque o nome tĆ©cnico para isso em isso Ć© milĆ­cia mesmo, da mesma forma como existem as milĆ­cias urbanas atuando fortemente no Rio de Janeiro, existem milĆ­cias rurais de fazendeiros e seguranƧas armados, atuando com poder paralelo no campo, e foi ali que a gente confirmou tudo e entĆ£o decidimos publicar.


[01:04:04] Nossa, que legal que deve ter sido esse trabalho, dÔ até vontade. 


[01:04:09] Ana MagalhĆ£es: Ɖ interessante, viu, Ć© bem interessante, mas Ć© desafiador tambĆ©m, dĆ” medo.Ā 


[01:04:16] Essa é justamente a pergunta que a gente ia fazer agora, justamente sobre isso, porque apurar as milícias, como nessa reportagem e outras violências, deve ser difícil. Eu queria saber se vocês jÔ passaram por alguma dificuldade grande e se vocês jÔ desenvolveram algum protocolo de proteção dos profissionais nesse trabalho de campo. 


[01:04:41] Ana MagalhĆ£es:Ā Sim, a gente segue protocolos, a gente segue a maioria dosĀ  protocolos sugeridos pelas organizaƧƵes internacionais especializadas nisso, que sĆ£oĀ  basicamente o seguinte: 1) sempre tem uma equipe de apoio acompanhando muito de perto aĀ  equipe que estĆ” em campo. Muitas vezes, sou eu que faƧo isso. Eu estou sempre em contatoĀ  com o Daniel, ele sempre me dĆ” um roteiro dele dia a dia. Ele acorda fala "bom dia, hoje euĀ  vou passar por esses caminhos, vou passar nesses lugares". Quando ele chegar no hotel, ele meĀ  fala "boa noite, estou no hotel, estĆ” tudo certo". Houve situaƧƵes mais delicadas em que eu monitorei o Daniel por GPS. Em Novo Progresso eu monitorava ele por GPS. EntĆ£o, ele tinha umĀ  GPS o tempo todo ligado no celular dele e eu com esse GPS o tempo todo na minha frente. Ɖ claro que nĆ£o ficava o tempo todo parada vendo o GPS dele, enfim, porque tenho que trabalhar, eu tenho que fazer mil coisas, mas euĀ  sempre olhava, jĆ” aconteceu de eu monitorar o Daniel pelo GPS. A gente tem outros protocolos que Ć© sempre ir para esses lugares com lideranƧas, com contatos prĆ©vios, tanto com lideranƧas locais de comunidades quanto de telefone de autoridades, caso alguma coisa aconteƧa, de pessoas representantes do MinistĆ©rio PĆŗblico, atĆ© da PolĆ­cia Federal e sempre a gente entra nessas histórias com pessoas que a gente sabe que tĆŖm uma articulação muito boa com essas comunidades, por exemplo, a CPT, que Ć© a ComissĆ£o Pastoral da Terra, entĆ£o, tambĆ©m nĆ£o entramos nesses lugares sozinhos e desavisados. A gente sempre, antes, sonda com membros da CPT ou do Cimi [Conselho Indigenista MissionĆ”rio], que Ć© o movimento indĆ­gena, tudo que acontece na Ć”rea, "vocĆŖĀ  pode me levar lĆ” em apresentar essas pessoas". EntĆ£o, sempre fazemos nossas articulaƧƵes tambĆ©m. E sim, seguimos fielmente esse protocolo de seguranƧa em campo, mas muitas vezes, Danielly, eu fiquei preocupada com o Daniel na Ć©poca da publicação da matĆ©ria mesmo. NĆ£o Ć© a primeira matĆ©ria que o Daniel faz, ele assinando porque ele dĆ” mais o nome do que eu, sempre tem uma atuação minha de bastidor, mas o nome que estĆ” impresso Ć© o dele, ele estÔ  um pouco mais exposto do que eu, digamos, com essas matĆ©rias. JĆ” aconteceu de a gente publicar a matĆ©ria e eu ficar um pouco preocupada do que pode acontecer, sabe? JĆ” aconteceu e eu me lembro de uma vez em que o Daniel, assim que ele entrou na Repórter Brasil, ele fez um perfil de um dos maiores grileiros do Brasil. Esse cara atĆ© morreu recentemente, nos Ćŗltimos dois anos. Um dosĀ  maiores grileiros do Brasil, ele era um cara perigoso, um cara que tem na conta dele milhares de assassinatos, enfim, o grileiro Ć© um criminoso, um alto criminoso e esse cara, nao vou falar o nome dele, imagina, que ele Ć© falecido, que descanse em paz, e esse cara morava no interior de SĆ£o Paulo. E nessa Ć©poca o Daniel morava aqui em SĆ£o Paulo e a gente trabalhava em SĆ£o Paulo. Eu fazia essa brincadeira, em tom de brincadeira, mas lĆ” no fundo era na verdade, de "nossa, Daniel, estou morrendo de medo de a gente aqui trabalhando e o Fulano de Tal passar aqui na porta e sair atirando aqui na casa da Repórter Brasil". A gente faz direto essa brincadeira, mas assim, Ć© uma brincadeira? Ɖ, mas tem um fundinho de verdade, sabe, de eu ficar, tipo, "putz, estamos publicando a matĆ©ria, vamos ficar esperto agora, Daniel me diz qualquer movimento estranho que vocĆŖ sentir, me avisa qualquer telefonema estranho que vocĆŖ receber". Eu sempre fico meio assim, mas, olha, graƧas aos nossos orixĆ”s e graƧas Ć s deusas nunca aconteceu nada, mas sempre a gente, o time inteiro Ć© muito atento com isso. Ɖ perigoso.Ā 


[01:09:18] Isso me fez lembrar a pesquisa que eu fiz, para fazer as perguntas e para fazer a outra reportagem também, a questão da Starbucks [por conta da reportagem "Starbucks: fazendas de café certificadas são flagradas com trabalho escravo e infantil em Minas Gerais"], que eu tinha lido, que eles procuraram a redação de vocês para poder saber sobre a situação da reportagem e foi uma das reportagens que ganharam cunho nacional e internacional. Então, como vocês lidaram com essa situação naquele momento? Porque, como estÔ falando dos ataques, do medo de atingir a Repórter Brasil, uma empresa renomada procurou vocês e essas situações assim, como vocês lidam? 


[01:09:55] Ana MagalhĆ£es:Ā Ć“tima pergunta, Danielly. Eu jĆ” tinha te contado um pouco essaĀ  história naquela nossa primeira conversa. EngraƧado, eu costumo brincar aqui, eu tenhoĀ  vontade de escrever um livro sobre a pressĆ£o que as empresas fazem sobre o bom jornalismo, as grandes empresas. Essa história com a Starbucks nĆ£o foi a Ćŗnica, houve uma outra grandeĀ  empresa que uma Ć©poca nos procurou. O que eles fazem, qual Ć© estratĆ©gia dessas grandesĀ  empresas? Pelo menos no caso da Starbucks ficou muito comprovado que era uma estratĆ©giaĀ  dela. Ela passou dois meses, ela nos escreveu, nós publicamos uma matĆ©ria dizendo que aĀ  Starbucks estava comprando cafĆ© de uma fazenda que havia sido autuada por trabalho escravo. Checamos, a Repórter BrasilĀ Ć© muito rigorosa, como a gente faz denĆŗncias muitoĀ  sĆ©rias, como essa, Ć© uma denĆŗncia muito sĆ©ria que mancha a marca Starbucks de um jeitoĀ  que nós temos consciĆŖncia, a gente carrega uma grande responsabilidade para com isso, aĀ  gente sabe disso. Como a gente faz denĆŗncias muito sĆ©rias, o nosso esquema de checagem eĀ  o de comprovação daquela denĆŗncia, eles sĆ£o sempre muito rigorosos na redação, a gente sempre checa muito tudo, o que a gente estĆ” publicando ou escrevendo sempre tem comprovação documental disso. No caso da Starbucks, a comprovação documental que nós tĆ­nhamos eram duas, inclusive, se nĆ£o me falha a memória. Uma delas Ć© que a nossa repórter foi a campo junto com os auditores. Primeiro que foram auditores-fiscais do trabalho que fizeram esse flagrante dos escravizados. Quando euĀ  falo de auditores-fiscais do trabalho, eu estou falando de servidores pĆŗblicos do governo federal. Eles sĆ£o trabalhadores do MinistĆ©rio da Economia, ok? Ɖ um órgĆ£o do governo, sĆ£o servidores do governo dizendo que ali tinha trabalho escravo, naquela fazenda tinha trabalho escravo. E na fazenda, quando a gente entra na fazenda, quando o nosso repórter entra na fazenda, tem uma placa na fazenda com todos os selos de qualidade que aquela fazenda tinha e um dos selos Ć© o C.A.F.E. Practices, que Ć© ligado Ć  Starbucks, ok? EntĆ£o assim, temos um servidor federal do MinistĆ©rio da Economia dizendo que ali tem trabalho escravo, nós vimos aquilo, nós presenciamos aquela autuação, nós temos documentos pĆŗblicos e oficiais que dizem que ali havia trabalho escravo e havia ali uma placa que era um indĆ­cio, dizendo que o selo de qualidade da Starbucks estava, que aquela fazenda tinha um selo de qualidade da Starbucks.Ā 


[01:12:54] Nessa reportagem, só para te perguntar que eu fiquei curiosa, nessa reportagem você estava também em campo? 


[01:13:00] Ana MagalhĆ£es: NĆ£o, eu estava na redação, infelizmente. Ɖ triste, Danielly, mas infelizmente como coordenadora Ć© muito complicado para eu ir a campo, mas eu estou sempre acompanhando o que estĆ” acontecendo em campo, estou sempre orientando esse jornalista do que a gente pode fazer, por onde a gente vai. Bom, vimos aquela placa, para a gente Ć© um sinal, era um indĆ­cio, nĆ£o era uma prova, era indĆ­cio de que havia um selo da Starbucks ali naquela fazenda. EntĆ£o, continuamos fazendo o nosso bom trabalho jornalĆ­stico que Ć© checar aquela informação. Primeiro, perguntamos para o fazendeiro que foi autuado, o vendedor de cafĆ© e, se nĆ£o me engano, ele sim confirma que ele vendia para a Starbucks e tal. Claro, procuramos a Starbucks antes de publicar a matĆ©ria, fizemos mais de uma procura Ć  StarbucksĀ antes de publicar matĆ©ria e, claro, a conversa era "olha aconteceu isso e isso na fazenda tal, na entrada da fazenda... o fazendeiro diz que tem um selo boas prĆ”ticas da Starbucks, tem uma placa com o nome da Starbucks, da C.A.F.E. Practices, ligada Ć  Starbucks na porta da Fazenda, vocĆŖs confirmam que vocĆŖs deram oĀ  selo de qualidade para essa fazenda? O que vocĆŖs vĆ£o fazer diante dessa autuação por trabalhoĀ  escravo?". E a primeira resposta que a Starbucks nos dĆ”, se nĆ£o me engano a primeira, essa resposta veio da StarbucksĀ Estados Unidos, se nĆ£o me engano, Ć© que eles confirmavam mesmo, de que eles tinham dado o selo de boas prĆ”ticas para aquela fazenda, mas que agora, diante dos novos fatos, a "Fazenda tal"Ā  - tem o nome lĆ” da fazenda, a fazenda XPTO -, mas que agora que eles estavam recebendo aquela denĆŗncia, que eles iam investigar o caso e eventualmente suspender as compras daquela fazenda. EntĆ£o eles, num primeiro e-mail, eles nos confirmam que a fazenda XPTO tinha o selo de boas prĆ”ticas e vendia cafĆ© para eles. Quando eles fazem isso, a gente sente seguranƧa para publicar a história e publicamos a história. Bom, na verdade eu te dei uma informação errada, a nossa conversa era com a Starbucks Brasil, se nĆ£o me engano, a gente publica história emĀ  portuguĆŖs e na sequĆŖncia gente publica a história em inglĆŖs, com um parceiro o nosso republicar. Essa história, nos Estados Unidos - ela repercutiu muito bem aqui no Brasil, na Repórter Brasil, se nĆ£o me engano o UOL tambĆ©m republicou, mas nos Estados Unidos ela bomba, de circular… Eu acho que o americano Ć© muito mais colado na StarbucksĀ do que o brasileiro. Outro dia eu estava em Nova York, Ć© impressionante, eles vĆ£o muito na Starbucks, tem Starbucks para todo lado, nĆ£o sei se o Brasil estĆ” tĆ£o conectado na Starbucks, mas o americano estĆ”. EntĆ£o, essa notĆ­cia da (inaudĆ­vel) circula horrores nos Estados Unidos e aĆ­ chega na Starbucks Estados Unidos, na sede central, quando chega na sede central, a diretora de comunicação da sede central escreve para o veĆ­culo que nos ser publicou em inglĆŖs e escreve para a gente tambĆ©m,Ā  dizendo que eles haviam cometido um erro interno, que eles se confundiram, que a fazenda XPTO nĆ£o era exatamente de onde eles estavam comprando cafĆ©, que eles estavam comprando cafĆ© da fazenda ao lado da fazenda XPTO. Quando isso acontece, Danielly, sempre que a genteĀ  recebe uma contestação com informaƧƵes, a gente reabre a investigação. Ɖ muito sĆ©rio, a Starbucks estava me dizendo que nós erramos, que ela errou, ela estava dizendo que ela errou no primeiro e-mail, que ela confundiu o nome da fazenda, que ela misturou uma fazenda com a outra e, portanto, a matĆ©ria estava errada, portanto a gente tinha que corrigir a matĆ©ria. A gente decide reabrir a investigação, a gente volta a entrevistar todas as nossas fontes, todos os servidores do MinistĆ©rio da Economia, os auditores. Os auditores voltam a dizer que tem selo daĀ Starbucks sim. A gente reabre, a gente fica dois meses investigando novamente essa história para entender se o erro, que a Starbucks tinha dito que ela cometeu, se procedia. Eu sei, Danielly, essa Ć© uma história… Eu passei dois meses tensa e estressada, quase sem dormir Ć  noite. E, assim, o que eu sempre dizia Ć©: se nós estivermos errados, nós vamos corrigir o nosso erro e corrigir a nossa reportagem, mas eu preciso ter certeza de que eu estou errada, porque atĆ© agora Ć© a Starbucks que estĆ” dizendo que a minha matĆ©ria estĆ” errada por conta de um erro dela. Quando a gente pedia a prova para ela, eu falava "entĆ£o me prova, se vocĆŖ puder, nos dĆŖ provas documentais de que vocĆŖ nĆ£o comprou da fazenda XPTO, mas que vocĆŖ comprou da fazenda ao lado da XPTO e que elasĀ  sĆ£o diferentes". AĆ­ a Starbucks dizia que ela nĆ£o podia enviar documentos porque eram documentos confidenciais. Bom, mesmo a Starbucks tendo essa atitude tĆ£o estranha, dizer que ela errou e, portanto, a Repórter BrasilĀ tinha errado, mas que ela nĆ£o consegue me comprovar que ela errou, nem que eu estou errada, nem que a Repórter BrasilĀ estĆ” errada, a gente decide porĀ  dignidade e Ć©tica reabrir a investigação. Bom, eu estou simplificando a história, foram vĆ”rias idas e vindas de e-mail, vĆ”rias horas do meu trabalho preocupada, "estamos errados ou nĆ£o estamos? O que acontece? Vamos investigar, levanta o registro de novo da propriedade, qualĀ  fazenda que Ć© a fazenda de fato?". No meio dessas idas e vindas, tem um momento que a moƧa da Starbucks dos Estados Unidos nos manda um e-mail, porque ela vai mandando um e-mail e a gente vai tentando confirmar e pedindo umas coisas e contestando o e-mail e tal, dizendo "Olha, aĀ  gente vai reabrir a investigação, estamos checando se a gente estĆ” errado, se a gente tiverĀ  errado, a gente vai corrigir nosso erros mas preciso que me ajude". Uma longa troca de e-mails e numa dessas trocas de e-mail, eu acho que eu te contei isso para entrevista, mas eu gosto de lembrar dessa história porque eu acho absurda essa história, ela nos manda uma carta de um cara, de um consultor dessa Ć”rea de cafĆ© aqui no Brasil, dizendo que a tal placa, que a gente viu na porta da fazenda, que ele tinha enviado a placa para a fazenda errada. EntĆ£o, ela me manda um documento que Ć© um consultor do cafĆ© aqui no Brasil, um documento assinado por ele, dizendo que a tal placa estava na fazenda errada e que nĆ£o procedia a tal placa com o selo de qualidade da Starbucks. E eu acho aquilo muito estranho, e falo "que coisaĀ  estranha Ć© esse documento".Ā  E aĆ­ a nossa repórter entrevista esse consultor do cafĆ©, que havia assinado essa tal carta dizendo que ele mandou a placa para fazenda errada. Quando a genteĀ  entrevista ele, Danielly, ele nĆ£o estava sabendo de nada. O documento que a Starbucks disse que ele assinou, ele nunca tinha visto isso na vida, era mentira. E ali, eu falei: "agora eu jĆ” nĆ£o vouĀ  seguir nessa conversa", e aĆ­ o que eu fiz, eu falei para a repórter, a Daniela Penha, umaĀ  excelente jornalista, por sinal, ali a Daniela Penha ficou muito preocupada todo esse tempo com essa pressĆ£o da Starbucks, nĆ£o Ć© fĆ”cil vocĆŖ ter uma multinacional do tamanho da Starbucks te mandando e-mail todo dia e pressionando para vocĆŖ tirar uma reportagem do ar. Eu acho queĀ  a Repórter BrasilĀ agiu muito bem naquele momento. Hoje, analisando emĀ  retrospecto, eu acho que a gente agiu corretamente, de nĆ£o ter cedido Ć  pressĆ£o, de ter reaberto a investigação e de ter desmascarado a Starbucks ali. Essa Ć© uma história que a gente nunca publicou, mas eu tenho atĆ© vontade de publicar um dia, um livro, nĆ£o sei, mas a história Ć© essa. Quando a Daniela Penha faz essa entrevista com o cara e o cara desmente a tal carta, aĆ­ eu falei, Daniela, "arrasou, nós vamos parar nossa investigação de novo agora". Ela gravou a entrevista com o cara, porque era essa a minha orientação, grava a entrevista. EntĆ£o, quando a gente descobre isso, eu falei "pronto, Ć© assunto encerrado, a Starbucks estĆ” mentindo, ela estĆ” forjando documento para me pressionar a tirar uma matĆ©ria do ar". EntĆ£o, o meu combinado Ć©: "Daniella, faz um relatório de toda a investigação passo a passo do que vocĆŖ fez, inclui nesse relatório a entrevista com esse cara, me passa todo o documento, todos os Ć”udios", e o que eu faƧo Ć© mandar para o Starbucks Estados Unidos um grande relatório, de cinco pĆ”ginas, comĀ  tudo que a gente havia feito nessa reabertura da investigação, tudo que a gente jĆ” havia descoberto e, entre elas, a gente havia descoberto que o tal cara que teria assinado a tal carta estava desmentindo numa ligação gravada. Mandamos esse e-mail mandei e aĆ­ me pergunta se a gente recebeu algum tipo de resposta? Ou se voltaram a nos incomodar? Nada aconteceu, assunto encerrado. Mas olha, eu vivi um pequeno inferno durante os dois meses e a Daniela Penha, nĆ£o quero te contar, ela estava desesperada, mas deu tudo certo no final.Ā 


[01:23:38] Situação difícil, hein, Ana. Complicado, tem que fazer um livro com todas essas histórias. 


[01:23:38] Ana MagalhĆ£es: Pois Ć©, estou achando tambĆ©m. Ɖ muita história para contar.


[01:23:44] Muita. E, assim pelo compromisso social que a Repórter Brasil tem nas reportagens, nos conteúdos produz e publica, a gente sabe que não é a primeira vez que vocês apertam o calo de alguém. Aquela lista de transparência sobre o trabalho escravo  contemporâneo deu o que falar e imagino que isso também resultou em alguns  ataques, pressões e eu entender com você como que é (inaudível). 


(Problema Técnico) 


[01:24:47] A gente ia te perguntar justamente sobre essa questão da lista (do trabalho escravo). Com ela teve a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a gente queria esse trabalho tão importante assim, como foi esse processo todo? 


[01:25:04] Ana Magalhães: Você diz da lista de da transparência? Na época que a lista suja foi  suspensa? 


[01:25:09] Isso mesmo, teve a questão do Ricardo Lewandowski, toda essa  questão.


[01:25:16] Ana Magalhães: Gente, eu conheço essa história, mas eu não trabalhava na Repórter Brasil nessa época. Eu não sei se eu sou a melhor pessoa para falar para você sobre essa história, mas posso dizer em âmbito geral que a gente fica muito orgulhosos, de a gente ter seguido nessa resistência de suspender a "Lista Suja", mas a Repórter continua pressionando o governo por ser transparente, é um momento que nos dÔ muito orgulho na história da  Repórter Brasil, até hoje. 


[01:26:02] Não sei se vocês estão me escutando bem agora, mas eu ia complementar também do que a Dani falou, é que esse tipo situações que vocês fazem que eu  acho que estão super pertinentes, quando você pensa no compromisso social que a Repórter  Brasil tem, acabam gerando alguns ataques, alguns podem ser pressões maiores, outras  menores e eu queria saber como é para vocês conciliar essa produção de reportagem, essa rotina, com os ataques que vocês inevitavelmente sofre em alguns momentos em virtude  dessas reportagens. 


[01:26:39] Ana Magalhães: A gente tem, muitas vezes esses ataques, Gabrielle, eles afetam  nosso dia a dia, de certa maneira. Hoje em dia, a maneira mais fÔcil de você atacar um site é  colocando um robÓ clicando no site para o site cair. Isso acontece, não é tão incomum isso  acontecer, eu posso te falar, sei lÔ, eu posso te falar que ano passado eu vi um, ano passado,  em abril do ano passado, abril ou maio do ano passado, houve uma série de ataques  robotizados ao site da Repórter Brasil, que deixaram site mais lento e faziam o site cair muito. Então, quando isso acontece, afeta a minha rotina de trabalho porque eu trabalho com o site o dia inteiro. Se o site estÔ mais lento, atrapalha a minha rotina. Então, teve um mês ali que a gente sofreu muitos ataques e o site ficou muito instÔvel e tivemos que aprimorar o  esquema de segurança do site. Isso acontece com muita frequência. Não só na Repórter  Brasil, mas em outros veículos independentes, a gente percebe isso. E tem muita história dos  ataques na internet. Eu acho que tem toda essa história de fake news aí na internet, circulando. Na Repórter Brasil, sem dúvida nenhuma, a pessoa que é mais atacada não é mesmo tanto a Repórter Brasil, nesse tipo de ataque nas redes sociais, é o Leonardo Sakamoto, que é o nosso fundador e presidente. O Leo, é bem interessante de  escutar quando ele fala sobre isso. O Léo, hoje em dia, ele fala desses ataques nas redes sociais que ele recebe direto com tanta naturalidade de tanto que ele jÔ foi atacado, ele jÔ conseguiu  chegar naquele ponto em que nem o afeta tanto, enfim, publicam milhões de mentira sobre o Léo, publicam com o Leo é fundador da (Agência) Pública, publicam que o Leo tem um gabinete do ódio da esquerda no Brasil e, não sei, ele é tão atacado nesse aspecto, ele é muito mais atacado que a Repórter Brasil, mas o Leo é tão atacado que ele, hoje em dia, lida com uma naturalidade que me surpreende até. Agora, não é fÔcil, não é simples, eu acho que hoje em dia vem  acontecendo um outro fenÓmeno que os jornalistas, nós jornalistas temos discutido muito, que é um fenÓmeno chamado "ataque JudiciÔrio", eu estou criando esse termo. Saiu até um  texto na Folha, se não me engano ontem ou domingo, da Taís Gasparian, falando sobre isso e eu recomendo que vocês deem uma olhada nesse artigo dela, da Taís Gasparian. Ela fala exatamente sobre isso, é uma discussão muito forte que tem no jornalismo independente. Existe um fortalecimento muito grande desse fenÓmeno, e que fenÓmeno que é? Uma série de empresas ou pessoas, pessoas físicas ou empresas processando veículos e processando com grande volume de ações judiciais, pedindo retiradas de matérias do ar, pedindo danos morais, pedindo danos indenizatórios, acusando a gente de calúnia e difamação. HÔ uma sensação de que no universo judicial também hÔ uma disputa mais forte aí, de que hÔ uma tendência de que as pessoas processem mais esses veículos. O que a Taís Gasparian fala no artigo dela é bem interessante porque ela fala assim "muitas vezes são ações tão frÔgeis que o advogado que estÔ entrando com a ação sabe que ele vai perder, mas ele faz isso para intimidar". Isso na  Repórter Brasil a gente jÔ tem toda uma estrutura jurídica para nos defender das ações judiciais, mas a gente recebe, a gente é processado não digo com uma certa frequência, mas temos processos, nós temos muitos processos. Respondemos processos na Justiça. Eu te digo pela agência de jornalismo, nós recebemos um processo ano passado e um processo esse ano. Agora, eu acho que tem esse universo também, claro, é o processo das pessoas que se sentirem  ofendidas com as nossas denúncias ou acharam que não estamos publicando a verdade, ela tem todo o direito de entrar na Justiça e a gente dignamente comprovar a nossa correção por meio da Justiça. Nós nunca perdemos um processo desses porque o nosso material é muito bem documentado. O time hoje da Repórter estÔ muito preparado, muito preparado, ele é muito  bem estruturado para esses três assuntos que eu estou dizendo: para ataques e pressões por  parte de grandes empresas multinacionais, então não é à toa que a gente é muito rigoroso na prova documental e nas provas que a gente tem antes de publicar uma matéria, a gente é  muito rigoroso com isso. Até porque sabemos o nível de responsabilidade com o qual nós estamos lidando. Quando a gente fala de trabalho escravo, essa acusação de trabalho escravo, de autuação do trabalho escravo, é uma acusação muito delicada, pode atrapalhar muito a vida de uma empresa, até de um fazendeiro, de um pecuarista se essa acusação é feita sem as devidas comprovações. A gente tem consciência da nossa responsabilidade, como a gente precisa fazer um trabalho muito sério, muito checado e rechecado. Até porque muitas das vezes a gente jÔ faz esse levantamento se preparando para apresentar isso para a Justiça no caso de sermos  processados. Então, eu acho que com o tempo a gente foi se preparando muito bem para lidar com esse tipo de configuração, sejam ataques no nosso site, sejam ataques nas redes sociais ou seja um outro tipo de enfrentamento aí na Justiça. Hoje em dia, eu acho que a gente jÔ  incorporou na nossa rotina mecanismos de comprovação, checagem, de reunião documental,  de provas documentais, então isso meio que jÔ estÔ na nossa rotina, sabe, mas é um assunto que a gente estÔ constantemente preocupados. A gente entende isso, entende o grau de  responsabilidade com o que a gente estÔ lidando, jornalismo é uma coisa muito séria e ele  tem que ser levado muito a sério. Só um último exemplo para terminar meu pensamento. Com os outros lados, jÔ aconteceu na Repórter Brasil de a gente postergar uma semana, um mês, a publicação de uma matéria porque a gente não conseguiu o outro lado e o cara ficou enrolando a gente e a gente falar "sem outro lado não dÔ para publicar essa  matéria". Temos que escutar a defesa desse cara, como ele justifica essa autuação por trabalho de escravo. A gente é muito sério e responsÔvel com isso. Esse é um dos caminhos, você fazer um trabalho muito correto, muito sério, checado e rechecado, com outros lados, para evitar problemas. Então, acho que a gente jÔ tem isso incorporado no nosso fluxo de trabalho normalmente. 


[01:35:13] Ɖ uma rotina bem interessante porque acho que Ć© um pouco diferente do que a gente costuma ver hoje. Ɖ um nĆ­vel de preparação e cuidado cinco mil vezes maior porque sĆ£o, como vocĆŖ disse, reportagens sĆ©rias com acusaƧƵes muito sĆ©rias.Ā 


[01:35:31] Ana MagalhĆ£es:Ā Exatamente, Gabrielle. Eu me lembro de uma história, eu contei isso outro dia para alguĆ©m lĆ” da RepórterĀ que eu vou compartilhar com vocĆŖs. Tem umasĀ  histórias muito curiosas na Repórter. Era um jornalista da nossa rede para uma matĆ©ria sobre a JBS. A JBS Ć© uma empresa muito grande, ela Ć© uma multinacional, ela Ć© a maiorĀ  processadora de proteĆ­na animal do mundo, ela estĆ” criando uma sede agora nos EstadosĀ  Unidos. Os irmĆ£os Wesley e Joesley Batista quase que derrubaram o Temer em 2017. Enfim,Ā  estamos falando de uma grande multinacional. NĆ£o Ć© uma Starbucks, mas estĆ” quase lĆ”. Eu nĆ£o sei nem se dĆ” para comparar uma com a outra, sĆ£o duas grandes multinacionais de referĆŖncia aos seus respectivos setores. Bom, era uma reportagem que a gente ia dar sobre a JBS, que, se nĆ£o me engano, a gente estava denunciando que a JBS estava comprando gado de um grupo empresarial multado por desmatamento e isso nĆ£o pode porque a JBS assinou em 2009 um acordo de que ela nĆ£o faria isso. Enfim, era uma matĆ©ria desse tipo. O repórter, o jornalista, que Ć© o AndrĆ© Campos, que trabalha na Repórter BrasilĀ hĆ” mais tempo que eu, muito mais tempo que eu. Tem muito tempo que ele estĆ” na rede da Repórter Brasil, Ć© um jornalista brilhante tambĆ©m. O AndrĆ© Campos, naquela ocasiĆ£o, ele entende muito desse universo da pecuĆ”ria, ele jĆ” investigou muito a JBS, naquele momento, pouco antes da gente publicar a reportagem… uma das provas que a gente tinha era, se nĆ£o me engano, um print de uma parte do site da JBS. E o AndrĆ© Campos, como o jornalista cauteloso que ele Ć©, ele ficou com receio de a gente publicar matĆ©ria, da JBS derrubar esse site, tirar essa pĆ”gina do site, processar gente e a gente nĆ£o ter nenhuma comprovação de que aquilo havia sido publicado no site, de que aquilo estava no site da JBS. Era tipo essa a história, nĆ£o lembro dos detalhes, mas era tipo isso. O Campos me ligou e falou, eles me chamam de MagĆ” lĆ” na Repórter, ele falou "MagĆ”, estou aqui preocupado com isso, o que eu fiz e o queria saber se vocĆŖ topa fazer". O que o Campos fez? Ele primeiro tirou um printscreenĀ daquela pĆ”gina e depois ele me perguntou se eu topava fazer isso e eu topei, que era meio que fazer uma autenticação em cartório, era um processo lĆ” que o Campos me falou que era, mas que custou R$ 500,00 (quinhentos reais) para autenticar aquele documento e comprovar, por um processo XPTO, que aquela pĆ”gina, naqueleĀ  momento, aquela pĆ”gina da JBS existia. Nós gastamos R$ 500,00 (quinhentos reais) para produzir este documento, para ter seguranƧa de que qualquer coisa que acontecesse, a gente estava muito bem calƧado. Foi a Ćŗnica vez que eu fiz isso, mas eu acho que foi prudente fazer. A JBS nĆ£o nos processou, nĆ£o aconteceu nada, mas Ć© esse tipo de coisa que a Repórter BrasilĀ faz. A gente gasta R$ 500,00 (quinhentos reais) no trĆ¢mite burocrĆ”tico, para comprovar, para pedir uma comprovação em auditoria de aquela pĆ”gina existia naquele dia e aquele tal e ter esse documento na minha mĆ£o para qualquer coisa que acontecesse. Ɖ esse tipo de procedimento que a Repórter BrasilĀ faz.Ā 


[01:39:28]Acho que para lidar com uma empresa nível JBS é mais do que  necessÔrio, eu acho que R$ 500,00 (quinhentos reais) foi, assim, pouco para a dimensão do que poderia  se tornar se ela tivesse essa comprovação. 


[01:39:45] Ana Magalhães: Eu acho que vale a tranquilidade que eu fiquei com aquele  documento em mãos, que o Campos ficou, que a equipe inteira ficou. A gente acabou não usando aquele documento, estÔ tudo certo, mas eu acho que valeu. Eu acho que é muito simbólico. Essa história é um símbolo de como a Repórter Brasil é preocupada com esse tipo de coisa, porque a gente jÔ foi muito atacado antes, ou virtualmente ou processados. A gente é muito processado por conta do trabalho escravo, as denúncias de trabalho escravo. Então a gente estÔ muito bem treinado. Eu acho que a gente foi aí adquirindo um know-how e  incorporando medidas extras de segurança, prudência, checagem, rechecagem, que são coisas  do bom jornalismo mesmo. A gente foi incorporando isso na nossa rotina e eu acho isso é  interessante hoje, eu prefiro um jornalismo cauteloso do que um jornalismo não tão correto, mas ousado. A gente é bem cauteloso e quando temos indícios, isso jÔ aconteceu vÔrias vezes, quando temos bons indícios, mas não temos provas na nossa mão, a gente não publica. JÔ aconteceu de a gente desistir de muitas boas histórias, com pistas muito fortes, muito fortes e de não publicar porque falta uma prova mais sólida. A gente faz um jornalismo investigativo bem sério. 


[01:41:18] Deve doer um pouquinho, mas como você falou acho que é muito necessÔrio. Ana, queria aproveitar para finalizar um pouco a conversa, a gente tÔ indo jÔ para a reta final, não dÔ para ignorar que a gente estÔ na pandemia. Você jÔ falou sobre os processos de trabalho da Repórter Brasil e a gente queria saber como é que a pandemia impactou os trabalhos de vocês, a produção de reportagens, porque é difícil ir a campo, tem muitas questões de segurança. Como esse cenÔrio impactou a produção de  reportagens? 


[01:42:00] Ana MagalhĆ£es: Ɖ, realmente, a pandemia nos afetou muito, sobretudo no queĀ  tange Ć s nossas investigaƧƵes em campo. A gente praticamente passou aĆ­ uns dois, trĆŖs mesesĀ  sem fazer. Hoje a gente faz de uma forma muito restrita, só o estritamente necessĆ”rio Ć© que a gente vai a campo. Aconteceu uma casualidade na Repórter BrasilĀ que um dos nossos repórteres pegou Covid, entĆ£o ele estĆ” uma imunizado hoje e ele comeƧou a querer viajar, porque ele jĆ” estava tranquilo para viajar, entĆ£o fizemosĀ  uma que outra viagem com esse repórter, só  porque ele estava querendo viajar e ele jĆ” tinha pegado Covid, com o teste e com tudo, entĆ£o entendemos que naquela circunstĆ¢ncia achamos que tudo bem, mas impactou muito o nosso trabalho nesse aspecto. Assim, por exemplo, nós tomamos a decisĆ£o na pandemia - a gente cobre muitas questƵes indĆ­genas no Brasil - , nós tomamos a decisĆ£o de que na pandemia nĆ£o vamos visitar nenhuma terra indĆ­gena para nĆ£o corrermos o risco de estar levando o coronavĆ­rus para aquela aldeia. Acho que outra vez a Repórter BrasilĀ lanƧa um olhar muito responsĆ”vel, do mesmo olhar responsĆ”vel que a gente lanƧa sobre o jornalismo, a gente lanƧou para a pandemia. NĆ£o queremos em hipótese nenhuma imaginar que uma reportagem, que por conta de uma reportagem nossa nós contagiamos uma aldeia e eventualmente o risco de gerar mortes ou qualquer outra coisa do estilo. EntĆ£o nós suspendemos visita a aldeias. Isso atrapalha um pouco nosso trabalho, sobretudo na questĆ£o indĆ­gena, entĆ£o, por exemplo, um dos nossos repórteres, o mesmo Daniel Camargos que foi o que pegou Covid, foi para o Pantanal agora. A gente havia cogitado de ele ir a uma terra indĆ­gena, entrevistar um indĆ­gena para falar sobre o fogo naquela terra indĆ­gena. A gente tomou uma decisĆ£o de que a gente nĆ£o iria. Uma das lideranƧas dessa aldeia estava disposto a receber o Daniel, aceitar o Daniel ali dentro daĀ  aldeia. Foi uma decisĆ£o institucional nossa de que a gente nĆ£o iria, por conta disso, por conta de que para a gente a maior preocupação Ć© a seguranƧa e a saĆŗde dessa aldeia e desses indĆ­genas. Isso vale muito mais do que qualquer boa história. Mas conto com esse pensamento - e vale mesmo. Eu prefiro aqueles indĆ­genas e aquelas lideranƧas e aquele cacique vivo do qualquer boa história da Repórter Brasil. Ɖ isso que me importa, me importa Ć© que os trabalhadores tenham direitos respeitados, que os indĆ­genas tenham os direitos respeitados. EntĆ£o deixamos de fazer boas matĆ©rias em campo por conta dessa preocupação e faremos isso provavelmente atĆ© a reta final. E aĆ­ eu acho que o maior impacto Ć©, sem dĆŗvida nenhuma, essa impossibilidade de fazer investigaƧƵes em campo, especialmente em aldeias indĆ­genas. Muitas vezes, claro, a gente tem conseguido segurar o nosso trabalho, fazendo muito trabalho na redação, apuração por telefone mesmo e similares, mas no que tange algumas histórias, nĆ£o tem como, sobretudo histórias indĆ­genas de algumas etnias. VocĆŖ tem que ir a campo para ver, muitas dessas terras indĆ­genas sĆ£o muito isoladas, nĆ£o tĆŖm celulares, nĆ£o tem cobertura, a gente nĆ£o consegue falar, eu acho que prejudica um pouco o nosso fluxo de trabalho aĆ­. A Repórter BrasilĀ sempre fez um jornalismo muito de ir a campo. Eu jĆ” comecei aqui antes que a gente tem essaĀ  história de que a gente vai aonde ninguĆ©m vai, a história de Daniel lĆ” em Novo Progresso. Enfim, Ć© um DNA muito forte da Repórter BrasilĀ fazer investigação a campo e a gente nĆ£o estĆ” fazendo com a mesma desenvoltura que a gente fez no ano passado, por exemplo,Ā  por causa da pandemia. Mas eu acho que dĆ” para adaptar, acho que a gente fez excelentes reportagens nos Ćŗltimos meses sem ir a campo, fazendo uma investigação de cadeia produtiva, fazendo o cruzamento de dados, enfim, e eu acho que dĆ” para levar, mas eu acho que maior impacto foram viagens mesmo. Da minha parte, no meu trabalho Ć© um pouco mais difĆ­cil vocĆŖ coordenar uma equipe e sintonizar a tua equipe sem vĆŖ-lĆ”, sem estar com ela, sem ver no dia a dia, mas eu acho atĆ© que o jornalismo Ć© uma atividade que se adapta muito bem para o home office, muito mais do que se vocĆŖ faz formação de professor, por exemplo jĆ” Ć© maisĀ  complicado, no mundo da educação jĆ” acho um pouco mais complicado o virtual. Nesse aspecto interno da Repórter Brasil, eu acho que a gente se adaptou muito bem ao home office, acho que estĆ” tudo certo e do que mais eu sinto falta Ć© essa liberdade de ir e vir e de fazer uma investigação em campo, mas tudo bem.Ā 


[01:47:50] Tem um propósito, né, um propósito forte. 


[01:47:52] Ana Magalhães: Eu acho que tem uma boa justificativa por de trÔs e a boa  justificativa é a melhor regra, eu prezo pela segurança das comunidades sobre as quais eu falo, não faz sentido eu ir a campo, numa terra indígena, para denunciar uma violação que estÔ acontecendo naquele povo tradicional, naqueles povos, naquela aldeia e, por um lado, eu estou denunciando uma violação ali, mas também por outro eu estou colocando eles em risco com a Covid. Não faz sentido, então eu acho que tem um bom propósito, concordo com você, Gabrielle, eu acho que tem um bom propósito por trÔs dessa nossa adoção de medidas. Nossa maior preocupação é a segurança das pessoas, tanto dos nossos profissionais, quanto das pessoas com quem a gente tem contato. Eu sinto falta. 


[01:48:53] Ɖ muito coerente mesmo com a ideia de vocĆŖs.Ā 


[01:49:00] Ana Magalhães: Mas morro de saudades de planejar uma investigação campo,  começar a fazer uma produção de viagem. Quem sabe em 2021, gente. Quando? Quando? 


[01:49:10] Estamos torcendo para ser logo também. E Ana, nosso papo estÔ assim muito, muito, muito bom mesmo, estou gostando muito de escutar essas histórias,  eu imagino que a Dani também esteja assim deslumbrada com algumas coisas que escutamos  hoje. 


[01:49:27] Ana Magalhães: Eu seria capaz de ficar falando aqui por horas e horas falando, mas uma hora eu tenho que parar de falar, né, gente. 


[01:49:37] Por mim, olha, pela gente, continuaria, confesso.Ā 


[01:49:42] Ana Magalhães: Eu adorei nossa conversa, eu estava com saudades de ter boas conversas. 


[01:49:47] Eu queria te fazer só uma última perguntinha. Sobre a importância do jornalismo e a importância de estar no digital para poder tornar essa mensagem cada vez mais ampla e que ela chegue a mais pessoas. 


[01:50:02] Ana MagalhĆ£es:Ā O jornalismo Ć© uma atividade, Ć© uma profissĆ£o, Ć© uma atividade tĆ£o importante, mas tĆ£o absurdamente importante na sociedade contemporĆ¢nea, que, se vocĆŖ nĆ£o tem um bom jornalismo sendo produzido no paĆ­s ou veĆ­culos de imprensa relativamente independentes num determinado paĆ­s, o grau deĀ  classificação do teu nĆ­vel de democracia Ć© outro.Ā Reformulo o que eu digo, eu acho que eu falei de um jeito meio confuso. NĆ£o existe um paĆ­s democrĆ”tico sem um jornalismo livre, independente, investigativo e fiscalizador. NĆ£o existe. Eu estudei ciĆŖncia polĆ­tica tambĆ©m na minha vida, fiz um mestrado em ciĆŖncia polĆ­tica, entĆ£o tambĆ©m faƧo uma discussĆ£o muito ligada Ć  polĆ­tica nessa história. Na ciĆŖncia polĆ­tica o que se diz Ć© que a democracia tem gradaƧƵes de nĆ­vel de qualidade. Existem institutos e pesquisadores que dĆ£o uma classificação para o grau de democracia que um determinado paĆ­s tem e quando eles fazem esse estudo, do grau de democracia que vocĆŖ tem, se ele Ć© mais alto ou mais baixo, umĀ  dos fatores fundamentais estudados, sĆ£o vĆ”rios fatores que entram: tĆŖm que ter eleiƧƵes livres; tem que ter partidos polĆ­ticos; tem que ter divisĆ£o entre poderes; tem vĆ”rios critĆ©rios ali para os pesquisadores fazerem essa classificação. Um dos critĆ©rios Ć© o jornalismo, se hĆ”, e tambĆ©m nĆ£o só, se hĆ” jornalismo ou nĆ£o hĆ”, mas tambĆ©m o grau de qualidade deste jornalismo, o quanto as empresas jornalĆ­sticas sĆ£o independentes do governo, o quanto as empresas jornalĆ­sticas sĆ£o independentes das grandes empresas, o quanto o jornalista Ć© livre. Eu realmente nĆ£o consigo imaginar uma sociedade democrĆ”tica, sem nenhum trabalho do jornalismo, de jornalismo investigativo tambĆ©m, nĆ£o consigo nem imaginar, isso nĆ£o existe. E hoje eu acho que nesse cenĆ”rio atual, em que a gente vĆŖ ameaƧas constantes ao processo democrĆ”tico brasileiro, o jornalismo se faz mais relevante do que nunca. Ɖ muito interessante essa segunda pergunta de vocĆŖs sobre a questĆ£o digital, eu sou de uma geração, quando eu nasci, eu nasci em 1979, e quando eu nasci, eu peguei, eu sou da geração que pegou justamente a transição plena do analógico para o digital. Essa história Ć© bem curiosa, eu adoro contar essa historinha tambĆ©m. Desculpa, vou tomar uns minutinhos de vocĆŖs, mas essa história Ć© engraƧadinha. VocĆŖ pensa o seguinte, quando eu entrei na universidade 1997, janeiro de 97, era a PUC-Mina e eu fui a Ćŗltima turma da PUC a pegar um, na PUC vocĆŖ tinha um laboratório de produção de texto e eu fui a Ćŗltima turma da PUC a fazer esse laboratórios de produção de texto com mĆ”quina de escrever. Eu peguei mĆ”quina de escrever na PUC, incrĆ­vel, eu tenho muito orgulho de contar isso que para vocĆŖ vai ser muito doido. Como que era? Hoje vocĆŖs devem ter lĆ” na faculdade um laboratório de informĆ”tica, onde vocĆŖ entra e tem 40 computadores. Mano, na PUC vocĆŖ entrava na sala tinha e 40 mĆ”quinas de escrever e a gente tinha uma disciplina prĆ”tica, no primeiro perĆ­odo, que o professor levava os 40 alunos para essas mĆ”quinas de escrever, ele dava ele dava um tema ali, um assunto e pedia para a genteĀ  escrever um texto no curso da aula. EntĆ£o, era aquele festival de taque-taque-taque (ela reproduz o som da mĆ”quina). Tinha gente que nĆ£o conseguia nem se concentrar com 40 mĆ”quinas de escrever no seu ouvido. Eu fiz essas aulas, assim que eu passei para o segundo perĆ­odo, a PUC acabou com barracĆ£o - esseĀ  lugar era chamado barracĆ£o -, a PUC acabou com barracĆ£o, tirou todas as mĆ”quinas de escrever, comprou computadores e criou um laboratório com computadores. Mas eu, no meu primeiro semestre, eu escrevi numa mĆ”quina de escrever, eu tenho trabalho de faculdadeĀ  com uma mĆ”quina de escrever, Ć© muito incrĆ­vel. O celular, gente, nĆ£o existia em 97 -Ā  jĆ” existia mas eram os tijolƵes. Eu me lembro de ter o primeiro celular no meio da faculdade provavelmente, com 20 anos, por aĆ­ quando eu fui ter um celular. Quando eu entrei numa primeira redação, onde eu trabalhei lĆ” em Belo Horizonte, euĀ  me lembro claramente disso que a internet comeƧou a ganhar esse essa visĆ£o comercial dela 95 e eu demorei ainda uns anos para ter um e-mail, meu primeiro e-mail deve ter sido de 98, por aĆ­, entĆ£o, eu entrei na faculdade sem e-mail, nĆ£o tinha e-mail atĆ© outro dia, gente. Eu tinha a idade de vocĆŖs e talvez eu nĆ£o tivesse e-mail, e-mail foi uma coisa que veio depois. Eu estou contando essas histórias todas para mostrar o quanto tudo mudou e muito rĆ”pido. Quando eu entrei, este Ć© o Ćŗltimo exemplo, quando eu comecei a trabalhar num jornal, em 2001/ 2000, no jornal jĆ” tinham computadores, tudo certo, mas nem todos os computadores eram conectados na internet, eram cinco computadores os conectados na internet. Quando eu comecei a atuar como jornalista profissional, eu usava lista telefĆ“nica impressa, eu nĆ£o sei se vocĆŖs jĆ” viram isso antes na vida, talvez no museu vocĆŖs encontrem. Lista telefĆ“nica, eu comecei minha carreira com lista telefĆ“nica. EntĆ£o, eu peguei essa transição e Ć© muito rico vocĆŖ pegar essa transição porque vocĆŖ consegue comparar um mundo com o outro, o que melhorou e o que piorou. Para o universo jornalĆ­stico, estĆ” dado que de fato a internet, os avanƧos tecnológicos facilitaram muito o trabalho. Agora, tem problemas, eu tambĆ©m vejo problemas. Agora o que eu queria comentar Ć© o seguinte, em 95 quando a internet comeƧa, eu jĆ” estava quase entrando na faculdade, eu tinha 16, 17 anos, 15 anos, sei lĆ”, quando comeƧa a internet,Ā  comeƧa toda uma discussĆ£o, a qual eu acompanhei muito de perto porque eu gostava desseĀ  debate, comeƧa toda uma discussĆ£o sobre para onde a internet vai nos levar. Tinha um grupoĀ  de pessoas que diziam assim "uau. Que foda, a internet vai democratizar a informação, oĀ  conhecimento, vai dar acesso para todo mundo com um clique". Ɖ em parte verdade? Ɖ, deĀ  fato se pensa hoje, a Repórter BrasilĀ faz todo esse conteĆŗdo tĆ£o primoroso, com tantoĀ  cuidado, com tanta responsabilidade e o cara que tĆ” lĆ” no interior do PiauĆ­, se ele tiver umĀ  celular conectado, ele pode ler a matĆ©ria da Repórter Brasil. Uau, que incrĆ­vel, Ć© incrĆ­vel isso. NĆ£o Ć© tĆ£o simples o processo, Ć© um pouco mais complexo, eu andei pensando um pouco nisso esses dias, por conta desse desse documentĆ”rio que vocĆŖs devem ter visto, das redes sociais, The social dilemma. EntĆ£o, lĆ” em 95, havia todo esse debate, uau a internet vai democratizar tudo, que incrĆ­vel, ela vai revolucionar o mundo, ela vai democratizar, mas tambĆ©m tinha um grupo de pessoas que diziam assim "cuidado, gente, ela tambĆ©m pode gerar uma exclusĆ£o digital, ela tambĆ©m pode gerar na problemas e tal". Eu acho interessante hoje a gente analisar isso, depois de duas dĆ©cadas, como que tem lado positivo, mas tem um lado negativo. Eu sim, acho que as redes sociais, da forma como elas estĆ£o andando, elas estĆ£o gerando uma sĆ©rie de problemas que sĆ£o graves, que Ć© a fake news, que Ć© o mundo da pós-verdade, que Ć© essa polarização, o tal discurso do ódio. SĆ£o as redes sociais que estĆ£o fazendo isso, elas estĆ£o alimentando isso e elas sĆ£o fruto da internet ao mesmo tempo, percebe? EntĆ£o, eu entendo a tua pergunta, Gabrielle, mas eu queria só polemizar um pouco porque eu sou uma moƧa polĆŖmica mesmo. Mas Ć© um pouco isso, Ć© incrĆ­vel vocĆŖ pensar que existem hoje tantos veĆ­culos com um conteĆŗdo tĆ£o primoroso a um clique de acesso, vocĆŖ pode hoje entrar internet e ler uma puta matĆ©ria da ProPublica, nos Estados Unidos, que 20 anos atrĆ”s vocĆŖ nĆ£o teria acesso a nĆ£o ser por um longo e tortuoso caminho. EntĆ£o, o mundo virtual ele vem com mil maravilhas, mas ele tambĆ©m vem com mil problemas. NĆ£o adianta nada a Repórter BrasilĀ estar de graƧa na internet e chegar na mĆ£o de um aposentado semianalfabeto no interior do PiauĆ­, nĆ£o serve, nĆ£o funciona. Eu acho que tem essas dualidades, eu acho que sim, facilita muito o alcance de pĆŗblico, sem dĆŗvida nenhuma. A gente tem que comeƧar a traduzir mais para o inglĆŖs o nosso trabalho, a gente quer tambĆ©m que nosso trabalho fique um pouco mais conhecido internacionalmente e a internet me permite isso de um jeito muito fĆ”cil, muito prĆ”tico, mas eu acho que tambĆ©m tem dualidades, nĆ£o Ć© tĆ£o simples assim. Eu acho que a educação Ć© um negócio extremamente necessĆ”rio, programas de inclusĆ£o digital. Enfim, eu acho que no final das contas, o mais importante para o mundo Ć© que ele seja menos injusto, especialmente. Se tiver um mundo menos injusto, mais instruĆ­do, mais bem estudado, todos com qualificação melhor, enfim, com oportunidade de saĆŗde e de estudo melhores, eu sempre acho que a solução estĆ” por aĆ­. E aĆ­ Ć© muito lindo porque a gente volta lĆ” no inĆ­cio daĀ  nossa conversa, na missĆ£o da Repórter Brasil, dos meus desejos de mudar o mundo, acho que Ć© isso, eu queria deixar um pouco esse pensamento: a internet Ć© incrĆ­vel, ela Ć© maravilhosa, mas semĀ  educação, sem inclusĆ£o social, sem justiƧa social, sem melhores oportunidades de emprego e menor desigualdade, ela atinge um pĆŗblico muito restrito e se ela nĆ£o atingir outro e aĆ­ Ć© isso, a gente retroalimenta o mundo desigual. EntĆ£o vou deixar tambĆ©m essa reflexĆ£o aĆ­ com vocĆŖs.Ā Ā 


FIM

Quer receber nossas novidades?

Obrigado!

© 2020 by Reconfigurações Jornalísticas. Criado com wix.com

bottom of page