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Agência Mural: a rede colaborativa do jornalismo nas quebradas



Por Bruna Leite, Juliana Sá e Victor Gabry 

19 de outubro de 2020


Navegar pelo site da Agência Mural é ingressar, para quem não conhece as periferias de São Paulo, em realidades que se iluminam. São vidas que adquirem contornos e coloridos inesperados em contraste com a opacidade que costuma marcar a representação desses espaços na grande mídia, marcada por estigmas e estereótipos. Nesta entrevista, o jornalista Vagner de Alencar, um dos fundadores do projeto, que surgiu em 2010 como um blog no jornal Folha de S. Paulo, destaca que a Mural tem como objetivo realizar jornalismo a partir da periferia, com profissionais desses espaços, sobre assuntos locais. Com o sucesso do blog na Folha, a Agência Mural foi criada em 2015 (e o blog desativado em 2022). É um jogo de olhares que se oferece: a comunidade passa a se ver retratada na mídia e, ao ganhar visibilidade, adquire nova consciência de sua existência. Aos poucos, aposta Vagner de Alencar, ganha-se expressão para potencializar transformações. 


"Porque a gente sempre costuma dizer que nosso sonho é não existir, porque a gente existe justamente para colocar a periferia no flow de notícias, visibilizar essas regiões e tentar acabar com esses estigmas", destaca Vagner de Alencar na entrevista concedida pela internet em outubro de 2020.


Para produzir as reportagens nas "quebradas", a Agência Mural conta com correspondentes locais, chamados "muralistas", todos remunerados e treinados pela equipe fixa para produzir narrativas de acordo com os princípios do projeto (em 2022, foram cerca de 60 muralistas). Assim, um termo como "carente" ("populações carentes", por exemplo) não pode ser utilizado, porque, segundo Vagner de Alencar, "carrega um juízo de valor". A Mural aborda todos os temas relacionados à vida nas periferias, exceto questões de segurança pública. Atenta às notícias falsas, atua em diferentes redes, como o Whatsapp, para estreitar a comunicação com sua audiência. Além de textos, nem sempre acessível a todos, a Agência Mural realiza um trabalho reforçado com artes (animações, ilustrações), figurinhas nas redes, podcasts etc.


A Agência Mural é uma organização de jornalismo sem fins lucrativos, financiada em boa parte por organizações do terceiro setor. Em seu site, há relatórios de atividades e informações sobre onde são obtidos os recursos. Fundos como Open Society e Google News Initiative estão entre os principais apoiadores; a segunda maior fatia de apoio vem de projetos específicos. As parcerias com outros veículos também são relevantes para produção e distribuição. 





Transcrição da entrevista com Vagner de Alencar, da Agência Mural


Coordenação do projeto Reconfigurações Jornalísticas: Profa. Rachel Bertol e Profa. Barbara Emanuel

Entrevista com Vagner de Alencar, da Agência Mural 

Realizada por Bruna Leite, Juliana Sá e Victor Gabry 

Revisão da transcrição e minutagem: Filipe Pavão 


Clique aqui para acessar a transcrição em versão PDF.


[0:14] Boa tarde, Wagner. Primeiramente, a gente quer falar de você, quer saber um pouquinho da sua história. Então, a gente queria saber como foi a sua trajetória até São Paulo, que é onde você trabalha hoje, e o porquê de você ter escolhido estudar jornalismo. 


[0:30] Vagner de Alencar: Eu sou um ariano nascido em 29 de março de 1987, eu tenho 33 anos. Eu sou baiano, nasci em Vitória da Conquista, que é a terceira maior cidade da Bahia, mas eu fui criado em uma cidade chamada Barra do Choça, que foi emancipada de Vitória da Conquista há 50 e poucos anos. E a minha primeira história com São Paulo se deu por conta da migração nordestina, ali nos anos 90. Como minha família vivia em um povoado bem pequeno, bem escasso, São Paulo era, naquele momento e de certo modo ainda continua sendo, essa terra de oportunidades. Isso aconteceu no começo da década de 90. Eu sou o mais velho de cinco filhos e ficamos aqui um tempo. Minha família morou por alguns anos numa favela chamada Jardim Edite, que fica próxima à Rede Globo, ali na Zona Oeste. Essa favela foi desapropriada depois de a gente morar lá alguns anos e, então, voltamos para a Bahia. Anos depois, por conta de um problema de saúde da minha mãe, a gente voltou de novo para São Paulo e aí a gente foi parar em Paraisópolis, isso em 1995. Então, foram algumas idas e vindas, saga nordestina, questão de saúde, porque aqui havia melhores condições de tratamento - minha mãe teve câncer – e, então, um pouco dessa vida, quase que cigana de lá e cá. Ao todo, já tem mais de 20 anos que eu moro em São Paulo, entre essas migrações. Minha família está aqui atualmente. E o jornalismo, até semana passada, eu costumava dizer que o jornalismo ele surgiu quase por acaso. Eu venho de uma família semianalfabeta e analfabeta, então, eu nunca pude falar, nunca tive o privilégio de falar que eu queria estudar tal coisa ou que eu vim da Bahia para estudar Jornalismo em São Paulo. Não, eu sou quase que um fora da curva, assim, na verdade eu sou o fora da curva de uma família que é muito grande e com pouca escolarização. Mas eu estava me lembrando de um episódio de alguns anos em um passeio na Bahia, em que eu perguntei para uma tia minha que empilhava pés de café seco – que é comum comprar lá para usar no fogão a lenha -, e a gente estava conversando... Ela empilhava esses galhos de café e eu perguntei qual era o sonho dela – o nome dela é Vera Lúcia - e ela falou: “O meu sonho é ter um fogão a gás”. E aquilo me motivou a contar a história de Vera, ainda sem ainda fazer a faculdade de Jornalismo, porque eu entendia que, em algum momento da minha vida, eu queria contar histórias como aquela, de uma mulher que o sonho não era ter uma joia, era ter um vestido, mas ter algo que, pra gente, é básico, é banal, que é um fogão a gás. Então, nesse mesmo ano, eu comecei a fazer Jornalismo no Mackenzie. Eu comecei fazendo faculdade de Letras e eu acho que muito ali envolto a essas histórias, entendendo essas desigualdades e diferenças todas, também não só aqui em São Paulo, mas na Bahia, que eu decidi interromper as Letras – que era algo que eu queria muito, ser professor - pra fazer Jornalismo. Então, eu acho hoje – e é recente essa informação - que aquela ocasião me motivou muito a querer contar histórias e depois entender que a partir do Jornalismo eu gostaria de fazer aquilo. E aí hoje eu faço isso: eu conto essas histórias que são invisibilizadas, essas histórias periféricas... Então, tem um pouco dessa trajetória. 


[4:47] Entendi. A gente queria voltar um pouquinho, alguns anos, mas também em uma fase muito emblemática da sua história, que em 2010 você começou a escrever o blog da Mural. Você foi o cofundador. De onde surgiu a ideia do blog Mural (que foi desativado em 2022)? Como que ele nasceu? Como foi todo esse processo? E também como foi essa relação do blog com a Folha de S. Paulo


[5:26] Vagner de Alencar: Eu vivia em Paraisópolis, nessa época, em 2010… E aí o blog Mural, na verdade, é um passo anterior, ele nasce a partir de uma formação em jornalismo cidadão. O Bruno Garcez, é um brasileiro, é um jornalista e na época era correspondente da BBC de Londres, e ele ganhou uma bolsa desses programas de fellowship, do Instituto Internacional para Jornalistas. E aí ele entendeu ali, que, na verdade, as periferias não eram veiculadas nas grandes imprensas ou quando eram veiculadas eram a partir de uma ótica negativa, do estereótipo. Então, ele submeteu essa bolsa para dar informação de jornalismo cidadão. Ele cunhava esse termo de jornalismo cidadão. E foi um curso direcionado para estudantes de jornalismo de áreas periféricas de São Paulo, que fossem bolsistas e que tivessem algum engajamento ali com suas comunidades. Foram três turmas que passaram por essa formação, que consistia em fazer análise dos grandes jornais, como esses veiculavam notícias relacionadas às periferias e a gente produzia alguns materiais, alguns textos, alguns vídeos.  Após as três turmas, ele voltou. Foi muito bacana, porque houve uma conexão muito forte entre esses estudantes que estavam ali com o mesmo propósito de tentar mudar a narrativa estereotipada das periferias. E ele voltou para Londres e a Izabela Moi, que também é uma das cofundadora da Agência Mural, ela trabalhava na Folha (de S. Paulo) na época e fez com que essa formação e parte desses estudantes se tornassem correspondentes, na época, a gente chamava de comunitários, correspondentes no blog, que passou a ser hospedado na Folha em 24 de novembro de 2010. Então agora, no próximo dia 24 do mês que vem, a história da Mural, que começa com esse curso que virou um blog e hoje é uma agência de jornalismo, completa dez anos. Lá naquele período, 20 correspondentes, 20 desses estudantes viraram correspondentes e até o final de 2019, o blog Mural era um blog noticioso, era um blog com notícias, com matérias jornalísticas. Hoje, ele é um blog analítico, então a gente escreve notícias analisando a atuação da imprensa, falando sobre a periferia e comunicação. A gente, que eu digo, são os gestores e os cofundadores, parte dos cofundadores da Mural e atuais gestores. Então é isso, começa um curso, vira um blog e aí, ao decorrer desses dez anos, a gente fez uma série de outras coisas: iniciativas offline, o Mural nas Escolas, a Expo Mural e há dois anos a gente lançou o site de notícias da Mural - então, depois a gente pode falar um pouco melhor sobre isso. Então hoje, a Agência Mural, ela funciona como um canal de notícias, a gente tem um portal de notícias e também como produtora de conteúdo para outros veículos etc. Então, essa é só um pouco da linha do tempo da história da Mural.


[9:13] Entendi. Você chegou a falar que você fez Jornalismo na Mackenzie e teve também esse caminho dentro da Folha de S. Paulo, mas eu fico curiosa em saber como é que foi a recepção desse grande jornal para poder falar sobre periferia de uma maneira que a gente pode colocar até como contra-hegemônica. A gente vê muito que esses veículos maiores são formados de uma classe específica, de um gênero específico, culturas específicas. Como é que foi esse diálogo? 


[9:53] Vagner de Alencar: Olha, o fato de a Izabela já trabalhar na Folha e entender como era Folha de S. Paulo, fez com que essa ponte acontecesse de uma forma mais fluida, digamos, tanto que esse processo foi bem curto, foram de alguns meses até que nós lançássemos o blog lá. Talvez, se a Isabela não trabalhasse na Folha, isso não tivesse acontecido, até porque o Bruno (Garcez), naquele momento, ele não tinha um pouco essa ambição. Foi algo muito de um contato, desse match que rolou entre o Bruno e a Isabela. Ela, obviamente, entendendo o potencial que o Mural, o blog, poderia ter naquela época e também, de certo modo, até um risco que ela assumiu, um risco positivo de ver correspondentes ou ver um projeto poder ganhar vida. Então, foi um risco maravilhoso, tanto que existimos até hoje, assim. E eu acredito que, naquela época também, a Folha entendia que - como acontece hoje - o fato de ter jornalistas,  estudantes de Jornalismo escrevendo sobre regiões que, muitas vezes, ela não conseguia chegar, estar ou até poderia acreditar que esses locais não fossem suficientemente importantes para serem cobertos, era fundamental para tapar esses buracos, porque desde o seu nascimento a Mural, o Mural tem o objetivo de minimizar as lacunas da informação e foi isso que aconteceu lá em 2010.  A gente estar na Folha de S. Paulo, um dos maiores jornais do país hoje, foi justamente para tapar esses buracos de uma cobertura que ainda não é suficientemente boa, né? Porque a gente sempre costuma dizer que nosso sonho é não existir, porque a gente existe justamente para colocar a periferia no flow de notícias, visibilizar essas regiões e tentar acabar com esses estigmas. E essa parceria se deu desde o princípio, continuamos com o blog, agora com esse novo formato. Já há mais de cinco anos, também, a gente mantém na Folha uma coluna no Guia da Folha, no guia cultural, e há alguns anos também, a gente periodicamente vem produzindo reportagens para o impresso. Só agora, desde o mês passado, a gente tem feito uma cobertura específica sobre eleições para o impresso da Folha. Então, acho que no passado, a gente tinha muito desse lance de a “mídia hegemônica” e a “mídia independente”. Hoje, eu, Vagner, acredito que essa disputa, ela, para mim, ela não é tão válida, uma vez que, se é possível unir essas forças, que é o que a gente faz, quem ganha é só o leitor, quem ganha é só a nossa audiência. 


[13:26] Você contou para a gente que a Agência Mural começou como um noticiário, tendo notícias todos os dias. Nesse cenário, nessa rotina, que vocês tinham lá no começo, quais eram os maiores desafios de publicar uma matéria por dia? 


[13:43] Vagner de Alencar: Naquele momento, o principal desafio, era... Quando a gente começou na Folha de S. Paulo, as nossas publicações não eram remuneradas. Então, era um trabalho quase que voluntário. Na verdade, era uma troca. A Folha nos dava essa hospedagem e também em troca de visibilidade. A gente conseguia contar as histórias das nossas quebradas, das nossas periferias, estando no site, no maior jornal do país. Então, acho que o grande desafio ali era muito de entender que a gente precisava controlar os nossos tempos, administrar os nossos tempos, também para produzir esses conteúdos. Naquela época também, a gente tinha várias divisões, tinha uma equipe de revisão dos textos, aí a gente passou a identificar editores, que se revezavam para publicar essas notícias no blog... Ali, o maior trampo mesmo era fazer esse trabalho de forma voluntária porque a gente acreditava que o Mural tinha um potencial gigantesco, que ele poderia crescer, como aconteceu hoje em dia. Mas ainda, naquele momento, publicar coisas e trabalhar, ainda sem nenhum tipo de remuneração, também era complicado. Com o tempo isso mudou e aí hoje totalmente tudo é remunerado, todos os projetos que a gente faz. Então, isso também vem sendo algo que a gente vem batalhando muito, de pensar na sustentabilidade da Mural e remunerar todo mundo que trabalha com a gente, mas naquele momento a gente entendia que era importante estar na Folha mesmo sendo… escrevendo voluntariamente, sem qualquer tipo de remuneração. Mas isso mudou com o tempo. E hoje, é muito melhor, obviamente, poder remunerar a equipe toda, a rede de mais de 70 correspondentes e com 17 pessoas trabalhando fixas na Agência Mural. 


[15:58] Eu cheguei a ver no site que vocês tinham mais de 80 correspondentes. Como é que vocês dividem isso do correspondente e do jornalista remunerado? 


[16:14] Vagner de Alencar: Olha, há alguns anos a gente passou a ter processos seletivos para admitir nossos correspondentes, porque é um fluxo, né, um fluxo natural de entradas e saídas. (Há) quem consegue ficar no Mural, contribuir e escrever sobre as suas regiões ali continuamente. Há quem não consiga, porque é trabalho, faculdade, família, uma série de fatores. Então, há quem fique por muito tempo e há quem fique por um curto tempo e saia.  Então, a gente também vai preenchendo essas lacunas e essas regiões que são descobertas com novos muralistas. Hoje, a gente tem um pouco mais de 70 correspondentes e uma equipe fixa de 17 pessoas. Então, essas 17 pessoas estão em funções que são do dia a dia, que são redes sociais, tem a equipe de gestores, tem os repórteres fixos, videorrepórter, tem fotógrafo etc., etc. A diferença é que essa equipe fixa, obviamente, é um trabalho fixo, com as suas funções ali e a rede de correspondentes colabora a partir de reportagens, seja um texto para o site, seja um texto para a Folha, para o guia. Então, essa é a diferença. O que acontece é que a partir do momento em que a Mural cresce, a partir do momento em que a gente cria um podcast, em que a gente tem a possibilidade de escrever mais reportagens para a Folha ou que a gente cria um site parceiro, a gente obviamente necessita de profissionais que estejam ali no dia a dia. Então, toda essa equipe, por exemplo - acho que duas ou três pessoas que não - que estão ali e que formam um time fixo, vem dessa rede (de correspondentes). A partir do momento que você está na rede, a partir do momento que  o Mural cresce, você pode vir para cá. Foi o que aconteceu com a equipe de gestores e atuais repórteres. A gente sempre prioriza o muralista, o correspondente que está na rede para caso surja alguma vaga, para que ele ocupe essa vaga. 


[18:35] E dentro desse crescimento que a Mural teve nos últimos anos, a gente notou que, dentro das notícias mais recentes, uma das principais são as eleições na Bolívia. A gente queria saber como vocês fazem a divisão entre a notícia local e a notícia internacional. E a local, no sentido local regional e local em bairros periféricos específicos.


[19:04] Vagner de Alencar: A essência da Mural está pautada no local, no jornalismo local, no que acontece nos bairros, né? Com o blog era assim, a gente só tinha um canal, então, era muita notícia que era em Paraisópolis, era na Brasilândia, era no Grajaú. Com essa expansão do Mural e com um canal próprio, a gente entende que, obviamente, uma notícia que é local ela é super importante, mas eu acho que, com tempo, a gente está entendendo que notícias locais, elas precisam ser abordadas de uma forma mais abrangente até porque, muitas vezes, o que acontece ali em Paraisópolis não tem muito sentido com que acontece no Grajaú. E talvez essa notícia ela fique, para a nossa audiência, muito localizada. O que a gente vem tentando fazer, sobretudo por meio de reportagens especiais, é contar, a partir dessa história localizada, para tentar identificar semelhanças ou diferenças com outras periferias. Então, tem esse aspecto que a gente tem feito e  um aspecto que é sair do geral para vir para o local. Então, as eleições estão acontecendo e o que significa uma eleição para um morador que mora em um determinado bairro? Então, a gente tenta jogar, trazer desse macro para o micro e, muitas vezes, com reportagens que façam com que eles reflitam, né? Agora, recentemente, a gente fez uma matéria falando quantas vezes os candidatos citavam o termo “periferia”, por exemplo. Isso é muito importante para os nossos leitores. Então, auxílio emergencial, que é algo que estava pegando no Brasil inteiro, por conta da pandemia, qual o reflexo disso também localmente? Então, a gente entende que, é isso, a nossa essência parte do local, mas, muitas vezes, a gente precisa trabalhar também regionalmente falando. Qual é o impacto dessa notícia, não aqui apenas em Marsilac, mas na Zona Sul como um todo? E aí, a gente analisa quais são as diferenças ou semelhanças, regionalmente falando. O site, o 32xSP (pausado desde outubro de 2021), que a gente lançou há quatro anos (em 2016) com a Rede Nossa São Paulo, tem muito dessa missão de, a partir de dados e do que acontece nas 32 subprefeituras, falar das desigualdades na cidade. Então, é um excelente trabalho para a gente entender mesmo essas diferenças aqui no município de São Paulo, olhando e jogando a lupa regionalmente. Agora, há duas semanas, a gente entrou na terceira semana,  a gente criou uma parceria com a Rádio CBN, um quadro chamado Giro pelas 32, para falar especificamente sobre as subprefeituras de São Paulo, mostrar quais são os distritos que fazem parte de cada subprefeitura e para mostrar ali as demandas, os fatos positivos, as reivindicações dos moradores. Então é uma forma de a gente olhar localmente. Mural continua atuando localmente, mas cada vez mais a gente sai de um tema que é local para dar essa roupagem, seja municipal e, muitas vezes, nacional. 


[22:55] Voltando à questão dos correspondentes... Vocês têm algum curso, algum preparo (para tornar alguém correspondente da Mural)? Como funciona o processo de preparação desse correspondente?


[23:10] Vagner de Alencar: O Mural, ele nasce a partir de um curso. Então, nada mais justo do que a gente dar um mínimo de capacitação ou de instrumentos para que esses correspondentes entendam por que eles estão aqui, entendam qual é a nossa linha editorial, entendam a  missão. Então, obviamente, a Mural se tornou uma plataforma e um holofote para muita gente que entra nela e consegue até mesmo ocupar vagas de jornalismo em institutos e veículos... Mas, sim, a gente tem uma capacitação, que a gente fala quais são as nossas concepções do que é periferia, faz com que a galera que entre possa ter uma visão crítica de como as periferias são cobertas ainda nos grandes meios de comunicação e entendam qual é a nossa linha editorial, porque a gente tem uma linha editorial, que é muito clara: cobrimos tudo, todos os assuntos, até porque as periferias são plurais, são complexas, são múltiplas, exceto segurança pública, ou seja, temas relacionados à violência e tudo mais e assuntos que sejam de fora para dentro ou que tenham viés assistencialista, por exemplo, uma empresa de sabão em pó vai criar uma ação numa determinada favela. Isso não é pauta da Agência Mural. A Mural sempre vai prezar por uma história que nasça de dentro para dentro. Então, quem entra na Agência Mural passa também por uma espécie de estatuto de direitos e deveres, que é publicar uma matéria em X periodicidade, que é colaborar para os múltiplos canais. A gente também criou, nesses anos todos e pensando também nessa rede que entra, os dez princípios da cobertura jornalística das periferias, que é você nunca deve usar o termo "carente" porque ele carrega juízos de valor; você precisa entender que, a partir do momento que vai fazer uma entrevista, você não pode ir com uma tese já definida, porque você já está pressupondo que as coisas são daquela forma; que as populações têm nome, sobrenome, cor, idade e profissão. Enfim, a gente tem essa espécie de formação, ali, com dicas desde de formatos de texto, dicas de como você pode aprimorar o seu olhar para encontrar uma pauta, quais podem ser canais, desde um churrasco na laje até um grupo de Facebook de conselheiro participativo. Porque não basta só morar na periferia, porque muitas vezes a gente também tem esse olhar que é viciado, porque é isso, a gente consome comunicação, consome jornalismo a partir desse jornalismo que ainda é carregado desses estereótipos. E, muitas vezes, a gente está contaminado por isso e acha que falar de um problema de infraestrutura é falar mal do mal do bairro. Muito pelo contrário, né? Justamente jogar luz para um problema que se não fossem os correspondentes, talvez eles não fossem sanados. Então, existem, sim, essas ferramentas aí. A gente muitas vezes nem gosta de falar de curso e de capacitação. A gente joga sobre a mesa essas técnicas ou essas ferramentas que a gente aprendeu com esse tempo todo para que a galera possa cobrir melhor suas regiões e entender melhor as suas regiões, e também dentro da nossa linha editorial. 


[27:26] Vagner, você chegou a falar dessa mentoria que vocês conseguiram criar agora, mas a minha curiosidade é que, quando a Agência Mural começou lá atrás, vocês, como cofundadores, se vocês tinham alguma orientação, seja do próprio pessoal da Folha, seja de algum professor, enfim, até para montar esse planejamento editorial e para vocês seguirem e fazer a Agência Mural chegar no que ela é hoje. 


[27:54] Vagner de Alencar: Desde o início, o fato de Mural ter saído de um curso para virar um blog, a pessoa que esteve por trás disso o tempo inteiro foi a Izabela Moi, uma jornalista  super experiente. Ela já trabalhava na Folha havia muitos anos, cobria educação, uma jornalista que já tinha passado por muitas áreas, já tinha experiência também com fundações de educação. Então ela, desde o início, tem sido uma espécie de mentora. Ela é, como eu falei,  uma das cofundadoras e essa experiência que ela tinha já com jornalismo havia muito tempo foi importantíssima para que a gente não desanimasse e entendesse também o potencial da Mural, os caminhos pelos quais a gente poderia trilhar e chegar aonde a gente chegou, entender também os papéis e as potencialidades de cada um. Então, hoje eu estou na direção de jornalismo da Mural, tem o Anderson (Meneses) que está cuidando da parte de negócios. A Cíntia (Gomes) que cuida do Mural institucionalmente falando e a Izabela, ela o tempo inteiro ali foi vendo todas essas habilidades individuais. Ela também tem uma rede muito grande de contatos. Então, a gente começou tendo um advogado pro bono, depois conseguimos um escritório de advocacia que também trabalha com a gente pro bono. Ela conectou, a gente conseguiu uma empresa de um contador, ela que estimulou a gente a criar uma campanha de financiamento coletivo para arrecadar recursos e abrir a agência, formalmente falando, o CNPJ. Então, a Izabela é essa figura, hoje é uma espécie de CEO da Mural, a diretora-executiva e também nossa mentora, a mentora dessa equipe fixa e pensando na Agência como um todo. Então, foi importantíssimo o papel dela já que ela tinha muita experiência no Mural e olhava para o Mural e acreditava nesse potencial todo. 


[30:31] A minha dúvida a partir disso vem da parte dos leitores. É muito colocado que a população mais pobre, que é a periferia, é quem não lê. Eu gostaria de saber se vocês sempre tiveram esse olhar – para dentro do blog Mural – de que a periferia lê sim, uma vez que, de maioria das pautas que vocês trazem, grande parte delas é escrita e não matéria em vídeo ou áudio completamente. Então, gostaria de saber como funciona essa escolha. 


[31:07] Vagner de Alencar: A gente, desde o início, identificou que nosso público-alvo é o morador da periferia. Então, a gente tem ao nosso redor famílias que... Imagina que, dessa rede de correspondentes, a maioria são jornalistas que são os primeiros de suas famílias a ingressarem nas faculdades, a terem ali um diploma. E aí a gente entendia, acho que desde o início o fato, a gente é um nativo digital, a gente sabe que ainda as periferias, as populações periféricas, de um modo geral, ainda têm dificuldade para acessar a internet, às vezes não têm muito tempo ou disposição de ler textos que sejam muito grandes, mas a gente sempre entendeu o poder também da internet para chegar a essas pessoas, seja a partir do texto diretamente ou a partir das redes sociais, e também entendendo que há ainda uma fatia da população que não é escolarizada, que tem dificuldade de leitura e tudo mais. Mas isso não impediu que a gente acreditasse que um blog pudesse ter essa penetração e chegar na nossa audiência. Este ano, por conta da pandemia, fez com que as pessoas sentissem a necessidade cada vez maior de se informarem, então esse é um aspecto, e também entendendo que elas precisam ter notícias que falem de suas realidades, que as representem, que é o que a Mural vem fazendo. Então, para a gente sempre foi um desafio, e talvez esse seja o maior desafio de mídias independentes, de alcançarem as suas audiências, de fazer com que o morador entre diretamente no site e leia os nossos conteúdos. E aí a gente vem procurando formas e formatos de fazer com que isso aconteça. A gente entende que o texto é importante, é importante, só que hoje só ele também não basta, tanto que agora a gente tem abusado de outros formatos, mais artes, de figurinhas no WhatsApp – a gente tem usado muito o WhatsApp, entendendo que ele é o canal ainda que, infelizmente, mais propaga fake news no mundo. Então, fazendo podcasts, criando artes, fazendo outras parcerias, o fato de ter tido um quadro na (TV) Band, no jornal Bora SP, fazia com que mais pessoas também tivessem acesso a esses conteúdos. Porque, para mim, a grande questão é como essas reportagens vão chegar à nossa audiência. Se é pelo texto, lindo e maravilhoso, só que a gente sabe que dentre essas plataformas todas, talvez ele ainda seja o menos sedutor ou o mais complexo, já que eu preciso, muitas vezes, do meu celular acessar aquele conteúdo e vai consumir dados. Então, é isso, a gente cria justamente um podcast para enviar esse arquivo diretamente para o número da pessoa para que ela não precise ter os dados consumidos e também para que, se ela não estiver interessada na leitura, ela saiba o que está pegando e consuma essa informação a partir do áudio. Então, é um desafio, eu queria muito poder falar que toda a nossa audiência acessa o site, lê o site e não, né? Eu acho que é um pouco de um reflexo que é geral ainda e aí por isso a importância de pensar esses formatos todos, porque, assim, como há pessoas que são muito escolarizadas nas periferias – muito por conta das políticas dos últimos anos ou das últimas décadas que rolaram – mas ainda tem quem não sabe ler. Então, por isso, a importância do podcast, ou há quem não tenha tempo, por isso, a importância das artes gráficas, mas no futuro a gente quer que muita, muita, muita gente e os moradores das periferias como um todo possam acessar todos esses conteúdos independentemente do formato.


[35:54] Dentro dessa noção de mídia e do tanto que a Agencia Mural cresceu nos últimos anos, você acredita que as periferias e as favelas, elas sejam retratadas hoje com menos estereótipo e que elas estejam conseguindo conquistar maior espaço de disputa narrativa com a mídia estabelecida? 


[36:19] Vagner de Alencar: Eu acredito que as coisas têm mudado bastante. Eu acho que é uma parada estrutural. A gente não pode falar sobre as periferias no fluxo de notícias sem falar sobre como são as redações, né, ou como não são ou não eram diversas as redações, porque é um reflexo. A partir do momento em que as redações eram formadas por colegas de condomínio, ou pessoas que moram nos centros das cidades ou que são formadas por colegas de uma mesma classe, essa diversidade não vai acontecer porque essas pessoas, elas não sabem, elas não vivenciam a diversidade. Elas vão continuar estando ali no centro expandido, onde está o poder político e econômico. Eu acredito que, agora, as redações… existem mais políticas de diversidade nas redações, muitas vezes por uma pressão, porque as redações estão entendendo que elas precisam ser diversas porque as periferias são muito mais do que esses territórios que elas foram pintadas, esse território de guerra, de coitadismo e de violência, né? Então, tem uma questão, obviamente que é financeira aí, mas eu tenho visto redações mais diversas, com políticas mais direcionadas para pessoas negras, para pessoas que moram em periferias. A gente sabe que as periferias são pretas. Eu vejo muita mudança. O próprio fato de a gente estar na Folha de S, Paulo, o próprio fato de a gente ter tido um quadro na Band, como eu falei, o próprio fato de agora a gente ter um quadro na Rádio CBN, que tem feito um giro pelas 32 subprefeituras, o próprio fato de a gente ser solicitado o tempo inteiro para indicar muralistas correspondentes ou outras pessoas da nossa rede. É isso, a diversidade aos poucos vem ganhando espaço e consequentemente as periferias estão sendo retratadas com mais diversidade. É isso que precisa ser. A cidade é plural e não precisa ter essa dicotomia das periferias como algozes da cidade, como se elas estivessem em um lugar distante. Pelo contrário, eu penso muito nessas conexões, de pensar que, no caso da Mural, a gente está nesses territórios e tem essas histórias, como a gente pode amplificar isso? Fazendo parcerias com as mídias hegemônicas? Por mim, eu acho incrível porque, como eu falei, o nosso propósito é visibilizar essas histórias e mudar a vida das pessoas. E eu espero que as redações sejam muito mais plurais e que os cargos não sejam só os dos estagiários. O topo dessa pirâmide aí também precisa mudar. 


[39:41] Você tinha falado sobre fake news e é um assunto que eu queria voltar, porque em um ano eleitoral, em que a gente está sofrendo, mais uma vez, uma polarização muito grande. Geralmente, as populações mais pobres são as que mais sofrem com isso. Então, qual é o papel da Agência Mural nesse ano eleitoral, em um cenário em que existe muita desinformação e fake news, para combater esse cenário? Não só qual é o papel, mas você pode dar alguns exemplos de como vocês vem fazendo isso. Quando vocês dizem, por exemplo, “a gente tenta estar no WhatsApp”, mas como que a gente trabalha aquele discurso de “tia, mas você viu no Zap? Lá acho que não é muito confiável”. Como vocês trabalham isso? 


[40:28] Vagner de Alencar: A gente fala muito em quebrar os estigmas, mas não é só isso porque a gente quer visibilizar, visibilizar as histórias, visibilizar as periferias porque, uma vez invisíveis, essas pessoas, essas populações e esses territórios, é como se eles não existissem. E se eu não existo, eu não me vejo, se eu não me vejo, eu não reivindico, eu não transformo, eu não ajo. Todo tempo a gente pensa nessa premissa para tudo o que a gente faz. O lance das fake news, elas vêm sendo um problemão para todo mundo, porque elas podem até matar, uma informação falsa, uma notícia falsa, ela pode até matar. E aí, a gente entendendo que o WhatsApp é esse canal que, segundo os estudos, é o que mais perpetua notícias falsas, a gente decidiu usá-lo para fazer justamente o contrário, para disseminar reportagens, reportagens apuradas, checadas e confiáveis. O podcast Em Quarentena, ele nasceu por conta da pandemia, muito nessa função de diariamente a gente poder enviar um conteúdo relacionado às periferias para nossa audiência e de alertar todo tempo as pessoas acerca do perigo em que existe em simplesmente compartilhar uma notícia que recebe. Hoje, por exemplo, a gente tem, todas as quintas, quinzenalmente, no podcast do Em Quarentena, uma editoria só de fake news, fake news do nosso público, que envia para a gente, a gente vai checar e transforma aquilo num podcast. E agora, recentemente, a gente passou a fazer parte do Projeto Comprova, que se tornou um projeto de checagem mesmo de notícias falsas, que vem trabalhando a questão do combate à desinformação. Então, a Mural, ela faz parte desse projeto, desse novo projeto com outras oito organizações que também atuam em periferias e comunidades, e tem sido muito bacana, porque o que a gente fazia muito ali no feeling, a gente, agora, está aprendendo de fato a fazer checagem e a alertar nossa audiência sobre os perigos da informação mesmo. Então, a gente vai desde o WhatsApp, como eu te falei, enviando esse conteúdo a partir desse canal, e também estamos no Comprova fazendo checagens, a partir de outras notícias falsas que estão rolando. Hoje, a Mural está atuando, quando a gente fala de fake news, nessas duas frentes: Comprova, recente agora, e o podcast com essa editoria quinzenalmente. É importante falar que o Em Quarentena todo dia ele tem uma editoria diferente. Às terças-feiras, por exemplo, a gente fala de eleições, então, entendendo aí que, muitas vezes com informações que são até mais didáticas: qual é o papel de um vereador? Está certo receber santinho em casa? A gente vem, não é diretamente fake news, mas a gente vem também com essa pegada que é um pouco mais didática. 


[44:32] Entrando na fase final da nossa entrevista. Você chegou a publicar, há alguns anos, o livro Cidade do Paraíso: Há vida na maior favela de São Paulo, com a Bruna Belazi. Esse também foi seu trabalho de conclusão de curso da Mackenzie. Você pode contar um pouquinho a respeito e se você ainda pensa em escrever mais livros? 


[45:00] Vagner de Alencar: Eu vivia em Paraisópolis nessa época. Estava lá pensando o que ia fazer de TCC, já estava na Agência Mural, então, a Mural teve um papel fundamental, né, me fez, de fato, desvelar o meu olhar para Paraisópolis, para o meu bairro, entender que ele era uma superpotência. Eu pensava “qual é a contribuição que eu posso, a partir desse TCC, também fazer aqui para minha casa, para o meu bairro?”. Aí eu decidi fazer um livro de reportagem, muito retomando histórias que eu já tinha contado na Mural, dando uma maior profundidade em algumas histórias. Mas eu acho que teve, tiveram dois momentos que foram cruciais para entender que eu precisava fazer um trabalho que fosse a contra-narrativa do que eu estava só vendo, não bastava só que eu escrevesse obviamente na Mural, porque eu estava sendo metralhado, ali, diariamente com notícias que não condiziam com o que eu vivia. E aí foram dois fatos, na verdade foram duas invasões da polícia em Paraisópolis, que ocuparam a favela, uma história de um possível confronto entre traficantes e a polícia, e a polícia ocupou a favela por dias. Então, era Jornal Nacional ao vivo, era a galera do (José Luiz) Datena com helicóptero, minha avó me ligando desesperada perguntando se estava tudo bem, se a família estava bem. Então, virou um campo de guerra e eu entendia também o papel ruim que a imprensa tinha naquele caso, porque ela ajudava a potencializar aquele estereótipo negativo como se, de fato, a favela fosse um campo de guerra. E eu andando ali pela comunidade, vendo que um grupo de jovens sabia que eles estavam sendo filmados e começaram a apedrejar os prédios porque aquilo era a visibilidade que eles queriam, né? E era como se seis jovens ou aquela ação irresponsável fizesse com que Paraisópolis inteira fosse um bunker de bandido, como a gente viu até recentemente num site, que cunhou esse termo para falar do (Morro do) Alemão, salvo engano. E eu precisava mostrar a Paraisópolis que eu vivia. E o livro nasce disso, o trabalho na Mural nasce disso e foi muito bacana, tanto que o próprio título do livro, eu brinco com esse neologismo dee “Paraisópolis: a cidade do paraíso”  para mostrar que a favela é uma região que tem sérios problemas de tudo, né, de infraestrutura, também de violência, mas assim como tem problemas de violência na Vila Madalena, no centro de São Paulo, para, de fato, tirar esse estigma da favela e das periferias como um todo, como lugares perpetuadores de atos violentos. Foi muito bacana porque, a partir desse livro, eu consegui mostrar essa Paraisópolis em várias entrevistas na televisão, na rádio. Eu e a Bruna participamos, inclusive, da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires meses depois do lançamento do livro. O livro, ele é adotado na Escola Americana aqui de São Paulo. Já por dois anos, eu fui falar sobre desigualdade, os alunos estudaram o meu livro. Então, o livro virou um pouco dessa arma de conscientização, dessa arma de mostrar as periferias com esse retrato de quem não está lá não consegue ver. Então, é meu filho, meu filho azul. Eu fico muito feliz de ter feito esse projeto. Eu tenho, sim, vontade de escrever outros livros. Esse foi um livro, obviamente, um livro de reportagem, mas eu quero escrever um livro sobre a Bahia, sobre a cidade onde eu morei, pode ser um livro de reportagem, mas eu acho que, está aí na meta, não sei para quando, um livro de crônicas lá do povoado onde morei, da cidade onde eu morei que é a terra do café, Barra do Choça. E quem sabe num futuro aí, não distante, um livro a partir também de todas essas experiências que a gente fez na Mural. Seria muito lindo um livro de 20 anos da história da Agência Mural. 


[50:05] E de todo esse caminho que você trilhou, dentro do jornalismo, você começou antes da Comunicação, você começou querendo ser professor.  E me parece que, no final das contas, tudo isso acabou virando um caminho só. Agora você faz Doutorado na PUC, fez Mestrado também e chegou a dar aula em algumas universidades de São Paulo. Eu queria que você contasse um pouquinho disso para gente e também falasse um pouco sobre o que é a sua tese de Educação agora. 


[50:38] Vagner de Alencar: Eu sempre quis ser professor porque era a única profissão que, desde que me entendo por gente, era possível. Talvez eu quisesse ser um médico, um engenheiro, mas como eu tinha professores que eram as minhas únicas referências, eu queria ser como eles, eu queria ser inteligente como eles, eu queria poder alfabetizar pessoas e isso aconteceu na Bahia. Então, eu fui professor por três anos lá, quando eu ainda era jovem e fui professor na educação de jovens e adultos. Eu prestei Letras lá na Bahia, não passei na universidade pública de lá. Comecei a fazer Letras aqui pelo ProUni, consegui uma bolsa. Só que o fato de viver dentro de várias desigualdades e de entender que as minhas vivências e as vivências das pessoas que estavam ao meu redor não eram retratadas, aquilo me agoniava muito e eu queria poder contar aquilo. E aí surge o Jornalismo, assim, despretensiosamente e eu estaciono um pouco ali o fato de ser professor, entendendo que, naquele momento, que talvez professor, para mim, fosse só do ensino básico, e não, né? Até porque eu nunca imaginei que um dia eu pudesse ser professor universitário. Esse espírito da docência veio a partir do Mural também. Então, quando eu ajudei a criar o Mural nas Escolas, eu ia às escolas de Ensino Médio, meio para apresentar a Agência Mural e ali, involuntariamente, eu acabei criando uma metodologia para fazer com que esses meninos e meninas pudessem ter uma análise crítica da mídia, do que era ser jovem, do que significava juventude. Sem querer, eu estava, não oficialmente, dando aulas a partir desse projeto. Há dois anos, eu criei um curso do que é ser correspondente e dei aula, um curso de extensão aqui na faculdade, na Fesp, na Faculdade de Sociologia de São Paulo, e foi bem bacana. E o fato de ter enveredado para a  área acadêmica é para fazer com que, daqui a alguns anos, junto com a Mural ou junto com jornalismo ou não, eu possa dar aulas. Quero dar aula de Jornalismo, faço doutorado em Educação, eu já expliquei todos os motivos, porque Educação e não Comunicação, que foi essa primeira área, que eu amo educação e eu queria também essa formação quase que mais interdisciplinar, eu pensava mais o jornalismo na prática e vamos estudar as teorias da educação. E eu, no Mestrado, estudei a concepção e o uso do termo “fracasso escolar”, da expressão "fracasso escolar" na imprensa, utilizando a Folha de S. Paulo como fonte e objeto de estudo. E agora, no Doutorado, meu estudo é sobre a expressão “fracasso escolar” no contexto brasileiro e argentino. Então, é um estudo histórico comparado de como esses dois países nas últimas décadas cunharam o termo “fracasso escolar”. 


[54:11] Enfim, para fechar, o que a Agência Mural mudou no Vagner? 


[54:23] Vagner de Alencar: A Mural me possibilitou ser um jornalista sonhador, um jornalista que começou a fazer faculdade querendo mudar o mundo e que tem conseguido mudar o mundo. Ter podido mudar Paraisópolis, ter podido influenciar as pessoas que nasceram lá na Bahia e que me veem como referência. A Mural me possibilitou ter viajado para os Estados Unidos representando o Brasil em um programa de lideranças mundiais. A Mural me possibilitou ter acendido a chama para escrever um livro sobre Paraisópolis, me possibilitou, no ano passado, viajar para o Nepal e conhecer outros jornalistas de 25 países. Me possibilita, hoje, ajudar a formar outros jornalistas que estão saindo das faculdades, que também sonham em mudar o mundo e que, agora, com pessoas que estão conseguindo, talvez seja um caminho mais fácil. Então, a Mural me possibilita ser jornalista, me possibilita ser esse professor de Jornalismo sem estar na faculdade que, para mim, tem sido importantíssimo. Acho que é isso, a Mural me fez escalar todos esses muros que eu achava intransponíveis e que, para mim, por mais difíceis que tenham sido, foram escalados. Então, a Mural me faz ser uma grande pessoa, eu acho (ele sorri).


FIM 

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