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  • Foto do escritorReconfigurações Jornalísticas

Gênero e Número: jornalismo de dados contra o preconceito

Atualizado: 3 de fev.

Ana Carolina Moraes e Lara Barsi

Dezembro de 2020


A Gênero e Número é um dos novos veículos que vêm se destacando na nova era da comunicação digital no Brasil. Fundado em 2016 pela jornalista Giulliana Bianconi, o veículo produz reportagens e projetos de visualização que buscam discutir, a partir de bases de dados, temas ligados a gênero, raça e política. Definida em seu próprio site como a “primeira organização de mídia no Brasil orientada por dados para qualificar o debate sobre equidade de gênero”, a GN publica reportagens que falam sobre mulheres na política, temas LGBTQI +, gravidez na adolescência, o poder das mulheres negras, estupro, entre outros. O site vem crescendo e conquistando espaço como referência nesses debates hoje no Brasil.


Giulliana Bianconi concedeu (pelo aplicativo Zoom) a entrevista ao projeto Reconfigurações Jornalísticas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em duas partes, nos dias 13 e 22 de outubro de 2020. A equipe do veículo é formada, atualmente, por 11 mulheres. Giulliana, criadora da “primeira organização de mídia da América Latina a produzir jornalismo de dados com recorte de gênero e de raça” (como podemos ler no site), desenvolve diversas pautas de forma analítica e crítica, mas, atualmente, tem focado mais na coordenação da GN, como conta na entrevista. Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, é pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Já trabalhou em organizações do terceiro setor e foi repórter no Diário de Pernambuco, Folha de S. Paulo, entre outros. Além de seu trabalho na GN, mantém uma coluna sobre gênero na versão online da revista Época.


Na entrevista, conta a história do veículo e como é a rotina de trabalho da organização em um mundo tão complexo e disputado como o jornalismo nas mídias digitais. Pensar pautas a partir de bases de dados implica um trabalho com peculiaridades em relação à rotina tradicional da profissão. É necessária uma expertise técnica, além de um corpo a corpo quase diário com bases de dados disponibilizadas pelas autoridades, um trabalho para o qual a Lei de Acesso à Informação (LAI) se mostra fundamental. Formatar e montar bases de dados é outra tarefa. O veículo, a partir de uma perspectiva apartidária, busca desconstruir narrativas como a de “ideologia de gênero”, que ganhou centralidade na política nos últimos anos. O projeto Reino Sagrado da Desinformação, realizado em parceria com o veículo jornalístico Marco Zero Conteúdo, também nativo digital, especializado em pautas investigativas, é uma contribuição relevante nesse sentido, ao buscar desvendar as origens dessa narrativa nas redes, identificando seus polos políticos de difusão.


O dia a dia de trabalho da GN é flexível, mas em moldes estruturados. Ainda sem conseguir se sustentar apenas com doações e assinaturas, o veículo se financia também com o apoio que recebe de organizações nacionais e internacionais. A experiência de Giulliana em atividade do terceiro setor ajuda nessa parte. No momento, o veículo possui três principais áreas de atuação: 1) a GN Editorial, que trata das reportagens que sempre prezam “pelos fatos e dados abertos”, com newsletters e material de conteúdo exclusivo e muita apuração; 2) a GN dados, que serve como uma fonte de dados para assinantes da GN e para o próprio veículo, que tem como base o conteúdo comparativo de números, para a reflexão sobre o tema abordado; e 3) a GN Cursos e Eventos, que leva o debate dos temas da GN para além da internet, com encontros que podem “extrapolar as bolhas sociais”, como afirma o próprio veículo. É uma estrutura que se moldou aos poucos, nos últimos quatro anos, a partir da experiência e das necessidades cotidianas.



Transcrição da entrevista com Giuliana Bianconi, da Gênero e Número

Realizada por Ana Carolina Moraes e Lara Barsi

Revisão da transcrição e minutagem: Nataraj Trinta

Datas de realização das entrevistas: 13 e 22 de outubro de 2020

Clique aqui para acessar à transcrição da entrevista em versão PDF.


0:12 Carol: Tá, então tá! A gente queria que você se apresentasse um pouquinho, falasse um pouco de você e da sua… do seu momento atual no jornalismo.


0:23 Giulliana: Boa tarde, sou Giulliana Bianconi, sou jornalista, fundadora, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Bom, a Gênero e Número é uma organização fundada em 2016, mas antes disso eu tenho uma história no jornalismo que começou, enfim, lá em Recife, onde eu fiz faculdade de Jornalismo também e lá eu estagiei em rádio e jornal, em vários veículos assim, mas onde eu fiquei mais tempo foi no Diário de Pernambuco, que é um jornal dos grupos associados, um jornal, enfim, bastante tradicional assim, inclusive, no Nordeste, mas um jornal muito antigo, até tem esse slogan de que é o jornal mais antigo em circulação da América Latina. Então, tinha ali uma estrutura assim bem legal mesmo para trabalhar assim. E lá eu comecei como estagiária ainda do Pernambuco.com. Então, em 2004, eu trabalhava em portal na internet, enfim. Depois disso, eu fui para o impresso, então, interessante também que eu comecei já a vida no jornalismo online, porque ainda nem era muito… isso sempre fez parte, sempre permeou assim a minha trajetória, esse trabalho com o digital. Depois eu fui para o impresso e aí trabalhei bastante nas editorias, especialmente esporte, mas também colaborando eventualmente com outras editorias, de política, tecnologia, enfim. E aí depois eu fui para o trainee da Folha de São Paulo, eu já estava até formada quando eu fui nesse trainee. Eu tinha me formado fazia pouco tempo, mas eu achei que valia a pena, que seria uma experiência interessante, aí eu fui, eu estava, inclusive, contratada já no jornal. Aí, enfim, fiz essa avaliação, de que era uma experiência interessante de se ter, de fazer um trainee na Folha e tal, mudei para São Paulo, por causa disso, aí fiz o trainee e depois fiquei com um repórter lá um tempo e aí aquela estrutura do jornal, da Folha em si, eu tinha como referência um jornal muito menor, que era o Diário, mas eu… algumas coisas ali na estrutura da Folha me incomodavam, assim, muitos freelancers que não eram contratados, que são os “freela” fixos assim por muito tempo, tinha também assim... eu achava que as pessoas ganhavam pouco porque falava assim “ah, mas é porque é jornalismo, salário é ruim em todo o lugar”, mas aí eu lembrava do outro jornal e ficava “gente, não, as pessoas aqui ganham muito pior”. Enfim, várias coisas nessa linha que me fizeram também avaliar que não valia a pena ficar ali tanto tempo e aí eu saí da Folha para ter outras experiências na comunicação. Foi na época que eu trabalhei em consultorias de comunicação em São Paulo, fui trabalhar com… Em agências que trabalhavam com terceiro setor, agências de comunicação que tinham esse olhar para as causas, trabalhei numa agência que foi muito importante para essa formação, que ela era a Significa, e aí depois disso, houve uma fusão com a Edelman e aí virou a Edelman Significa, mas foi um espaço onde eu aprendi bastante dessa comunicação mais relacionada a produtos. O que viria a ser muito interessante também depois na Gênero e Número, porque aí eu consegui aproximar essas duas... Esses dois mundos: pelo jornalismo super editorial, desta produção editorial, e desse campo de produtos. Enfim, então eu diria que a minha trajetória ela me foi muito positiva assim para quando eu… enfim, eu enxergo isso hoje, que ela foi muito positiva para me levar a esse lugar de fundadora de uma organização de mídia, embora a gente sempre tenha muito o que aprender quando a gente dá esse passo. Para me apresentar tá bom aqui e depois eu falo mais sobre isso.


4:53 Lara: Eu queria perguntar sobre sua trajetória. Você nasceu em Pernambuco, se formou em jornalismo pela Federal de Pernambuco. Como você veio parar no Rio de Janeiro, onde é a sede da Gênero e Número? Como foi essa escolha: “E vou pro Rio de Janeiro”?


5:15 Giulliana: Gente, eu tenho muito essa curiosidade mesmo em entender quais são os lugares, onde a gente pode fazer a comunicação que a gente sonha, que a gente busca, então. Na verdade, só uma correção que eu não nasci em Recife. A minha família materna é do Recife, mas eu nasci em São Paulo, aí eu fui para lá criança e fiquei, cresci, fiz faculdade lá e depois eu voltei a São Paulo, mas só mesmo... Eu me considero super pernambucana, né? Porque toda a minha formação, minha vida, as referências da infância e tal são de lá, mas tem esse lugar de onde eu nasci. Bom, eu, depois de um tempo em São Paulo, eu também percebi que eu só trabalhava lá né, eu tinha essa vida super comum também a muitos paulistanos, a quem vive em São Paulo mesmo sem ser paulistano, que é uma vida de muito trabalho. Eu acho a cidade pouco generosa nesses momentos de respiro. Então, eu também já tinha a vida inteira morado em uma cidade mais leve do que aquela, que era Recife, e tinha vontade de sair um pouco daquela cidade tão densa e, se possível, ainda assim continuar fazendo esse jornalismo ou essa comunicação que eu acreditava. Então, eu achei, eu observei que o Rio tinha ali também um movimento interessante, o Rio tem um movimento acadêmico muito legal assim, as universidades e a comunicação aqui muito vivas, produzindo bastante coisa. Muitos projetos relacionados à comunicação digital, que era bastante o que eu me interessava, enfim, então eu entendi que aqui poderia ter esse campo para mim também E aí quando eu cheguei no Rio, a Gênero e Número ainda não existia, porque eu cheguei no Rio e só depois de três anos eu comecei a pensar e a planejar a Gênero e Número. Então, nesse período, eu ainda trabalhei bastante como consultora de comunicação para organizações de terceiro setor. Foi um momento muito importante também para a minha trajetória, porque eu conheci organizações como o Fundo ELAS, que fica baseado aqui. E o Fundo ELAS tem uma história de ser um fundo de empoderamento de mulheres e apoia projetos de diversas áreas com muita consistência. Foi muito importante esse período, trabalhei para o Fundo Brasil de Direitos Humanos como consultora, fiz consultoria também de comunicação para a Fundação Ford, que depois iria ser a financiadora da Gênero e Número. Então, foi um momento assim de aprendizado também. E aí, eu comecei a entender que tinha uma necessidade minha de convergir todo esse aprendizado para uma coisa que eu pudesse colocar toda minha energia, porque eu ficava trabalhando muito em organizações e eu sentia que eu plantava ali, deixava uma sementinha, mas eu não conseguia ver a coisa crescer, porque aí acabava o meu período de colaboração naquele projeto, eu saía e ia me dedicar a outro. Então, era sempre essa energia de fazer as coisas se organizarem, colocar ali alguma… Esse conhecimento da comunicação para uma equipe. Eu aprendia bastante nessas trocas, mas tinha um limite e aí foi quando eu comecei a entender que eu queria uma... Um desafio diferente, que eu queria poder colocar desde o momento zero e acompanhar e fazer isso crescer, se desenvolver. Então, vem daí um pouco essa compreensão de que eu precisava fundar alguma coisa que eu me dedicasse de outra forma.


9:03 Carol: Como que você começou no jornalismo? Como você teve a ideia de entrar na faculdade de jornalismo?


9:11 Giulliana: Eu sempre fui aquela pessoa muito crítica. Tive uma formação que, para mim, é uma memória muito feliz. Eu estudei numa escola que foi fundada por Paulo Freire, em Recife. Então, eu tinha um olhar muito crítico para a construção, como a gente quer construir um mundo, que mundo a gente quer. Eu tinha essa percepção de que a gente precisa de alguma forma se engajar, ter um trabalho de interesse público. Para mim, eu acho que sempre foi um norte mesmo essa busca por fazer alguma coisa que tivesse um impacto social. Eu acho que isso veio da minha formação, veio um pouco também da minha personalidade, da necessidade de entender como eu posso fazer um pouco com que o meu trabalho e como a minha energia fosse canalizada para alguma coisa de interesse maior que não fosse só o trabalho que se resumisse à satisfação própria. E eu enxergo muito o jornalismo como esse lugar, como essa profissão, em que você tem os seus objetivos, você tem ali as metas, você se encanta com um determinado lugar que você gostaria de trabalhar, mas o que faz diferença nesse trabalho é o que você consegue levar para o mundo e como aquilo pode contribuir para uma melhor informação. Então, eu sempre gostei dessa ideia de trabalhar com alguma coisa que fosse com esse propósito. E aí, enfim, eu acho que o jornalismo era uma das opções, eu olhei para outras, e eu cheguei a prestar vestibular para Direito, passei também, cheguei a fazer um semestre de Direito, aí depois ficou muito pesado fazer as duas e eu fiquei só no Jornalismo. Mas eu cheguei a prestar lá na católica que era como se fosse a PUC. Então, o Direito eu fazia na PUC e na Federal era Jornalismo. E aí, depois, eu fiquei só no Jornalismo e eu sou bem feliz com essa decisão.


11:45 Carol: E você se formou em qual ano?


11:48 Giulliana: Eu me formei em 2006. Era para eu ter me formado até um pouco antes, mas eu tranquei... Comecei em 2001, aí tranquei, voltei em 2002 e me formei no fim de 2006.


12:09 Lara: Eu gostaria de saber quando foi que você tomou a decisão de criar um veículo para falar sobre gênero. A Gênero e Número nasceu em 2016, mas quando surgiu a ideia?


12:34 Giulliana: Eu tinha essa proposta de fundar mesmo alguma organização que eu pudesse fazer jornalismo e trabalhar jornalismo de uma forma muito diferente de uma grande redação, com todos os aspectos óbvios de custo, de orçamento, mas não só com isso. Eu queria mesmo entender como fazer esse jornalismo, que eu acredito também, e eu acho que, inclusive, o jornalismo da grande imprensa tem muita coisa boa sendo produzida. Eu não acho que tenha esse antagonismo, sabe? “Esse é bom, esse é ruim”, não é isso, acho que tem muita coisa importante. Eu acho, inclusive, que esse momento que a gente vive, é muito importante a imprensa séria, a imprensa comprometida com a democracia, que ela esteja de pé, esteja forte. Isso é super importante. Mas quando eu decidi fundar um veículo que fosse tratar de gênero era porque eu entendi que existia essa necessidade e esse espaço mesmo para a gente fazer uma cobertura que a grande mídia ainda não fazia. E trazer esse olhar e esse tom mesmo de urgência na cobertura, do que que é importante, do que a gente precisa revelar para a sociedade, trazer para o debate público. Então, foi uma leitura ali de que havia esse espaço. Tinha esse momento de levante, o movimento feminista acontecendo. A gente acompanhava como as pautas ficavam muito subaproveitadas. E, além disso, tinha um outro cenário que era o do acesso a dados, a dados públicos, que a gente já tinha, então, um acesso a dados num outro nível a banco de dados digitais e tudo mais. E a gente, a partir dali, não tinha ainda ninguém produzindo, olhando para esses dados com recorte de gênero e, depois de um ano, a gente entendeu que não era sobre gênero, era sobre gênero e raça, e aí raça passou a ser tratada também, assim, as etnias e tal, com muita interseccionalidade também, porque não fazia o menor sentido eu falar só sobre gênero. E isso foi uma compreensão mesmo, aquela percepção do que se tinha que fazer e ainda não era feito. Então, eu acho que a GN veio muito para ocupar mesmo o espaço que estava ali, para quem tivesse essa disposição sabe. Eu acho que o nosso posicionamento de trabalhar com dados ele reúne, ele se propõe a qualificar ainda mais, então é isso.


15:31 Carol: Você falou da questão de já ter um movimento feminista por trás quando vocês criaram a Gênero e Número. A gente sabe que em 2015 aconteceu a #MeuPrimeiroAssédio que começou a ser mais debatido a questão do assédio, do estupro, de outros temas muito importantes para o feminismo em si e para a cultura em geral. Você de alguma forma já se sentiu constrangida como uma mulher jornalista na profissão e se isso, de certa forma, também impactou na criação da Gênero e Número?


16:12 Giulliana: Não impactou na criação. Eu acho que o que impactou na criação foi a leitura de que tinha esse espaço no mundo para a gente falar de gênero no jornalismo e que era importante para o mundo. As minhas experiências, eu acho que elas me levaram a esse lugar, elas são intrínsecas. Eu vivi situações que hoje eu enxergo como totalmente machistas e aquilo me incomodou, somou também para eu deixar uma redação, mas não foi decisivo. Eu acho que me incomodava tudo. Me incomodava certamente aquele ambiente muito machista, mas não foi isso que me direcionou a sair do jornalismo. Foi realmente achar que aquilo ali poderia ser muito melhor do que era e que não - lá atrás eu estou falando - e que não era, porque era desse jeito que funcionava, como uma grande empresa. Mas, sem dúvida nenhuma, o feminismo é uma força muito grande da nossa sociedade e historicamente é uma força que vem movendo mesmo a política, vem movendo os campos de disputa por direitos e é um movimento que, ainda bem, eu tenho agora essa conexão, essa possibilidade de fazer uma organização como a Gênero e Número existir no momento em que essa força ela é tão pulsante, ela é tão viva novamente. Porque assim, antes da gente, tem uma organização que eu considero super referência que é a Agência Patrícia Galvão, é fundada pela Jacira Melo, uma feminista histórica, jornalista. Ela está nas lutas pelos direitos das mulheres há muito tempo e ela se coloca muito nesse lugar também, ela está sempre nesses espaços de conversa e de articulação, como também o movimento feminista. A Jacira fundou essa organização quando não existia esse movimento tão pulsante e ela ficou muito tempo também à margem, eu diria, da mídia, porque não tinha esse interesse, essa atenção para o tema. A Gênero e Número chegou no momento em que havia isso, havia esse interesse. Então, eu consegui perceber, ler esse momento, definir que eu ia criar essa organização, que ainda não tinha nome, e não tinha um escopo editorial, o que que a gente ia produzir, por mês, por semana, não tinha isso, mas eu sabia que a gente tinha esse espaço para ocupar. E daí, então, que vem... sem dúvida, é uma soma das minhas experiências, mas também dessa percepção de mundo, de olhar para o mundo e sentir que tem sim a necessidade de a gente pautar esse tema com mais presença, com uma periodicidade maior. Então, vamos fazer isso a partir de um lugar. Que lugar é esse? É a Gênero e Número.


19:27 Lara: Como você se interessou pelo jornalismo de dados? Onde você aprendeu? Como você pegou o conhecimento nesta área do jornalismo?


19:39 Giulliana: Você sabe que na faculdade a gente não tinha nem aula de audiovisual, a gente mal tinha um laboratório com computador, com softwares. Computador tinha, mas a maior parte das disciplinas, elas eram “caderno e caneta” na sala de aula. A gente ia para o laboratório para fazer editoração de veículos, gente, eu estou falando de 2005/2004, o período da minha faculdade. Realmente, eu não tive nada sobre essa formação na faculdade. O que aconteceu foi que depois eu fui trabalhar numa consultoria e lá eu trabalhava muito com Excel, na verdade fazendo cálculos para projetos e tal. Então, antes de eu trabalhar com jornalismo de dados, eu já trabalhava com algumas ferramentas e softwares, que são essa base para se trabalhar com jornalismo de dados. Quando eu entendi que isso poderia somar e a gente ser na Gênero e Número essa organização, eu comecei a procurar e fazer esses cursos online, comprar livros da área e buscar essa formação que fosse complementar mesmo. Então, o que eu posso falar também é que eu acho que numa organização como a GN nem todo mundo tem que ser essa pessoa que vai abrir uma imensa base de dados e trabalhar com ela ou fazer uma raspagem. Ou seja, eu não acredito e eu nunca acreditei que numa organização, para que as coisas funcionem, a gente tem que ter todo mundo o mesmo papel, porque, aqui, eu vou precisar, como diretora, e isso vai ficando cada vez mais claro, então assim, só para terminar de responder a pergunta. Então, eu fui fazendo essa formação complementar, fui aprendendo, fui acessando os fóruns e entendendo o que a gente pode fazer. Mas eu acho que se a pessoa consegue trabalhar com uma boa autonomia para acessar bases, que você consegue olhá-las no Excel e a partir dali trabalhar com essas bases, ok. Só que tem um outro nível de jornalismo de dados, que são aquelas bases mais robustas, que você não vai nem conseguir abri-las no Excel. Você vai precisar de um programa, tipo o R ou mesmo a linguagem de programação como Python. E o R também é uma linguagem, mas o R ele tem uma interfacizinha super amigável. Eu cheguei a fazer um curso intensivo também do R para entender o que eu poderia avançar usando aquele software. Mas eu vou falar para vocês que, num determinado momento, eu entendi que não era esse o meu lugar, que não queria mesmo avançar para ser a melhor digamos assim “a jornalista de dados que vai fazer tudo com qualquer base”, porque eu tinha um desafio de gestão, de captação de recurso, de colocar essa organização aqui de pé e mantê-la. Então, o meu lugar foi ficando cada vez mais de diretora mesmo, de gestão. E aí, por muito tempo sim, eu fiz a gestão editorial e agora eu já nem faço mais. Essa gestão é da Martha [Maria Martha Bruno], a outra diretora. Então, por muito tempo eu fiz uma gestão editorial e agora, com esse ano, eu passei a me dedicar ainda mais à essa gestão da organização. E aí, eu eventualmente faço uma matéria, mas é muito difícil. Ultimamente, eu tenho me dedicado muito mesmo à sustentabilidade da organização. E aí, as outras pessoas que chegam, a gente, agora, já observa que elas já têm uma formação muito diferente. Mesmo que as universidades ainda não apresentem essa formação de dados na grade e tudo mais, mas já tem outro olhar para isso. Então, a Lola Ferreira, repórter, a Vicky Régia [Vitória Régia da Silva], repórter, elas trabalham com uma certa desenvoltura com as bases. Mas a gente tem na equipe duas analistas de dados, que são aquelas pessoas que, quando precisam, abrem o R e trabalham com a linguagem de programação para estruturar bases mais complexas.


24:15 Carol: A gente queria falar um pouquinho mais da sua rotina de trabalho. Sabemos que a pandemia também dificultou um pouquinho. Você já lidava muito com o home office antes ou começou na pandemia? Como a pandemia interferiu na sua rotina?


24:28 Giulliana: Olha, interferiu. Interferiu, principalmente porque eu tenho uma filha e ela não vai à escola, obviamente, nesse período inteiro. Então, a gente teve realmente que passar por uma adaptação. Eu mais que todo mundo, porque eu sou a única mãe da equipe, mas outras pessoas têm outros desafios, cuidam de algum parente, tem alguma responsabilidade que também precisou ser considerada nesse momento. A gente já fazia um esquema de home office. A Gênero e Número não é aquele lugar onde todo mundo “bate ponto” todos os dias. A gente tem uma escala, então, as repórteres vinham três vezes por semana, a editora vinha três vezes por semana. Já existia uma dinâmica de trabalhar de casa. A gente tem isso como um ponto assim… bom, a gente trabalhava num ambiente online, que é o Slack, a gente já tinha esse software como nosso software de organização diária, para troca de mensagens, enfim, funcionou por conta disso. O mais difícil foi a gente manter o nível do trabalho. Eu acho que a gente conseguiu sabe como? E aí eu acho que faz muita a diferença ser uma organização que se propõe a fazer as coisas de uma forma diferente do mainstream mesmo, porque a gente fez… É bem evidente agora que a gente foi fazendo uma escala mesmo sabe, de quem conseguia trabalhar melhor nesse período. Então, essa semana que passou: tem uma repórter que ela teve um parente que operou e ela precisou cuidar dele e a gente não deu férias, porque ela ia gastar as férias dela para isso. Então, ela ficou meio off, trabalhando só em uma determinada frente. Ela teve uma redução de carga horária para conseguir atender às demandas que ela tinha e ir tocando as responsabilidades. Aí o que acontece? Outras pessoas arcam com esse trabalho e terminam trabalhando um pouco mais e depois essas pessoas têm folga, essa repórter volta e assim a gente vai se organizando. Por que gente? Porque eu acredito que essa métrica da produtividade, que você tem que fazer e acontecer, morrer para entregar coisas, isso nem sempre é necessário. Às vezes é, mas às vezes, muito raramente, numa ocasião ou outra, num lançamento de projeto, num lançamento de reportagem especial, não é coisa cotidiana, sabe? Isso é uma cultura. Uma cultura massacrante, que não leva ninguém a canto nenhum, só a adoecer. Aqui a gente tem um outro olhar, realmente, para o trabalho. Todo mundo é super sério, comprometido, a gente olha para a qualidade do jornalismo, mas a gente não entra nessa roda viva diariamente, sabe? Foi assim que a gente passou esse período até aqui. São sete meses já de pandemia e eu posso falar que a gente fez uma avaliação survey [software de questionário] agora recente para entender como as pessoas estão e elas estão muito tranquilas em relação ao trabalho, não é um ponto de aflição, não é um ponto de ansiedade e isso é muito importante


28:00 Lara: Tem agora, na Gênero e Número, uma sessão especial sobre a Covid-19 e a gente gostaria de saber como tem sido buscar e apresentar uma situação, a partir de dados, em que as mulheres, principalmente as mulheres negras, têm sentido de maneira mais dura o impacto da pandemia? Como vocês estão fazendo esse levantamento?


28:25 Giulliana: A gente tem o olhar para gênero e raça sempre. Então, a gente busca as bases que são interessantes e a partir dali a gente começa a entender como pode trazer esse recorte. Muitas bases, elas oferecem isso. Por exemplo, [a gente] olha para uma base que revela quanto as pessoas ganham no Brasil. Então, segundo o Ipea ou segundo a PNAD Contínua, as taxas de desemprego são tais para homens, para mulheres… Aí tem para mulheres brancas, para homens brancos, para homens negros e para mulheres negras e depois vêm os outros recortes, de renda, de faixa orçamentária. A gente vai recortando, vai buscando as bases que se relacionam às questões críticas do momento da pandemia e trabalhando. Só que aí a gente também tem o olhar, que é esse olhar de gênero, mesmo quando as bases não são divulgadas. A gente fez a matéria sobre as enfermeiras. Você não precisa de uma base para ter certeza que enfermeiras são maioria na profissão, por quê? Porque esse dado a gente já conhece, você não precisa de uma base hoje para isso. Você já sabe das bases, que a gente vem trabalhando, que mostram quais são as profissões, enfim. Tem um acúmulo também que nos permite, nesse momento, abrir questões, contextualizar. A gente já sabe que historicamente as mulheres são maioria na profissão de enfermagem. Como a gente vai tratar disso? Mostrando que essas mulheres estão no lugar de vulnerabilidade, que elas vão trabalhar mais, que elas vão estar mais vulneráveis ao vírus e aí mostrar que na classe médica é diferente, tem mais homens do que mulheres nesse outro nível, digamos tem o nível de privilégio maior. A gente vai fazendo esse tipo de leitura, que vai revelando, a partir daí, vários cenários. Vamos entender que, se a gente tá falando de pandemia, de como afeta e alcança diferentes grupos da sociedade, então esses grupos que estão em comunidades que sofrem com a falta de saneamento, que têm ainda uma deficiência de água encanada, que não chega nessa região, certamente as mulheres dessa comunidade elas vão ter uma situação muito mais crítica do que mulheres que não estão nessa condição. Então, vamos falar sobre isso? Vamos. A gente olha para isso tentando entender como a gente vai trazer isso sem simplesmente apresentar um drama pessoal. Não é a história de uma mulher, é a história de um grupo, de um grande grupo social que está naquela condição. A partir daí, a gente vai. É sempre um olhar muito analítico, eu acho, a Gênero e Número assim apresenta, porque nunca é o dado por ele mesmo. A gente busca o dado, e aí a gente humaniza esse dado, a gente contextualiza. Eu acho que o ponto alto mesmo do nosso trabalho nessa pandemia foi a pesquisa. A pesquisa Mulheres na Pandemia, que a gente realizou em parceria com a SOF, com a organização Sempreviva, um trabalho que eu considero realmente fundamental para um ano feito esse. A gente faz sempre isso, a gente vai buscando os dados e humanizando, contextualizando, sempre com esse nosso repertório de gênero e raça.


32:12 Carol: Você falou um pouquinho sobre como é a rotina de vocês. Agora, a gente viu no site que são ao todo nove mulheres na equipe.


32:25 Giulliana:: Agora, já são 11, é que faltam duas lá.


32:28 Carol: Ah…. 11, então. A gente queria saber por que você escolheu montar uma redação somente de mulheres? E se há alguma dimensão simbólica nessa decisão?


32:39 Giulliana: Olha, a gente já teve colaboradores homens, inclusive, hoje, a gente tem também, mas eles não são da equipe fixa, eles são colaboradores externos. A primeira coisa é que quando a gente abre vaga chegam 90% dos currículos de mulheres, esse é um ponto. Segundo é porque os 10% de homens que vêm, a gente ainda não consegue, assim como acontece também com os currículos de mulheres, a gente não consegue visualizar nenhuma afinidade entre aquele discurso tão distante ainda de uma organização que trabalha falando de direitos de mulheres, de equidade, e no papel ele não é necessariamente uma organização educativa, a gente é uma organização mídia e por mais que as pessoas possam chegar para aprender, a gente quer um ambiente de... eu nem digo de conforto, mas de segurança, para a gente conseguir trabalhar sem precisar ficar vivenciando conflitos, porque a gente já vivencia conflitos a partir do momento que nosso conteúdo vai para rua. A gente já vivencia conflitos na política o tempo inteiro, porque a gente produz conteúdos que vão realmente muito de frente, batem de frente com esse tipo de política hoje que a gente vive no Brasil. Essa política bolsonarista, essa política que a gente visualiza de uma ascensão realmente de uma direita que não fala sobre diversidade, enfim. Então, quando a gente olha para o ambiente da Gênero e Número, é importante que a gente tenha essa tranquilidade. A gente já teve homens na equipe, inclusive, em vários momentos a gente precisou parar e fazer sessões didáticas, explicando, porque isso e não aquilo, né? E eu acho que de fato o nosso trabalho é um trabalho de impacto. Tem muitos homens que a gente sabe que leem a Gênero e Número, não é uma organização para mulheres, tem uma pegada sim, para a gente importante, que é como vamos alcançar os homens, principalmente estudantes de jornalismo, que a gente quer muito que esses estudantes homens leiam e entendam como é importante ir para o mundo da comunicação, qual é esse repertório de equidade, de direitos LGBTs e tal, mas a gente não se sente na obrigação mesmo de ter uma equipe com metade homens, metade mulheres, sabe? Então, até agora, tem funcionado assim, mas nada impede que a gente contrate homens, é porque realmente tem que ter mesmo ali um perfil muito alinhado sabe com a GN. É interessante, mas esse perfil é bem difícil mesmo.


35:29 Lara: No site, vocês explicam que o trabalho de vocês tem uma divisão. São três áreas: área editorial, área de dados e a de eventos. Como vocês chegaram a essa divisão, nessa configuração?


35:45 Giulliana: Levou um tempo. A gente levou dois anos para chegar a essa divisão, e eu acho que até um pouquinho mais. Porque o editorial, ele é onde a gente faz essa produção dos textos, das reportagens e tal, mas existia um espaço também de convergência das áreas, porque a GN trabalha muito nesse lugar de organização ponte. Então, a gente ia lá e conversava com a universidade; ia lá e conversava com alguém que está dentro do governo, desenhando ou trabalhando nesse campo de direitos humanos, equidade de gênero, raça, buscando contribuir para esse tipo de avanço. Em 2017, a gente fez um evento. Foi muito interessante, foi um evento de um dia inteiro lá no Parque das Ruínas. A gente trouxe uma exposição de El Salvador, uma exposição de dados e tal, foi muito legal, e ali naquele evento a gente entendeu que era muito potente esse encontro presencial. Poderia realmente catalisar a discussão e fazer com que essas áreas - universidade, jornalismo, ONGs - se reunissem e discutissem coisas em comum. Aí a gente também realizou um evento em Recife, foi acho que naquele mesmo ano, agora não me lembro se foi em 2017 ou 18, acho que foi logo em seguida. Em 2018, a gente fez um evento em Recife, que foi sobre mobilidade, mas eu acho que ele é… é isso mesmo, foi em 2017. Foi sobre mobilidade e foi muito legal também reunir pessoas para discutir gênero e mobilidade, com a participação também, de novo, da Secretaria de Transporte de Recife, a gente reuniu o pessoal do Porto Digital, tinha gente representante de ONG, que trabalha com gênero, foi muito interessante. A gente entende que esse lugar vale a pena. Então, a gente estruturou essa organização também para poder criar eventos e a partir daí gerar receita. A nossa divisão faz sentido assim, porque a gente consegue dividir a produção editorial e a produção de produtos. A partir daí, tentar fazer uma organização mais sustentável, que não é só produção editorial, porque a gente tem uma certa dificuldade de levantar receitas a partir daí.


38:18 Carol: Eu queria saber agora se a Gênero e Número já realizou algum material impresso? Se você tem alguma coisa para falar sobre isso, nesse sentido? E também queria saber se você acha, se tem algum momento em que o impresso ainda pode se mostrar um meio pertinente e eficaz para a publicação de algum trabalho hoje em dia, com a ascendência da internet?


38:48 Giulliana: Sim, eu acho que existem contextos diferentes em cidades pequenas e cidades grandes, capitais. Numa cidade grande como o Rio de Janeiro, numa capital como o Rio, eu entendo que para você obter algum impacto com impresso você precisa ser um veículo de massa. Precisa ter ali um alto número de impressão, ter uma distribuição, investir, ter ali realmente uma presença muito forte, mas sem dúvida nenhuma eu acho que sim, eu acho que esse impresso ele tem espaço. O que acontece? É que a gente já viveu nessas grandes cidades essa migração, então, o digital ele não é assim complementar. O digital tem o lugar dele, tem o espaço e o nicho dele. A partir daí, a gente vê o desenvolvimento de uma cultura, a cultura digital. A gente falava bastante disso lá já no início dos anos 2000. O que que é essa cultura digital? Trabalhava-se muito cultura digital como conceito e essa cultura ela se estabeleceu. Então, sem dúvida nenhuma, o jornalismo que a Gênero e Número faz, como um veículo nativo digital, ele não olha mais para o impresso como uma possibilidade, porque a nossa produção ela é digital, a gente é nativo digital. A partir daí, a gente vai trabalhar as estratégias, as possibilidades e as formas de fazer essa produção ser a melhor e mais bem distribuída. Então, assim, haja estratégia, fôlego e investimento para fazer a melhor estratégia digital. Isso já é bastante, isso já nos consome. O impresso, ele não faz parte da nossa estratégia de fato, não por ora. Ele pode eventualmente vir a fazer quando a gente tiver um trabalho específico ou especial específico ou se a gente quiser trabalhar numa determinada cidade algum tema, mas não é o caso no momento.


41:06 Lara: Sobre as pautas, como é que dá essa conversa entre a seção editorial e a de dados? Vocês partem do princípio de que as pautas precisam, sobretudo, estar embasadas em dados?


41:22 Giulliana: Então, sobre isso, a gente busca sim fazer com que as pautas principais... A gente tem uma produção quinzenal, que é até distribuída pela newsletter. Então, a gente busca fazer com que as pautas sejam orientadas por dados. A gente abre sim algumas exceções, a gente faz entrevistas que não são as exceções né? As entrevistas são entrevistas, que às vezes também são orientadas por dados. Mas a gente busca fazer com que essas pautas tenham essa premissa. Por quê? Porque tem muita coisa para se trabalhar com base de dados, então, se a gente não tiver sempre buscando, se isso não for uma diretriz, vai ser até mais fácil encontrar um outro tipo de pauta, entendeu? Então, vamos tentar trabalhar sempre com dados, de uma forma bem consistente, que faça sentido, que a gente possa olhar para os dados e a partir dali desenvolver pautas e é isso que a gente faz. A gente trabalha a partir daí fazendo essa leitura de que há muito dado para ser aberto, para ser visibilizado e as áreas elas trabalham em conjunto, mesmo assim de uma forma muito intrínseca. As analistas de dados ficam ali olhando as bases de dados que já são de nosso conhecimento como bases relevantes, as repórteres vão procurando os temas e fazendo as apurações pertinentes. Em algum momento, elas entendem que pode existir uma base que a gente ainda não abriu e aí elas vão trocando, vão conversando e vão entendendo como é que a gente avança. Esse período eleitoral é um período um pouco mais pragmático, eu diria, porque a gente já tem as bases do TSE, a gente tem muito dado de eleição, de eleições passadas, então dá para fazer um outro tipo de costura.


43:12 Carol: A gente falou muito de dados. Vocês buscam trabalhar com uma base de dados e montar a sua própria base de dados a partir de pesquisas. Aí a gente fez algumas intersecções. Primeiramente, sobre a base de dados abertas, você pode nos dar um panorama sobre como vê a situação das bases de dados públicas sobre mulheres hoje no Brasil?


43:36 Giulliana: Então, não tem base de dados sobre mulheres. Tem base de dados sobre assuntos relacionados às questões de gênero e de raça. Então, assim, talvez o que a gente possa dizer que tem sobre mulheres… Coisas muito específicas: número de partos no SUS. Aí você olha lá, você quer ver se são as mulheres negras ou mulheres brancas que mais usam o SUS. Aí você vai ter não só isso, você quer ver qual é a diferença entre esse acesso ao serviço de saúde pública. Você vai lá e busca esse tipo de base. Têm alguns campos, como o da saúde, em que você consegue acessar bases muito organizadas, ou mesmo que sejam desorganizadas, elas são bases consistentes. Já existem outros tipos de base, como as de feminicídio, que são um grande problema. Por quê? O feminicídio é uma tipificação do crime, de um crime violento para mulheres que termina em morte e ele aconteceu por conta da condição da mulher. Ela morreu, porque ela era mulher, simplesmente, por uma relação de poder, mas isso configura relação de gênero. Então, ali ele pesou o fato de ela ser mulher para ela morrer. Bom, quando a gente olha para essa base é muito complicado, porque essa tipificação, ela precisa ser feita na hora em que é feito o registro do homicídio e muitas vezes não é feito, porque falta essa compreensão, porque não existe uma formação para os operadores de Justiça ou da Saúde para preencherem corretamente. Então, a gente tem mesmo, sem dúvida nenhuma, uma imensa subnotificação em alguns tipos de bases, que são essas que dependem de uma formação mesmo, de uma compreensão do que são esses crimes, sabe? Então esse é um tipo de problema. Porque não é só o fato de existir a lei, de existir como tipificar o crime, você precisa ter operadores de Justiça e no sistema de Saúde preparados para identificar, saber fazer a leitura. A gente sabe disso, que é um problema. Em geral, as bases são bases sempre que exigem bastante trabalho. Mas à medida que a gente vai trabalhando e observando, a gente vai também entendendo como é possível fazer. Em geral, eu posso dizer que é isso assim, que a gente não tem essa facilidade. As bases nunca chegam prontas. As bases do TSE são muito robustas, porque são bases que falam, enfim, de 5.500 municípios no Brasil. Agora, aí é que tá também, eu sempre levanto essa “bola”... Você vai trabalhar com jornalismo de dados. Ok. Você precisa falar sobre o Brasil? Sempre. Você quer mostrar qual é o cenário, qual é o retrato da representatividade política no Ceará. Você, que não tem uma super formação em jornalismo de dados, você pode fazer isso, você pode acessar a base do TSE, você pode procurar um estado, você pode baixar aquela planilha daquele estado, você pode abrir o Excel, separar as abas e começar a brincar, né? E aí, quando eu falo brincar é trabalhar mesmo. É começar a entender como aquela base se estrutura e tal e tal. E aí depois que você começa a se familiarizar com aquilo ali, você pode buscar recursos para trabalhar de uma forma mais sênior com essas bases. Mas o que eu quero dizer é que para começar, o que a pessoa precisa realmente é ter interesse, é entender como a base está estruturada, o que são categorias, o que são as variáveis, como essas bases elas podem te informar sobre alguma coisa que você não veria se você não abrisse aquela base. Tudo isso são premissas para um trabalho de jornalismo de dados, que depois precisa avançar à medida que você entende como fazer e como dar esses primeiros passos.


Vídeo 2:


48:17 Lara: Então, na nossa última conversa a gente falou muito sobre dados abertos .E a gente queria voltar em perguntinha, um tópico que é a Lei de Acesso à Informação. Hoje em dia a gente discute muito sobre a lei. E a gente queria saber se, nessa mudança de governo para o governo Bolsonaro, você nota que houve algum retrocesso ou houve alguma melhora e se as informações ainda estão disponíveis de uma forma clara? Se vocês conseguem acessar ainda e usar a Lei de Acesso à Informação?


48:50 Giulliana: Bom, é eu acho que existe uma percepção, sim, de que a gente tem um ambiente menos favorável à transparência e ao compartilhamento de dados públicos. Isso, infelizmente, é coerente com essa imagem do que são as políticas do governo Bolsonaro. Porque em geral são políticas e processos que não trazem a colaboração, a transparência e a participação pública no seu cerne, no cerne dessas políticas e desses processos. E como a Lei de Acesso à Informação é fruto disso, fruto da discussão de uma sociedade mais democrática, mais participativa e tal, sem dúvida eu enxergo e acho que o campo da discussão de acesso e compartilhamentos de dados, enxergo que tem ali uma dificuldade maior sim. Como isso se reflete no dia a dia? Quando você acessa órgãos, faz contato, esses órgãos já não têm uma diretriz muito evidente ali para que atendam. Não têm a transparência mesmo como esse valor nos órgãos e nas instituições públicas. Não é sobre todas as organizações isso. Porque, claro, não é assim também. São muitos temas diariamente ali que a gente acompanha onde a gente pode observar retrocessos, mas eu acho que esse é um deles. E nesse um ano e dez meses de governo Bolsonaro, a gente percebe sim que tem uma mudança de rumo. A gente antes caminhava para melhorar os processos, para discutir como os órgãos poderiam melhorar o atendimento a cidadãos em geral e não só jornalistas que solicitassem dados. A gente estava caminhando para um debate sobre processos e práticas e agora a gente volta a falar sobre o direito, sobre o direito à informação. Então, eu acho que tem essa mudança. Na Gênero e Número, a gente, inclusive, tem bases que não estão mais disponíveis online. Quando a gente fez o mapa da violência de gênero, a Natália Leão, coordenadora de dados, precisou assinar um documento de que ela não iria disponibilizar os microdados, porque havia informações ali que eram sensíveis e tal, mas enfim tinha ainda esse espaço. Essa base foi retirada da plataforma e a gente não tem mais acesso. Então, tem alguns recursos que são úteis para a gente acessar dados que já foram solicitados e que, na própria página dos dados abertos você tem alguns fóruns, você vai encontrando ali formas de acessar as bases. Acho que a gente vai trabalhando e buscando na forma que é possível, mas, sim, tendo essa compreensão de que o momento não é de uma valorização de avanço desse tema.

52:47 Carol: Agora a gente vai te perguntar sobre o Projeto no Reino Sagrado da Desinformação, projeto que realiza uma análise semântica sobre como se constitui nas redes a construção da noção de ideologia de gênero por setores conservadores. O projeto envolve uma grande equipe, com funções diferenciadas, além da parceria com um site de Pernambuco, o Marco Zero Conteúdo, que trabalha com jornalismo investigativo. A gente queria saber como nasceu a pauta, como vocês planejaram essa realização e como fizeram essa parceria com o Marco Zero.


53:22 Giuliana: Bom, essa pauta surgiu na nossa observação da ausência do tema, do quanto era importante revelar que esse cenário e esse avanço da ideologia de gênero só foram possíveis porque não se trata só de um campo, um setor. Não era só sobre religião, não era só sobre religião na política. A gente tinha ali a mídia com um papel muito importante nessa história inteira. É muito importante falar que já há, sim, pesquisas da comunicação convergindo mídia, religião e política. Então, sem dúvida, tem muita coisa para quem quer acompanhar essa história desde o início dos anos 2000. Umas dessas pesquisadoras é a Suzi Santos, da UFRJ, na ECO [Escola de Comunicação], e tem também a Magali Cunha. São profissionais que têm olhado a partir do campo da comunicação para isso. E esses trabalhos são uma reflexão importante do quanto a mídia foi beneficiada inclusive por essas articulações, como todas essas relações de poder estão imbricadas. A gente não chegou em 2018, quando essa ideologia se consolidou mesmo no discurso político, como o capital mesmo para os candidatos obterem votos, isso só foi possível porque a gente foi negligenciando esse assunto e esse debate por muito tempo. Não estou apontando que não existia essa questão na política antes. Desde 2011, quando a gente teve o levante contra o que seria o kit gay, enfim, tinha toda uma apropriação ali do discurso da diversidade de uma forma muito truncada e numa disputa semântica feita pelos setores muito religiosos. Quando a gente fala setores religiosos, a gente vai aproximando esse olhar do Congresso, das assembleias. E foi muito importante ao longo do tempo a gente ir observando isso na Gênero e Número. Importante para entender que aquele era um assunto central de gênero, mas que era uma evidência de que gênero realmente não era mais um assunto de nicho. Acho que as eleições de 2018 trazem o tema da ideologia de gênero, mas, em 2010, por exemplo, a gente já havia tido uma questão de gênero negligenciada, que foi o debate sobre aborto, que, de repente, “nossa não podemos mais falar sobre aborto porque perde votos”. Em 2014, se viu novamente esse tema, mas ele era um tema mais fácil de esclarecer, de falar sobre, porque ele faz parte da discussão, do debate, da vida das mulheres. Mas o tema da ideologia de gênero é uma nuvem preta que passa, que quem não acompanha de perto realmente fica perdido nesse debate. E aí depende, se você tem uma tendência a se identificar com um candidato tal, com valores e ideias de um candidato tal, eu acho que esse é aquele recurso, a ideologia de gênero termina sendo aquela cartada final. “Imagina, olha que absurdo o que querem fazer com as nossas crianças”. Só que aí a gente pensou: “Caramba, como é que a gente vai falar sobre isso? Como é que a gente vai abordar ideologia de gênero?”. E o que eu fui percebendo no planejamento desse projeto era que na verdade a gente não falava. Quem falava sobre ideologia de gênero era a direita e eram as pessoas que atacavam essa suposta ideologia. Mas o debate não era feito, ele não estava posto. Então, eu percebi isso e até falei isso em algum momento depois do lançamento do projeto, porque essa é uma lacuna e a gente também precisa fazer essa autocrítica. Como foi que a imprensa discutiu mesmo essa ideologia de gênero sem apenas negar, sem apenas falar “não, isso não existe”. Mas, gente, tem gente que acredita que existe. Como é que a gente vai fazer essa discussão? E olha eu acho que foi muito importante ali esse momento em que a gente começou a ampliar esse debate, mostrar o quanto ele era importante para enfrentar esse discurso de desinformação, porque é isso que a ideologia de gênero é. Ela pega muitos conceitos que são totalmente distantes da diversidade, da defesa da equidade e joga tudo no mesmo lugar de um jeito super errôneo e aí a gente fez esse planejamento. Mas olha só, a ideologia de gênero ela não é uma questão do Norte, do Nordeste, ela é uma questão do Brasil. A gente teve, inclusive, um presidente eleito com esse discurso, embora a gente não possa mensurar o quanto ele foi impactante para o voto ou não em cada região. Mas então a primeira definição a partir daí é que essa é uma pauta sobre o Brasil. “Mas, puxa, como é que a gente vai fazer um projeto sobre o Brasil sem ser algo tão generalista?”. Então a gente definiu que para cada região a gente teria uma pauta. E isso pra mim foi um grande acerto vendo o projeto pronto depois, porque de fato a gente transformou cada região em capítulo, então tem o Capítulo Norte, Capítulo Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste. E esses capítulos contam muito das histórias que são centrais. Eles falam dos aspectos centrais. A submissão da mulher, que é o Capítulo do Nordeste. A ideologia de gênero ela tem dois eixos centrais: são as crianças e a mulher. Aí vem a população LGBT, é verdade, mas não é ainda tão central. Tem aquele grupo que ataca, que são os pastores, o Malafaia, o Feliciano, enfim, que vão falar para esse grupo desse lugar mais hiper e ultraconservador, mas em geral aquele debate mediano da ideologia de gênero ele é sobre mulheres, que é um antifeminismo extremo, sobre a mulher ser muito importante, mas é porque ela é o pescoço e o homem é a cabeça. Nunca vai existir uma possibilidade de estarem no mesmo patamar, porque não é isso que a Bíblia prega. Só que na verdade você vai observando que tudo é uma grande construção de narrativas de submissão em relação de poder. Aí a gente foi mostrando cada região. Como a gente tinha saído da Lava-Jato isso traz uma análise dos personagens, de como isso também fortaleceu. Não é à toa que o hoje Paraná é um dos redutos, e segue sendo, do conservadorismo, da ideologia de gênero. E por quê? O que é que tem ali naquele estado que traz tudo isso à tona? Enfim, sabe, acho que é um projeto para a gente bem marco mesmo. Mas eu também acrescento uma coisa fundamental nesse projeto que foi a capacidade da gente usar métodos digitais para ir além da apuração tradicional, daquela apuração das reportagens que a gente faria se não houvesse os dados das bases de dados. E é interessante também porque eu diria que as bases de dados nesse projeto elas tiveram papéis centrais para a gente desenvolver. Mas não é um projeto inteiro sobre uma única base de dados, sabe? Então, primeiro a gente definiu que a gente queria identificar os protagonistas. Ok, como é que a gente vai fazer isso? A gente vai montar uma base a partir de uma metodologia mostrando quem são as pessoas que falam e promovem esses discursos. Aí fomos lá e montamos essa base. Buscamos esses perfis no Twitter; fizemos a relação de quem segue quem; estabelecemos uma lista de palavras para entender como essas palavras eram recorrentes nos discursos dessas pessoas; e essa lista de palavras obviamente está relacionada com o vocabulário que está atrelado à ideologia de gênero e a partir daí a gente conseguiu identificar. Para mim foi muito importante, porque tem uns personagens que eles não aparecem tanto porque eles não são do discurso público, não têm um cargo político, então, às vezes até têm até cargo político mas não eletivo, então eles não aparecem tanto porque não tem essa cobertura. O que vai se descobrir numa Procuradoria, né? Mas tem procurador que tá lá se articulando ferrenhamente para fazer esse discurso existir e travar certos mecanismos que a gente precisa para avançar em direitos e também para não avançar com retrocessos. Então eu diria que o Reino foi um trabalho mesmo muito convergente da pesquisa. Ele não existiria se a gente não tivesse a Nathália Leão, que é coordenadora de dados na GN e investigadora. Ele não existiria se a gente não tivesse uma repórter experiente como a Maria Martha. Essa parceria com a Marco Zero a gente fez por entender que seria muito valioso a gente ter uma repórter olhando para gênero e trazendo isso de lá, já com aquele acúmulo de cobertura local, sem a gente daqui ficar tentando entender tudo, porque esse discurso ele é um discurso da ideologia que ele tem muitos detalhes, ele tem muitas nuances. Então realmente a Raíssa trouxe uma perspectiva que só uma repórter local poderia trazer pra aquele texto. Então por isso que a gente optou por fazer essa parceria que foi basicamente isso, o olhar dela pra região Nordeste para desenvolver a pauta de lá. Sobre a região Norte a gente faria isso também, mas aí tinha uma peculiaridade, que como a gente tava falando da Rede, que surgiu a Rede Boas Novas a partir da Assembleia de Deus. Essa igreja tem uma grande estrutura aqui no Rio também, então é como se fosse uma extensão dessa sede de lá e aqui estão inclusive alguns executivos que precisava entrevistar, então tudo bem fazer. Era uma matéria muito focada nos dados mesmo da Assembleia de Deus. Então foi pra gente, talvez, o projeto mais desafiador, porque era uma proposta de mostrar na mídia política e religião quem são as pessoas que estavam vendendo a ideologia de gênero. Vou falar pra vocês: não é uma lista fechada. A gente foi indagada por alguns lugares: “a gente sentiu falta de alguns nomes”. Sim, porque esse é um mapeamento que ele é orgânico, então hoje são essas pessoas, amanhã podem ser outras. A gente, por exemplo, trouxe uma matéria super destacada da Joyce [Hasselmann], e a Joyce foi super hidratada pelo governo Bolsonaro. Ela já não tem essa centralidade que ela tinha, e isso é interessante a gente acompanhar de um ano pro outro. Os personagens também mudam sua posição no tabuleiro.


1:06:44 Lara: A gente também queria saber um pouco sobre a equipe de vocês. A gente sabe que tem uma socióloga e uma cientista social que lidam diretamente com dados. E como essa formação (sem ser a do jornalismo) complementa a formação em jornalismo? O que elas trazem de diferente, de importante para um veículo jornalístico?


01:07:11 Giulliana: Bom, elas são super complementares ao trabalho. Não é só a analista de estudos de dados que trabalha com dados. Todo mundo da GN trabalha. Mas de formas e níveis diferentes. Então, por exemplo, a Nathália Leão é quem trabalha melhor com R, é uma linguagem de programação que permite milhares de coisas. Eu cheguei a fazer um curso, desses curtos, de R, e aí eu decidi que não ia ser aquele meu investimento, porque realmente entendi que era muito amplo e que tinham milhares de possibilidades da parte do R, mas ali era algo que se distanciava muito da minha função principal na GN que é a direção, a gestão, a condução da organização, do desenvolvimento da organização, a sustentabilidade. Então não é a prioridade, sabe? Acho que numa organização, mesmo pequena, tem que ter essa divisão de tarefas e essa estratégia mesmo de onde cada um ou cada uma precisa estar. Então a Natália e a Flávia elas têm esse olhar quase que exclusivo para o trabalho com dados. Quando eu falo quase que exclusivo é porque como elas também têm todo um repertório das ciências sociais, elas trazem um olhar que qualifica muito algumas discussões. Quando a gente faz reuniões para discutir política e cenários políticos, e projeções, é muito interessante também porque elas trazem... A Nathália pesquisa no doutorado mercado de trabalho, então ela tem uma compreensão de indicadores, o que já é muito consolidado em termos de dados e o que a gente pode tentar explorar. Eu acho que tem um olhar de pesquisa, um olhar extremamente analítico ali que contribui muito. E eu não tenho dúvida de que todo o conhecimento do jornalismo ele é relevante se a gente consegue convergir e, sem dúvida nenhuma, acho que por isso muitas organizações de mídia não têm essa barreira do diploma. Eu, por exemplo, fui trainee na Folha há mais de dez anos atrás e lá eu conheci na minha turma, por exemplo, tinha gente que vinha da Sociologia, tinha gente que vinha das Relações Internacionais. Não eram todos jornalistas naquela turma de trainee. Eu acho que essa integração dos campos faz muito sentido sempre pro jornalismo. E no jornalismo de dados eu entendo que ela não pode ser um limitador para ninguém. Ela não pode ser assim “ah, cada um na sua caixinha”. Eu acho que na GN a gente tenta trabalhar sem essa limitação, porém como eu falei para vocês, tendo também em mente qual é a prioridade de cada um. A prioridade da Natália e da Flávia é trabalhar com os dados, aprimorar os processos, e trazer isso pra gente. E as repórteres estão ali correndo atrás das pautas, elas fazem as primeiras triagens das bases, de algumas bases, e outros elas têm um olhar mais apurado. Então “tem um relatório, esse relatório é legal, mas ele só tem dados dos últimos três, quatro anos, então vamos tentar na base pública ver se a gente tem essa série histórica para trabalhar com ela?”. E por aí a gente vai fazendo essa… Acho que tem o desafio que mais da Maria Martha, hoje, que é diretora de conteúdo, que é fazer a convergência, das áreas, dos campos, e eu acho que sem dúvida a Martha ela só tem conseguido fazer isso tão bem porque ela passou anos como repórter. Então eu não acho que pra uma pessoa ser executiva ou diretora ela precisa necessariamente ter passado por todos os lugares e tal. Mas acho que no jornalismo as funções assim... É muito importante, sabe, você saber como funciona, né? Então eu não acredito, por exemplo, muito num modelo em que todo mundo que comanda tá muito distante da realidade ali. Eu acho que não é necessário que todo mundo saiba sobre tudo, mas é importante que as pessoas tenham essa abertura, interesse. Como pode numa organização de dados uma pessoa não querer saber sobre dados, sabe? Não é compatível.


1:12:13 Carol: Qual você acha que é a importância dos dados hoje para o Jornalismo? E a gente queria saber também se você acha que a grande imprensa precisa modificar sua forma de cobertura. O exemplo que a gente dá, no caso, é quando as mulheres são estupradas, que muitas vezes elas são silenciadas ou só falam muito mais do abusador do que da própria vítima, não tem esse grau de empatia que as matérias que a gente viu que na Gênero e Número trazem.


1:12:48 Giulliana: Eu acho que os dados são importantes, não porque sem eles a gente não pode fazer jornalismo, mas porque eles são um recurso a mais. Eles são uma forma da gente qualificar algumas matérias, não todas, porque nem todas precisam de dados para serem qualificadas. Acho que tem matérias que se sustentam numa boa apuração que não envolve dados, claro que tem, muitas, inúmeras, milhares. Mas, assim, os dados são recursos para contar, narrar contextos, para falar sobre cenários, para revelar desigualdades. E no caso do jornalismo que a Gênero e Número faz, tem esse recorte de gênero e raça, é um jornalismo que por muito tempo não foi considerado, porque afinal de contas esse é só mais um dos problemas, dos muitos problemas de desigualdade que a gente tem no país, mas não é sobre isso. A gente não tá fazendo uma escala de qual problema é mais importante. O nosso lugar é de mostrar essas questões como elas são estruturais, como elas também são estruturantes, porque a partir das desigualdades a gente tem uma sociedade que vai repetindo modelos, padrões e formatos que mantém uma estrutura extremamente assimétrica; então a gente tem essa responsabilidade de fazer com que os dados tragam uma maior compreensão para que o público que não é sensibilizado pelo tema possa olhar e dizer “caramba! Isso aqui realmente é demais!”. Mulheres com salários desiguais… Porque o tema que "há mulheres com salários desiguais”, sim é verdade, entre mulheres brancas e mulheres negras esse salário ele ainda tem uma diferença maior. “Caramba, é?”, “é.”. Não é a mesma diferença salarial em todas as áreas. Você tem profissões, inclusive, em que essa diferença é maior. Então trazer recortes, mostrar o quanto as nossas relações são ainda super desfavoráveis pra gente pensar numa sociedade mais equânime, e aí a partir disso a gente faz essa discussão, a partir desse olhar e dos dados que a gente consegue estruturar, analisar, e reportar. Bom, sobre as grandes redações, eu vou falar que é claro que tenho super críticas, mas eu também nego muito essa ideia de “ah a grande imprensa faz tudo errado”, não acho que seja por aí. Eu acho que precisa valorizar a mídia democrática, a mídia que trabalha com seriedade e criticar sempre que houver um erro cometido, porque esse erro impacta a vida das pessoas né? Porque ele reforça padrões, reforça estereótipos, ele reforça violências, e a gente não pode lidar com isso, mas eu também detesto esse lugar, assim, punitivista do “nossa, isso aconteceu hoje então acabou, a mídia realmente não serve mais pra nada sabe”, porque é isso… São 365 dias no ano com publicação de jornal e notícia, entendeu? Então já saí um pouco desse lugar de “todo dia sofrer porque um jornal deu uma manchete tal”. O que eu acho é que a gente tem que realmente trabalhar, e quando eu falo a gente, é a mídia independente, a mídia feminista, a mídia comprometida com essa centralidade do debate entre raça e das questões gênero e raça, pra que a gente possa fazer com que uma nova forma de fazer... Uma nova metodologia nesse trabalho de dados e gênero, enfim seja aceita, seja incorporada. O que é essa metodologia? Não, não é nada extremamente científico, não é porque “Nossa! Você só pode falar de gênero se você tiver dados”, não é isso! Mas é entender quais são, gente, os parâmetros básicos, digamos assim de onde a gente parte. Então tem alguns cursos básicos, a Agência Patrícia Galvão, por exemplo, já cansou de fazer formação para a mídia, assim como outras organizações fazem esse tipo de preparação. Aqui na GN, a gente não tem muito por enquanto esse desejo de preparar a mídia pra falar sobre gênero, porque acho que nosso trabalho é já bastante árduo no sentido de conseguir executar um jornalismo de qualidade, de todas as produções… Mas eu acho que a gente tem ali uma comunicação sempre acontecendo com essa grande mídia, e a nossa proposta é que a gente possa contribuir. Então a gente faz reportagens e eventualmente elas são republicadas pela grande mídia. Agora a gente tá tentando encaminhar uma parceria com um grande jornal para que lá possa republicar as reportagens da Gênero e Número. E assim a gente vai tentando construir. Eu acho que tem que saber o seu lugar no mundo, tem que saber, nosso lugar no mundo é esse … Mais importante é a Gênero e Número se consolidar como uma organização, ter outras organizações para dialogar dentro desse campo, porque eu acho que ninguém vai fazer nada sozinho, e a partir daí sempre ocupando espaço, que é esse espaço da contranarrativa. Eu não gosto muito da ideia de atacar a imprensa diariamente, mas eu acho que essa contranarrativa, sem dúvida ela é fundamental.


1:19:15 Lara: No Facebook e no Instagram vocês participam de uma conversa bem maior que envolve agentes como coletivos, influenciadores que também falam sobre gênero. A gente queria saber como funciona a presença de vocês nessas duas redes, no Facebook e no Instagram. E também como vocês se adaptam ao Twitter, que é uma rede bem politizada, que discute muito sobre todos os assuntos e de uma forma bem instantânea. Então como vocês preparam os conteúdos de vocês pras redes sociais?


1:19:48 Giulliana: A gente já teve vários formatos. A gente já teve assim, a estagiária foi fazer redes sociais, e aí ficava um pouco descolado do editorial, aí passava um tempo dava um pouco certo, depois a pessoa “ah não quero fazer só redes sociais”... A gente teve muitas questões assim que eram muito... Até que a gente entendeu que não era uma coisa pra ser secundarizada assim. A gente precisa ter as redes sociais, tão importantes ali no dia a dia quanto a profissão editorial. E aí a gente passou a fazer uma divisão entre as repórteres e até a editora, então todo mundo faz, mas cada uma tem uma rede que cuida mais. Eu acho que no Twitter a gente tem uma tranquilidade, porque a nossa linguagem é política. A Gênero e Número fala com uma expertise, uma senhoridade sobre política e gênero, então tudo bem, pra gente não é um desafio. A gente super se encontra ali naquela rede. A gente agora tem um desafio de dar uma expandida nesses números. A gente quer crescer no Twitter. O Facebook a gente por bastante tempo priorizou. A gente não prioriza mais. A gente já trabalhou por muito tempo no Facebook, agora a gente basicamente alimenta, e eu não vejo ali um ambiente criativo, nem de troca, né? Até tem alguns estudos que mostram que os grupos do Facebook são hoje um espaço onde você vai conseguir fazer isso, mas a gente não tem feito. A gente não tem uma gerente de redes sociais, ou uma gerente de comunidades. E a gente passou esse ano inteiro conduzindo isso dessa forma para fazer uma avaliação no fim do ano agora, pra entender se a gente mantém esse modelo ou não. Mas uma coisa já é certa: a gente não vai ter mais essa pessoa única responsável por todas as redes. Vai ser sempre um trabalho mais diluído mesmo.


1:21:53 Carol: Eu queria saber, eu não sei se você sabe dizer qual foi a reportagem, mas qual é o tema que geralmente dá mais engajamento para vocês e qual é o perfil atual dos leitores da Gênero e Número?


1:22:09 Giulliana: O tema que traz mais engajamento eu não tenho esse dado, realmente eu não tenho. A gente, pelos acessos ao portal, ao site, não sei nas redes… Ao portal a gente tem dois temas que trazem bastante que é política e direitos reprodutivos. Direitos reprodutivos principalmente sobre o aborto. As mulheres eu acho que... Não sei se homens também. Enfim, pelo perfil de quem acessa a gente diz que são as mulheres mesmo que buscam bastante. Não são matérias do tipo “como fazer aborto”, não é isso, até porque a Gênero e Número não faz esse tipo de matéria. A gente mostra assim: “o que aconteceu na Espanha e no Uruguai, por exemplo, quando a gente teve um avanço com a descriminalização e tal”. A gente vai conduzindo essas discussões assim e vai percebendo que os temas… E é engraçado porque esses dois temas eles são temas que ficam ali na fronteira do que a gente precisa fazer pra mudar a nossa condição de desigualdade também na sociedade em relação aos homens. Então, esses são no site os dois temas que mais atraem. Sobre o perfil... A gente tem um perfil que é predominantemente feminino, mas também tem um perfil masculino que acessa sim. Mas é predominantemente feminino. É um perfil de mais de 25 anos, então não são adolescentes, a gente já entendeu, não é assim 16 anos, 20 também não, mas é a partir de 25. O pico acho que é 35. Na verdade, de uns 30 a 40 está a maior parcela de acordo com os dados que as pessoas fornecem. Porque também tem bastante gente que não tem essa informação, mas em geral é isso aí. E ainda é um público predominantemente do Sudeste e do Sul. Mas a gente tem também um bom acesso no Nordeste. A região que a gente menos tem alcance é a região Norte, e a gente quer trabalhar isso melhor para o próximo ano.


1:24:41 Lara: Hoje em dia a gente discute muito sobre como a gente vai sustentar os novos moldes do jornalismo e hoje os caminhos de financiamento são múltiplos. Vocês trabalham com apoio via Catarse.me, doações, assinaturas e também tem o apoio da Fundação Ford. E como vocês foram equilibrando essa base de apoio ao longo dos anos e como funciona hoje a distribuição de conteúdo? Como funciona a assinatura? Os assinantes têm quais vantagens? O que sustenta vocês atualmente?


1:25:17 Giulliana: A gente tem uma receita que é diversificada, mas não é do Catarse.me que vem a nossa maior parcela. Na verdade no Catarse.me gente tem uma parcela simbólica que a gente não conseguiria pagar nem uma repórter ainda. A gente trabalha ainda fazendo projetos, estruturando projetos para financiamento internacional, organizações que olham para esse suporte como necessário para estratégias para a democracia. Então é basicamente isso hoje. A gente já fez consultoria, mas nada disso traz uma robustez que a gente precisa pra manter uma redação funcionando por um ano. Então, hoje, o que sustenta a gente são esses financiamentos de fundações internacionais e também de organizações brasileiras. Então a gente já venceu o edital do Serrapilheira e aí a gente recebeu cem mil reais para fazer um projeto. É importante dizer que a gente não tem uma dinâmica em que a gente tem dinheiro em caixa. Isso significa que a gente tem dinheiro para projetos. O projeto entra, a gente executa, e a gente consegue manter uma equipe fixa porque a gente tem um suporte que permite a gente realizar um projeto maior ao longo de um ano inteiro que é esse da Fundação Ford. O projeto no caso ele é a produção de conteúdo com recorte de gênero e raça e também tem esses recortes todos, por tema, por produto e tal. Basicamente é isso.


1:26:53 Carol: A Gênero e Número vai comemorar cinco anos, e eu queria saber se você pudesse dar um conselho pra você mesma quando você resolveu criar a Gênero e Número, qual conselho você daria?


1:27:09 Giulliana: Dividir tarefas. Ter pessoas engajadas para construir. Ter pessoas que de fato vão apoiar o projeto e dividir tarefas. Hoje eu percebo que... Como a gente teve saída de diretoras... A primeira que saiu foi a Nathália, depois a Maria... O que aconteceu foi que terminou eu precisando concentrar muita coisa porque a gente tinha uma limitação de orçamento. Então num primeiro momento eram três pessoas acreditando no projeto e trabalhando a um custo muito mais baixo que o mercado obviamente pagaria para profissionais como a gente, mas a gente estava fazendo aquilo como um investimento. Quando as co-fundadoras deixaram o projeto por razões pessoais, profissionais, etc. Quando elas saíram da Gênero e Número isso teve um impacto muito forte porque eu precisei acumular muito trabalho e obviamente isso não é saudável. Não só muito trabalho, mas eu também me tornei meio que o único centro de decisão da GN e isso foi extremamente desgastante. Desgastante pra mim, desgastante de certa forma para uma equipe. Acho que mais pra mim, mas acho que a equipe foi impactada no sentido de não ter tanta estrutura. Não ter uma estrutura mais organizada pra trabalhar, para reportar... O ano de 2017 e depois o de 2018 foram bem turbulentos. 2019 a gente começou a arrumar a casa, mas esse ano [2020] foi um ano de arrumar mais, mas ainda sim é um ano muito desafiador por conta da pandemia. Então pra mim desde o início é importante você ter... Eu acho que organizações pequenas que não tem um super investimento ou que têm um orçamento muito enxuto é importante você trabalhar com menos pessoas e com pessoas com mais autonomia. Eu sou muito resistente ao modelo de voluntariado porque... Eu acho que o voluntariado é excelente. A gente vê os casos, os países da Europa e tal... Nossa nos Estados Unidos o voluntariado… Mas a nossa condição da sociedade é outra. As pessoas têm as necessidades, sabe? Elas têm um outro desafio. Aqui a gente sabe que parte dos estudantes precisam da remuneração do estágio, entende? Sem isso, talvez nem consigam fazer a faculdade plenamente como conseguiriam. É uma remuneração importante, sabe? Então eu não gosto muito. Eventualmente alguém me escreve e aí eu percebo que a condição da pessoa é assim “ah, eu não preciso, e aí se vocês não tiverem uma vaga eu quero colaborar mesmo assim”. Ainda assim, a gente nunca teve isso porque tem um trabalho de gestão sobre essa pessoa, entendeu? Ela vai terminar frustrada porque ela vai entrar lá e não vai ter um funcionário olhando pra ela, trocando, ensinando... Então aqui a gente realmente tem muito cuidado com isso. E hoje já tem outra diretora que é a Maria Martha, e aí agora eu acho que a gente já tem essa divisão de tarefas. Então esse seria o meu conselho: dividam tarefas; trabalhem com pessoas comprometidas, que tenham uma certa autonomia. Autonomia é óbvio que tem que ter... Para você ser super autônoma você tem que ser bastante experiente, mas tem níveis de autonomia, tem pessoas que precisam de orientação para tudo e isso também é muito desgastante numa organização como a Gênero e Número.


1:31:22 Lara: Você escreve regularmente sobre questões de feminismo para a revista Época, então como funciona esse trânsito entre uma mídia já consolidada, estabelecida, né, como a Época, que representa o jornalismo tradicional, e uma startup como a Gênero e Número. Como funciona essa divisão? Como você transita ali? Tem alguma diferença? Como você pensa escrevendo para esses dois veículos?


1:31:49 Giulliana: Bom, na verdade eu passei boa parte da vida trabalhando em mídia tradicional. Então eu consigo entender quais são as limitações dessa mídia, o que eu não vou poder escrever na Época. E isso para mim não funciona como uma censura. Esse espaço é um espaço em construção, né? Esse discurso de gênero e raça na mídia. Então a gente não pode chegar fazendo um discurso super radical porque ali não é esse espaço. Ali é um espaço para você colocar as questões para o debate público , e também não é um lugar para reivindicar, embora às vezes eu faça isso um pouco. Mas não é assim esse lugar pra fazer constantemente… Eu acho que é um lugar mais didático, mais educativo. Quando eu comecei eu decidi que eu ia seguir essa linha, mas eu não tinha nenhuma métrica de se tava dando certo, não tava dando certo, se funcionava, se não funcionava. Mas aos poucos eu fui tendo algumas conversas com o editor e ele foi me dizendo “a gente tem gostado bastante, tem um acesso bom”. Mas assim eu sei que eu tô super, assim… Eu sou aquela jornalista muito fora do padrão daquela redação ali. E eu acho que pra eles isso é interessante também, porque é alguém que tem um repertório de gênero. Eventualmente ele [o editor] me escreve para perguntar: “olha, você acha que isso aqui é interessante?”. Eu falo: “olha, acho que isso aí não contribui em nada pro debate. Isso aí poderia estar num site de fofoca, então eu acho que não é legal”. Aí ele fala: “é você tem razão. Acho que a gente não precisa dar isso”. Então é legal porque tem uma troca eventualmente que eu também me sinto à vontade. A GN para mim ela é onde a gente vai experimentar, fazer o que a gente precisa fazer. Os outros espaços são para ocupar sabendo qual é a limitação daqueles espaços.


1:33:54 Carol: Muitos jornalistas falavam do fim do jornalismo como algo próximo por causa do digital. No caso, o fim do jornalismo impresso, enfim. Você acha que essa perspectiva mudou recentemente? E você acha que o trabalho de vocês na Gênero e Número pode ser um exemplo de que o jornalismo pode persistir de diferentes formas com o uso de dados?


1:34:18 Giulliana: Olha, eu não acredito nessa “profecia” do fim do jornalismo. Não acredito, nunca compactuei. Acho que existem sim mudanças de formato, mudanças nas métricas do que é um jornalismo bem sucedido, do que é um jornalismo de impacto. Isso tudo, sim, a gente teve uma grande mudança com a expansão e essa centralidade hoje das mídias digitais, dos veículos digitais. Acho que tem uma coisa muito positiva, porque eu nunca enxerguei o digital como algo menos importante e eu sei que até recentemente existia um pouco desse lugar “importante mesmo é o impresso”. Eu acho que o impresso ele traduz o que que é valor pras redações tradicionais. E aquilo traduz uma visão de mundo de uma elite, porque em geral a gente vê isso: os jornais, eles são jornais que ainda traduzem uma visão de mundo elitista. Isso… A gente tem os jornais populares que aí não. Os jornais populares dialogam com outros públicos e outros valores, mas, assim, também você não vai encontrar aquele super jornalismo de qualidade, tirando uma matéria ou outra porque em geral esses veículos têm uma estratégia comercial muito agressiva. Então eles são como se fossem um caça-clique do online. Quando eu falo isso eu acho que tem aí uma questão bastante sensível inclusive, porque é uma prévia desqualificação daquele público que vai acessar o jornal popular, como se ele não pudesse ler uma matéria mais aprofundada, mais qualificada. Mas isso também precisa ser contraposto ao fato de que de fato tem uma população que agora já começa a ser uma coisa mais estratificada, mas que antes era uma população com menos acesso à escolaridade, às escolas, à formação, com uma menor escolaridade. Então, tinham uma realidade diferente mesmo para acessar a informação do dia a dia e até para absorver e ter interesse em ler determinados temas que não faziam parte da realidade, mas agora começam a fazer. Então, enfim, com isso tudo eu quero dizer que os jornais impressos, fossem os populares ou não, eles sempre olharam e trabalharam visões de mundo muito recortadas e definidas e o que a mídia digital permite é a gente ter essa ilusão, pelo menos, de que você vai alcançar públicos muito diferentes se você quiser com estratégias comerciais, estratégias de distribuição de mídia. Então, assim, por mais qualificado que seja o conteúdo da Gênero e Número, se eu quiser eu faço ele chegar em qualquer espaço. Se ele vai ter uma adesão, se eu vou reter aquela audiência, isso é uma outra discussão. Mas, assim, essa estratégia da distribuição digital tem uma outra forma, uma outra dinâmica. E eu acho que o segredo do jornalismo… Acho que foi até meio imprudente… Não “o segredo do jornalismo”, mas para Gênero e Número o segredo do nosso trabalho nessa questão do público é a gente respeitar muito o nosso público base, assim o público que é fiel à nossa produção, mas a gente o tempo inteiro querer falar para um público maior. Às vezes dá certo, às vezes não dá, e aí eu acho que agora a gente tem um teto, que é esse do alcance orgânico, e é por isso que a gente vai trabalhar numa estratégia de mídia, porque eu acho que é o momento da gente conseguir expandir. Mas ainda não dá pra fazer isso toda hora organicamente, precisa de investimento. Só pra complementar, eu conheço alguns cases de veículos digitais, como o Jota, que é uma startup do mundo jurídico, que eles investem para ter a base e o público que eles têm de seguidores e de pessoas nas redes. Então isso faz parte, sabe? Esse tipo de investimento.

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