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Repórter Brasil: jornalismo investigativo de alto calibre

Por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca 

11 de dezembro de 2020 


A Repórter Brasil nasceu praticamente junto com o século XXI, em 2001, fundada pelo jornalista Leonardo Sakamoto, seu presidente até hoje, quando o jornalismo começava a vislumbrar de maneira mais efetiva possibilidades de trabalho nas mídias digitais. O veículo surgiu com uma proposta que, atualmente, confirma-se como tendência mais ampla do jornalismo no mundo, de ter uma linha editorial bem delineada, com um objetivo social claro e específico (não se trata de cobrir hardnews no dia a dia), sendo uma organização sem fins lucrativos, patrocinada por organizações do terceiro setor (no site, há uma seção de transparência, com informação sobre apoiadores e relatórios de atividades). Com foco inicialmente voltado somente para a cobertura de trabalho escravo, o veículo ampliou suas pautas ao longo dos anos para cobrir questões de terra, indígenas e de meio ambiente. Seu jornalismo investigativo, realizado de maneira minuciosa, foi reconhecido em inúmeros prêmios e houve muitas ocasiões em que reportagens do veículo, republicadas na grande mídia a partir de acordos firmados pela Repórter Brasil, tiveram repercussão nacional, como contou na entrevista Ana Magalhães, na época coordenadora de jornalismo do site. A conversa foi realizada em 2020, pelo aplicativo zoom, no auge da pandemia.   


O jornalismo é uma das frentes de atuação da Repórter Brasil, que também possui um setor de documentários, um de educação e outro de pesquisa. Ana Magalhães detalhou como são os protocolos e os cuidados adotados em coberturas difíceis e arriscadas que já fizeram frente a gigantes econômicos como Starbucks e JBS, entre muitos outros. São protocolos que têm como objetivo proteger os repórteres que atuam em campo, o próprio veículo de ações judiciais (cada vez mais frequentes, embora a Repórter Brasil nunca perdido um processo, segundo a editora), além de ser uma ação ética em relação às empresas retratadas, já que as denúncias de que são alvo costumam ser gravíssimas e delicadas. As reportagens são publicadas somente depois de muitas checagens, sempre buscando reunir provas sólidas das acusações. Mesmo realizando projetos com jornalismo de dados (como o Ruralômetro e o aplicativo Moda Livre), "o DNA do site", de acordo Ana Magalhães, são as reportagens em campo. A editora conta como o trabalho da Repórter Brasil vem, ao longo dos anos, contribuindo para ampliar a percepção da gravidade de problemas sociais como o do trabalho escravo no país. 





Transcrição da entrevista com Ana Magalhães, da Repórter Brasil


Coordenação do projeto Reconfigurações Jornalísticas: Profa. Rachel Bertol e Profa. Barbara Emanuel 

Universidade Federal Fluminense (UFF) - Departamento de Comunicação


Roteiro: Rachel Bertol, Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca

Realizada por Danielly Alves dos Santos e Gabrielle Fonseca

Edição: Filipe Pavão (bolsista)  

Transcrição, edição e revisão final: Rachel Bertol e Mateus Stögmüller (bolsista)  


Clique aqui para acessar. o PDF da entrevista.


[00:12] Oi Ana, boa noite, primeiramente, eu queria começar te agradecendo por você participar no projeto com a gente, cedendo um pouco do seu tempo. A Repórter Brasil é um veículo muito importante para a gente abordar aqui no nosso projeto. 


[00:29] Ana Magalhães: Boa noite, eu que agradeço, é uma honra e um prazer poder falar  um pouco do trabalho da Repórter Brasil e conversar com vocês, eu acho que é uma interação  importante e eu estou muito feliz por estar aqui. Muito obrigada pelo convite.  


[00:42] Então Ana, eu queria que você começasse nos contando de onde você, seu nome completo, sua formação e o que te levou ao jornalismo. 


[00:52] Ana Magalhães: Meu nome é Ana Magalhães, eu nasci em Belo Horizonte, eu sou  de Belo Horizonte, eu me formei em BH na PUC-Minas e quando eu era adolescente, ali pelos 13, 14 anos, eu tinha uma grande amiga na escola que falava assim, "Ana, eu te acho muito boa de comunicação, eu acho que você devia fazer vestibular para Comunicação". Foi a primeira vez que eu pensei nisso. Mas é muito interessante, porque eu nasci numa família  muito... Eu ia usar a palavra culta, mas eu não sei se esta é a melhor palavra, mas muito  interessada em notícias, que buscava sempre se informar e uma família com muitos bons  hábitos de leitura. Então, eu aos 13, 14 anos já comecei a ler jornal. Eu via meu pai e minha  mãe lendo o jornal todos os dias e eu achava legal e eu queria ler jornal e eu já gostava disso,  eu já lia um bocado quando era adolescente. E quando eu comecei a me preocupar mesmo em  fazer vestibular, assim, eu pensava muito em Jornalismo e eu pensava muito em História. E eu acho que, ao longo da minha formação, sem dúvida nenhuma, o que me levou a,  principalmente me conduziu para o Jornalismo e eu não tenho dúvida nenhuma disso até hoje, era um desejo de mudar o mundo para melhor, de lutar por justiça social. Eu cresci numa  família com uma tendência comunista, então eu sempre me preocupei muito com a sociedade, com o coletivo e eu acho que isso interferiu na minha escolha profissional. E hoje,  trabalhando na Repórter Brasil, eu me encontrei muito profissionalmente porque é  exatamente isso que a organização também quer. A missão da Repórter Brasil é denunciar  violações de direitos humanos, violações trabalhistas, violações ambientais, violações sociais,  com o objetivo de construir uma sociedade menos desigual, mais justa, com mais justiça social e essa sempre foi uma das minhas metas desde que eu era pequena e adolescente. Então, acho que eu cheguei no momento da minha vida em que o meu desejo pessoal coincidiu com a  missão da organização onde eu trabalho. Então, eu estou muito agradecida por isso, sem  dúvida nenhuma o meu o meu trabalho é movido, o meu trabalho jornalístico é movido por  um desejo de transformação social com vistas a que a gente tenha um mundo um pouco mais  justo e um pouco mais igualitário. 


[03:46] Sem dúvida, é uma questão que a gente busca a cada dia, ainda  mais no mundo de hoje, né? Em 2001, foi criada a Repórter Brasil. Quando foi que você entrou  na organização, como seu trabalho lá foi se modificando ao longo dos anos? 

 

[04:03] Ana Magalhães: A minha história na Repórter é uma história muito interessante, porque eu  acho que foi um encontro, mesmo, um grande encontro, sabe, entre os meus desejos pessoais  e os desejos institucionais, as missões e metas institucionais da Repórter Brasil. Eu comecei na Repórter em 2017, como freelancer. Me pediram uma reportagem como freelancer e eu fiz uma matéria, uma reportagem para eles como repórter freelancer mesmo. Eles gostaram e pediram uma segunda. Gostaram de novo e me pediram uma terceira. Foi bem interessante  que logo, poucos meses depois, uns quatro meses depois, me fizeram uma proposta de  contratação, de eu ser contratada CLT na Repórter Brasil. A Repórter Brasil trabalha com  freelancers, mas o time fixo dela é todo CLT. E eu, imagina, eu amei a proposta. Eu já estava  gostando muito de escrever para a Repórter, de trabalhar para a Repórter como freelancer.  Então, eu aceitei a contratação de CLT. Eu fui contratada como repórter e foi muito  interessante a minha história na Repórter Brasil. Como eu acho que esse grande encontro,  meu pessoal, essa grande coincidência minha pessoal com a missão da Repórter Brasil,  com a missão institucional dela, eu acabei crescendo muito rápido lá dentro. Mas é porque eu  me identifiquei muito. Eu me lembro que quando eu entrei na Repórter, assim que eu fui  contratada na Repórter, eu costumava falar para os meus amigos, eu costumava falar isso,  gente, eu estou no emprego dos meus sonhos. Eu tenho essa sensação ainda, tenho uma  sensação de que eu e a Repórter Brasil, a gente precisava se encontrar no mundo, sabe? E eu  tive essa sorte, eu sou muito agradecida por isso. Então, eu comecei como freela,  fiquei uns quatro meses como freela, logo depois eu fui contratada e pouco depois que eu fui  contratada como repórter, alguns meses depois, uns quatro meses, cinco meses depois que eu  estava contratada, o time de jornalismo da Repórter Brasil ele tinha que desenvolver um  especial multimídia que ia dar muito trabalho e a nossa então coordenadora, que continua  com a gente, que é uma figura maravilhosa, chamada Ana Aranha, a nossa então  coordenadora, ela estava cuidando de vários outros projetos grandes e ela meio que passou para mim pouco a pouco a responsabilidade de tocar esse especial multimídia, que vocês conhecem ele, ele se chama Ruralômetro, a gente publicou ele em janeiro de 2018. Então ali, por outubro, setembro, por agosto ou setembro de 2017, eu estava há pouco tempo na Repórter, a Ana Aranha me faz essa proposta de eu assumir mais responsabilidades no  desenvolvimento do Ruralômetro. E o Ruralômetro é outro projeto que, com o qual eu me encontrei muito. Era um projeto que foi, o Ruralômetro ele foi um projeto desenvolvido pela equipe da Repórter Brasil, foi a equipe da Repórter, eu incluída, que tivemos a ideia do  projeto, do que a gente queria, a gente queria fazer uma discussão com a política também. No Ruralômetro a gente pega os 513 deputados federais brasileiros e analisa como eles votaram, em medidas e projetos de lei que têm um impacto socioambiental para os povos do campo. E aí eu mergulhei de cabeça no Ruralômetro, era um projeto que eu amava e eu mergulhei de cabeça e eu acabei me tornando a coordenadora do Ruralômetro. Eu  acabei gestionando uma equipe de 12 pessoas, éramos 12 pessoas, eu acabei gestionando uma equipe de 11 pessoas no Ruralômetro. E, eu não sei, eu imagino que eu tenha desenvolvido bem essa função, porque, pouco depois do Ruralômetro, a Ana Aranha me fez uma proposta de eu virar a coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil. Eu fiquei muito lisonjeada com essa proposta, naturalmente, muito certa de que a Repórter Brasil tinha muito a ver comigo e eu tinha muito a ver com a Repórter Brasil e aí eu pedi para Ana Aranha para pensar, porque eu era repórter então e de repente eu ia virar uma coordenadora. Eu sabia que era um cargo de extrema responsabilidade, eu sabia que não era um cargo fácil, porque, é o cargo que eu ocupo hoje, é um cargo muito delicado, é um cargo muito desafiador,  porque, como coordenadora do jornalismo, a gente termina desenvolvendo duas funções, eu  acho. Uma função, que é muito mais ligada ao jornalismo, de ser editora, de pensar a  cobertura, de orientar repórteres, de melhorar texto, de articular com veículos  republicadores. É uma função mais jornalística. Mas também há uma função da coordenadora de jornalismo, que eu executo hoje, que é a função mais ligada à gestão de projetos e captação de recursos, captação de financiadores. E nesse universo eu não tinha nenhuma experiência. No universo jornalístico eu já tinha uma boa experiência, eu já tinha mais segurança para trabalhar como editora e etc. e tal. No entanto, nesse universo de captação e gestão de orçamento, gestão de pessoas, gestão de projeto, eu era totalmente inexperiente. Então, naquela ocasião, ali, início de 2018, o que eu pedi para Ana Aranha, que havia feito essa proposta, a antiga coordenadora, o que eu pedi para ela foi um tempo para eu pensar e eu pensei durante um tempo longo, eu fiquei um mês pensando nessa proposta. Durante essa temporada eu escutei várias pessoas que eram importantes para mim sobre o que elas achavam, vários amigos, minha família e etc. E aí, sim, eu decidi que era uma proposta muito  irrecusável, digamos, que eu não poderia deixar passar essa oportunidade. E aí eu faço uma contraproposta para Ana, que era de que durante, como era um cargo muito novo para mim, com uma função muito nova para mim, digamos, sobretudo essa função de captação de recursos e de gestão de projetos, eu sugeri a gente fizesse uma lenta transição, de uma coordenadora para outra, e que durante um tempo nós duas fôssemos co-coordenadoras e a Ana aceitou, eu acho que isso encaixou bem para a Repórter Brasil, acho que foi legal a gente ter feito isso. Então, em julho de 2018, eu e Ana Aranha, somos duas “Anas” para a  gente para facilitar a vida, eu e a Ana Aranha ficamos como co-coordenadoras, as duas juntas. E aí, em 1º de janeiro de 2019 do ano passado, eu já assumo como a coordenadora principal. E aí hoje, analisando para trás, eu acho que foi muito interessante de fato esse período de co-coordenação. Foi um período em que a Ana pôde me ensinar uma série de coisas, me mostrar na prática os desafios desse cargo, me ensinar uma série de coisas, me apresentar uma série de pessoas que eu pensava conhecer. Foi incrível, né? E aí agora eu estou na coordenação desde então até hoje, ou seja, no frigir dos ovos, eu tenho quatro anos de  Repórter Brasil.  


[12:11] Eu vou aproveitar, eu vou entrar nessa questão, então, do Ruralômetro, que já tinha uma pergunta sobre. O Ruralômetro é um projeto que ele possui uma forte base de jornalismo de dados, que é um outro recurso que o jornalismo usa bastante, principalmente nas mídias digitais hoje em dia. E eu queria saber como foi realizar esse projeto, se vocês pensam em repetir nessas eleições agora de 2020, que estão bem perto,  e o quê que vocês mudariam, se fosse o caso.  


[12:41] Ana Magalhães: Ótima pergunta. Sim, a boa notícia que nós temos é que, sim,  faremos um novo Ruralômetro em 2022, pretendemos lançá-lo até junho ou julho e  justamente para pegar as eleições majoritárias de outubro de 2022. Então sim, nós faremos  novamente o Ruralômetro, e… acho que esqueci da primeira pergunta... Ah! Os desafios.  Como foi fazer, né? Nossa, foi um projeto muito desafiador, eu acho que talvez tenha sido um  dos maiores projetos e ferramentas de consulta especiais multimídias feitas pela Repórter  Brasil nesses últimos dez anos, pelo menos. É um projeto grande, que envolveu uma  equipe grande. É muito interessante porque nossa equipe era multidisciplinar. É legal quando a gente tem oportunidade de executar um projeto que conta com a colaboração de profissionais de várias áreas diferentes. Isso é muito enriquecedor. Na nossa equipe, tínhamos os jornalistas, mas tínhamos designer, tínhamos até um cientista político, que nos ajudou, tínhamos até um estatística em matemática nos ajudando a fazer e jornalismo de dados especializado  em cruzamentos. E foi um projeto incrível, eu sou muito suspeita para falar, sou muito orgulhosa do Ruralômetro, tenho um envolvimento muito íntimo com o Ruralômetro, eu  acompanhei o Ruralômetro do princípio ao fim. Eu costumo brincar que ele é um filho meu, assim, de certa maneira. Não só meu, mas de todo o time da Repórter ali. Mas fui eu que  assumi mais a frente de cuidar do Ruralômetro. É muito gratificante, quente mexer com jornalismo de dados, muito desafiador também. Só para vocês terem uma ideia. Eu chamo o Ruralômetro carinhosamente de Rura, tá? Tem um momento no Rura que... O que a gente faz no Ruralômetro? A gente tenta pontuar e avaliar a atuação dos deputados federais brasileiros de acordo com como eles votam em medidas que impactam povos do campo e quais os projetos que lei que eles propuseram que impactam os povos do campo ou o meio ambiente de alguma forma. Para a gente fazer esse levantamento, teve um momento em que eu e um assistente meu, um jornalista colega nosso, a gente analisou três mil votações que aconteceram na Câmara dos Deputados na última legislatura, de 2015 a 2018. Três mil votações. Eu e o Gui Zocchio, nós sentamos em um momento e analisamos três mil votações para  entender quais tinham impactos no campo ou não. Então, é um trabalho de formiguinha. Tem alguns trabalhos no jornalismo de dados que são trabalhos de formiguinha, que você vai  garimpando e analisando um grande volume de informações. É claro que tem, existem hoje, e  isso é muito revolucionário no jornalismo, de certa maneira, é muito revolucionário há um tempo, existem jornalistas especializados em cruzar dados, ou extrair dados, de pegar  grandes volumes de informação e cruzar um dado com o outro. Então, a gente tinha o  Reinaldo Chaves fazendo esses cruzamentos, mas nem sempre é possível você automatizar  alguns processos. Alguns processos eles terminam sendo manuais, acaba tendo um trabalho  de uma equipe sentando e analisando três mil votações e entendendo se aquelas têm impacto  ou não nos povos do campo. Então, eu acho que foi um trabalho incrível, muito gratificante. E eu acho que o mais gratificante é que o Ruralômetro acabou incentivando e inspirando outros  projetos que estão por aí, tipo o Elas no Congresso, que tem esse mesmo repórter do  programa, só que focado na questão de gênero, na questão da mulher e da representatividade  da mulher. Enfim, foi uma experiência incrível, mas eu já destaco para vocês que o jornalismo  de dados é bem desafiador e é interessante que você ter um especialista dessa área junto,  trabalhando junto com você, porque são trabalhos muito complementares. E é isso, o  Ruralômetro acabou contando com a colaboração de 12 pessoas e eu acho que a gente foi uma equipe muito multidisciplinar que acabou agregando muito ao projeto. Então, estamos aí, já nos preparativos para 2022. 


[17:43] E como você acha que os leitores da Repórter Brasil receberam  essas visualizações dos dados que vocês fizeram? 


[17:53] Ana Magalhães: Muito interessante tua pergunta, novamente. A gente quebrou muito a cabeça para que o Ruralômetro fosse um projeto para entender. Muito. O tempo todo o trabalho da equipe era quebrar a cabeça de qual o jeito  mais fácil do nosso leitor entender o Ruralômetro, entender essas informações que estão aqui, entender o potencial da ferramenta, entender esse monte de informação que está  jogada ali. O Ruralômetro tem milhares de informações, tem milhares de layers de informação, e eu entendo que isso pode ser um pouco confuso ou um pouco assustador para um leitor que não está acostumado. A gente quebrou muito a cabeça para que ele fosse  muito fácil de usar. Se a gente conseguiu cumprir isso, eu não consigo nem te dar com certeza.  Eu sim, sei, que para algumas pessoas, eu me lembro que, na época que eu lancei o Ruralômetro eu era casada e eu mostrei para o meu ex-marido, ele nem era jornalista, ele era historiador, eu joguei para ele e "me fala o que você entende, o que você acha que você, por onde você clica". Eu fui testando ele por onde ele navegava no Rura. E, bom, ele era um historiador muito interessado nesse assunto, então ele estava muito interessado em explorar  aquela ferramenta. E foi muito interessante que no teste que fiz com ele, ele entendeu muito bem,  ele foi fuçando, foi entendendo e foi bem interessante. Mas depois que o Ruralômetro foi  publicado, eu tive o feedback de algumas pessoas assim: "Ai Ana, eu mostrei para o meu pai e  minha mãe, eles são pessoas um pouco mais simples, mais humildes, eu percebi que eles tiveram um pouco de dificuldade de entender o que era aquilo ali, eu tive que explicar um pouco", então, eu acho que o Rura talvez tenha falhado um pouco nisso, ele poderia ter tentado ainda mais simples, mas já garanto para vocês que a gente quebrou muito a cabeça para facilitar o máximo possível, para ser intuitivo e fácil de usar. Teve uma experiência interessante que a gente fez que é antes de lançá-lo, isso é uma coisa rara no jornalismo, mas antes de lançá-lo, nós mandamos o Ruralômetro para umas cinquenta pessoas que eram mais ou menos próximas a nós, que nunca tinham visto o Ruralômetro antes e fizemos uma pesquisa com essas pessoas para entender o que elas estavam achando, o quão difícil era entender, o  quão fácil era entender, o quão fácil era navegar, o quão difícil era navegar. O feedback que a gente teve dessas pessoas foi interessante, foi bem interessante. Eu percebi que o  Ruralômetro não era uma ferramenta tão difícil de ser usada e de ser compreendida, mas, outra vez, eu testei em pessoas que são mais ou menos parecidas comigo, eu nunca cheguei a  testar o Ruralômetro pegando uma pessoa da periferia de São Paulo, por exemplo, ou uma pessoa do interior de Minas Gerais, que saiba usar o computador, mas que não tenha necessariamente tanta desenvoltura nesse universo. Esse teste eu realmente não fiz, mas no frigir dos ovos, eu acho que o Ruralômetro não é uma ferramenta tão difícil assim de ser usada, eu acho que ele conseguiu. Ele poderia ser mais acessível? Poderia, mas eu acho que no geral ele  conseguiu cumprir bem a missão dele de que as pessoas conseguissem navegar e soubessem mais ou menos por onde elas estão navegando. Eu acho que não tiramos nota dez nesse quesito, acessibilidade e facilidade de entendimento, mas acho que a gente passou nessa  prova, tirando um pouco mais de seis, talvez. Eu respondi sua pergunta? [a entrevistadora responde no vídeo afirmativamente com um gesto de cabeça, em silêncio] Boa. 


[22:00] Então, Ana, aproveitando esse ponto que você falou sobre acessibilidade, você falou sobre os públicos e como às vezes é difícil atingir determinados públicos e tudo mais, você acha que a Repórter Brasil consegue atingir públicos que às vezes não têm um fácil acesso a essa comunicação digital e que poderiam também se beneficiar dessas  informações que são úteis para muitas pessoas que não têm ciência disso, mas também para quem vivencia algumas [dessas] coisas de perto. Você acha que a R.B. também consegue  atingir esse objetivo? 


[22:42] Ana Magalhães: Olha, eu acho que a gente tem trabalhado duramente para ampliar  o alcance do nosso trabalho, para que ele seja facilmente entendível. A gente trabalha duro  nesse aspecto todo tempo, nem sempre os temas que a gente aborda são simples e de fácil  compreensão, mas a gente faz um esforço muito grande por meio por meio de materiais  complementares, como artes e gráficos, para tentar deixar isso mais claro para o leitor. Sempre foi uma meta estratégica na Repórter Brasil de que nosso texto seja muito acessível e  entendível para qualquer pessoa, que ele possa atingir um público amplo. Em 2017, eu estava entrando na Repórter Brasil, a gente já tinha começado a fazer uma estratégia em termos de audiência que era o seguinte, a gente começou em 2017 a fazer parcerias com grandes veículos brasileiro para começar a republicar o conteúdo da Repórter Brasil nesses  veículos e hoje essas parcerias de republicação estão muito consolidadas. Quais são os principais veículos que nos republicam? UOL, que é o maior portal jornalístico do país; Folha de  S.Paulo, que se não me engano ainda é o jornal mais lido do Brasil; Carta Capital, El País  Brasil. São alguns deles, tá? Então, como é que funciona, a Repórter Brasil faz uma  reportagem com o olhar dela, com a linha editorial dela, dentro dos temas que ela cobre.  Quando essa reportagem está pronta, a gente oferece para o UOL e pergunta se o UOL tem  interesse em republicar aquele material. É de graça, não há dinheiro envolvido nessa parceria, é uma parceria win-win, é bom para o UOL e é bom para a Repórter Brasil e o que  acontece hoje na Repórter? Eu te diria que mais ou menos 85%  das nossas  reportagens são republicadas nesses veículos, hoje principalmente Folha e UOL. Eu acho que essa experiência é muito rica para a Repórter. O que a gente quer com essas parcerias de republicação? A gente quer atingir um público mais amplo e sobretudo um público mais variado. Se você pensar que o UOL é o portal mais lido do Brasil, a gente está falando de milhares e milhares de cliques por dia no portal UOL. Então, quando a gente publica no UOL... E o UOL tem um viés muito interessante, como é um portal muito grande e tem gente de todo tipo lendo, gente de esquerda, gente de direita, gente do interior, gente de grandes cidades. Tem uma grande variedade de tipos de pessoas lendo UOL, ele já necessariamente tem uma linguagem mais simples e mais clara para o público amplo e nós também temos essa linguagem. Então, foi uma parceria perfeita. Então, eu acho que por meio dessas parcerias, Gabrielle, a gente acaba, sim, atingindo públicos variados, mas, agora você tem razão nessa sua pergunta, quando você analisa os leitores que estão clicando no site da Repórter Brasil, a gente tem um número muito bom de cliques no nosso site anualmente, anualmente chega a 3 milhões, 3,5 milhões de cliques no nosso site. É um número relativamente alto para esse universo do jornalismo  independente, não é um número que eu ignoro. Então temos pessoas, temos leitores fiéis que entram no nosso site, que clicam, que nos acompanham, que nos acompanham nas redes.  Temos um público fiel, digamos, mas já sabemos que esse nosso público fiel, que entra no site, a gente já entende que ele tem um perfil, ele já tem uma escolaridade um pouco mais alta do que a média, digamos que é um público mais qualificado, mas quando essa mesma matéria que está no meu site, está no UOL, muitas vezes a gente "manchetou" o UOL, a gente  foi manchete do UOL várias vezes, inúmeras vezes a gente "mancheta" o UOL, e aí eu tenho uma ideia de que a gente está atingindo um público muito maior do que a gente pensa, na verdade, por meio dessas parcerias com esses veículos. Então, eu acho que a história é essa, o  nosso leitor do site é um leitor mais qualificado, mais fiel e menor, mas essas parcerias nos permitem ampliar esse público e ampliar nossa perspectiva de impacto. A gente quer fazer um jornalismo investigativo, a gente quer fazer não, a gente faz um jornalismo investigativo de impacto, ou seja, queremos impactar o mundo, a gente quer transformar a realidade. Acho que é por aí. 


[00:27:51] Legal, Ana. E acho que como você falou, isso é muito importante quando a gente atinge um público variado mesmo e acho que essa iniciativa do UOL realmente  abre portas para vocês terem um público bem mais amplo que eu imagino que seja um pouco  diferente de quem acessa diretamente o site da Repórter Brasil


[28:10] Ana Magalhães: Posso só fazer um comentário rápido, Gabrielle? É até interessante  essa historia do UOL e da nossa parceira com o UOL porque já aconteceu antes de a gente dar um furo nosso, um furo de reportagem nosso que sai junto com o UOL, que repercute na  imprensa inteira, mas as pessoas acham que é um furo do UOL, entendeu? Só um leitor atento percebe que na verdade é um furo da Repórter Brasil. E isso já aconteceu várias vezes. Por exemplo, não sei se você se lembra no ano passado, na época que os brigadistas de Alter do Chão foram presos, nós soltamos junto com o UOL, em parceria com o UOL, um áudio do prefeito de Santarém que desmentia a tese de que os culpados pelo incêndio lá em Alter do Chão eram os brigadistas. Cara, essa matéria nossa foi para o Fantástico, ela repercutiu em todos os lugares do Brasil, todos. Assim, eu vi a GloboNews citando essa matéria, eu me lembro  que a GloboNews foi muito correta e falou “segundo a Repórter Brasil”, mas eu  lembro que, por exemplo, quando um desses brigadistas de Alter de Chão ou aquele cara da  ONG de “Doutores da Alegria”, quando ele foi para o “Roda Viva”, uma das jornalistas pergunta  para ele sobre o tal áudio do prefeito e ela fala "ai, eu acho que foi um furo do UOL". Não, não foi um furo do UOL, foi um furo da Repórter Brasil que o UOL republicou. Mas tudo bem, a gente não fica enciumado quando isso acontece porque o que a gente quer é isso, eu quero que essa noticia, que ela tenha o máximo de impacto possível e se ela está indo para o  “Roda Viva”, esse assunto está indo para o “Roda Viva”, eu já fico feliz, entende. Só queria  fazer esse comentário. 


[30:02] Legal, Ana. Eu acho que condiz muito também com a visão da  própria R.B. que você falou, nessa questão de realmente. É um objetivo muito maior do que apenas o nome. 


[30:13] Ana Magalhães: Exato. A marca em si, claro que a gente está preocupado com  nosso nome e com nossa marca, mas a gente quer transformar o mundo. Então, se as nossas  notícias estão circulando por aí, eu estou feliz. Se ela está gerando impacto, gerando  investigações, gerando denúncias, gerando mudanças, estamos cumprindo a nossa missão.  Acho que é isso. 


[30:36] Eu queria aproveitar que você falou um pouquinho sobre maneiras de tornar as reportagens mais acessíveis e falar um pouquinho dos formatos com os quais vocês trabalham. Vocês hoje têm podcasts, também fizeram muitos documentários e têm vários prêmios. Então eu queria entender como é para você trabalhar com esses formatos diferentes e qual a importância deles para tornar esses conteúdos mais pulverizados e acessíveis. 


[31:09] Ana Magalhães: Perfeito. A Repórter Brasil tem quatro núcleos dentro dela. Eu  gosto de explicar isso primeiro porque nem todo mundo entende. Um dos núcleos é o núcleo  de jornalismo. A gente tem o núcleo de documentários que não é tocado por mim, é tocado  pelo Carlos Juliano Barros que é um documentarista brilhante. A gente tem um braço mais  ONG, mais educacional, é o programa "Escravo Nem Pensar", que faz formação de professores, e a gente tem um braço mais voltado para pesquisa, que vai a campo e faz pesquisa em campo, escreve mais relatórios. Então, todo esse trabalho que você está dizendo, muitas vezes ele não é tocado pela agência de jornalismo que é coordenada por mim, pode ser tocada por  outro núcleo, mas sim, a gente sempre teve muita preocupação e a gente costuma dizer que o que a Repórter Brasil faz é comunicação, não é só jornalismo, é comunicação, no sentido mais amplo, digamos. E aí, foi este ano que a gente lançou nossos podcasts, a gente lançou duas séries de podcasts, um pouco diferentes entre si. Foi muito interessante a experiência do podcast porque a gente reparou que, com o podcast, nós estamos atingindo um novo tipo de  público que não necessariamente lê nossas reportagens ou vê nossos documentários e isso é  muito interessante para a organização. É isso mais ou menos o que a gente quer. Mas sim, a Repórter Brasil tem uma longa tradição em documentários, a gente tem documentários premiadíssimos, com prêmios internacionais. Desde 2012, tem dez anos que a gente faz longas, documentários de longa-metragem. Também fazemos na agência de jornalismo o que a gente  chama de mini documentários que são vídeos muito mais curtos, muitas vezes de quatro minutos, cinco minutos. Houve uma época que esses nossos vídeos viralizavam, com cinco milhões de cliques e tal. E também, dentro do universo de reportagem, a gente tem diferentes tipos de  trabalho. A Repórter, ela também tem uma tradição muito interessante em fazer duas coisas: especiais multimídias, que é uma página que tenta trazer o leitor para uma imersão maior usando vários recursos, usando vídeos, usando áudios, usando texto, usando fotos, usando imagens, usando gráficos, usando movimento. E a gente tem também uma longa e antiga tradição de fazer uma coisa que chamo de ferramentas de utilidade pública, porque para mim tecnicamente elas não são um especial multimídia. Por exemplo, o Ruralômetro é uma ferramenta de jornalismo de dados e ele é uma ferramenta que tem uma utilidade pública. Você entra ali e você consegue ter uma visão de como está sendo o trabalho de alguns  parlamentares brasileiros e se você quer votar novamente naquele cara que está se candidatando à reeleição. Parecido com o Ruralômetro a gente tem o Moda Livre também, que é um aplicativo que tem um site, é um aplicativo de celular em que a gente meio que pontua várias marcas da moda sobre como e quão transparente elas são e quão respeitosas elas são no universo, no que tange às condições trabalhistas do universo têxtil. E eu acho que é muito interessante porque essa tradição de multimídias e de ferramentas de consulta de  utilidade pública são um baita de um diferencial da Repórter Brasil. Eu acho que não por acaso a gente acaba de ser premiado pelo prêmio Vladimir Herzog pelo especial multimídia. Acho que é um diferencial da Repórter Brasil e eu acho que a ideia é essa. O que a Repórter faz é comunicação de várias formas, vários tipos, formas diferentes, buscando amplidão de  público e impacto mesmo. Eu acho que a ideia é essa. 


[35:36] Você falou bastante sobre esses projetos que vocês têm, que são realmente bem diferentes, e tem um que é muito legal, que a gente tinha separado para  conversar com você que é o Robotox [bot desenvolvido para o antigo Twitter em 2019 no projeto Por trás do alimento, parceria entre a Repórter Brasil e a Agência Pública]. Vocês criaram basicamente um robô do bem, projeto super legal, e ele tweeta toda vez que o governo federal libera algum registro de  agrotóxico etc. Como tem sido essa experiência? Eu acho que é um recurso bem diferente dentro do jornalismo. É uma coisa que você recomenda para outros veículos, outros portais? E como você enxerga a integração desse tipo de ferramenta no jornalismo? 


[36:19] Ana Magalhães: Eu acho que é uma tendência muito forte no jornalismo usar a inteligência artificial, usar robôs para monitorar uma determinada área. Eu acho que isso é  muito enriquecedor, tanto para o jornalismo em si, quanto para a sociedade de maneira geral. É muito útil que você tenha, o Robotox é muito incrível, ele faz tudo aquilo  automaticamente. Você fala assim: "gente, não tem um ser humano por trás, fazendo  isso?". Não, tem um ser humano pensando aquele projeto, desenvolvendo o  Robotox e ele toca isso sozinho. Tem várias experiências similares, se não me engano o  Aos Fatos, que é um site independente de checagem de notícias, tem vários robôs por aí. Eu  acho que é uma tendência e eu acho que é uma tendência muito enriquecedora. Como eu  te disse, tem muito para atividade jornalística, quanto para a sociedade de maneira geral. É um jeito prático de a sociedade de se informar, por exemplo, sobre os registros dos  agrotóxicos por meio do RoboTalks. Eu só fico com medo deles roubarem nossos empregos,  esses robôs, mas isso não vai acontecer, não, gente (ela ri). É brincadeira. 


[37:46] Ai, Ana, nem fala, nossa nova geração é da área tecnológica agora. Eu queria voltar um pouquinho, naquela parte que você já explicou, que era até uma  pergunta da gente sobre os ramos da Repórter Brasil: Jornalismo; Pesquisa; Educação… E qual  dessas áreas você acredita que é o carro-chefe da Repórter Brasil? O que os leitores vão  para o site procurar.


[38:17] Ana Magalhães: Nesse aspecto do site, realmente o jornalismo é o carro-chefe. Por  quê? É muito interessante, porque o jornalismo, na essência, ele trabalha com isso. Não adianta você fazer uma muito boa matéria, uma muito boa investigação, uma muito boa reportagem e ninguém ler aquela reportagem. Então, há uma parte do trabalho jornalístico que é a divulgação, que é fazer aquele trabalho chegar às pessoas. O site e as redes sociais são nossas ferramentas de trabalho o tempo todo, é a minha ferramenta de trabalho. Os  nossos colegas do Escravo Nem Pensar, por exemplo, que é o braço educacional da Repórter Brasil, eles têm várias outras ferramentas de trabalho, além das redes sociais, além da  divulgação do trabalho deles. Eles têm, por exemplo, a sala de aula. É principalmente na sala de aula onde eles trabalham, fazendo formação de gestores públicos e de professores  públicos. Já no caso da agência de jornalismo, as minhas principais ferramentas de trabalho  são o site e as redes sociais. Então, sem dúvida nenhuma, a maior parte dos leitores que entra  no site, eles entram buscando jornalismo, sem dúvida nenhuma, mas um pouco por conta  disso, o jornalismo só completa a sua missão quando ele chega no público leitor. 


[39:50] É verdade, concordo com você. Já que a gente está falando sobre as reportagens, a questão do jornalismo e o seu público, como você acha que ao longo dos anos tem evoluído a questão do financiamento que vocês têm? Porque financiamento é uma palavra-chave para o bom jornalismo e como vocês são uma ONG (a Repórter Brasil é formalmente uma Oscip - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), você acredita que facilita o financiamento do trabalho de vocês? Como funciona essa parte? 


[40:18] Ana Magalhães: Ótima pergunta. A Repórter Brasil tem hoje um modelo de  negócios muito parecido com outros veículos independentes, como a Agência Pública ou até mesmo outros projetos como, por exemplo, como a Amazônia Real que são projetos que a  gente acompanha tão de perto e são parceiros nossos também. É o seguinte modelo: é uma  instituição sem fins lucrativos e que ela é financiada por projeto, por organizações  normalmente filantrópicas e normalmente internacionais. Então, hoje a agência de jornalismo da Repórter Brasil, vou  falar pela agência, hoje a agência de jornalismo da Repórter Brasil é financiada por fundações, como por exemplo a Ford Foundation. É uma das fundações que financiou o nosso trabalho jornalístico. Tem outras também, nós temos outras três fundações que hoje financiam o nosso trabalho jornalístico. Eu acho, Danielly, que esse é um modelo que veio para ficar. A gente vê nos Estados Unidos, por exemplo, uma das mais importantes agências de jornalismo investigativo hoje é a ProPublica que ela é financiada pela filantropia, seja por doações de grandes instituições que estão doando para a ProPublica, para ela fazer o trabalho jornalístico investigativo que ela faz, ou seja por meio de doações de pessoas. Nos Estados Unidos - é muito interessante de a gente discutir sobre isso, eu gosto muito de falar sobre isso -, nos Estados Unidos existe uma cultura muito maior da filantropia do que no Brasil. É uma questão cultural mesmo. Muitas vezes é isso: o trabalhador médio doa US$ 50,00 (cinquenta dólares) por mês para a ProPublica e eu acho que é interessante porque hoje é a maior parte dos financiadores da Repórter Brasil são grandes instituições e principalmente internacionais, mas a gente também tem um esquema de que os próprios leitores podem doar para Repórter Brasil por meio do site né ou por meio de campanhas crowdfunding e similares. Eu incentivo sempre essa doação, que as pessoas que podem que elas façam doações para essas organizações ou para a organização que ela tem mais afinidade, porque sair do modelo de negócios de anúncio publicitário é muito interessante. Eu, na minha vida, na minha carreira, eu trabalhei em grandes veículos. Eu comecei minha carreira em Belo Horizonte, num jornal de Belo Horizonte. Então eu tenho uma certa experiência em como é trabalhar em organizações que têm um outro  modelo de negócios, que é esse modelo da publicidade, que é o modelo do anúncio publicitário. O modelo do anúncio publicitário eu acho que ele está pouco a pouco ruindo, com essa migração toda para a  internet, mas eu me lembro, em São Paulo não, mas em BH, neste jornal que eu prefiro não  mencionar do nome, já aconteceu de eu ver claramente influência do comercial no trabalho  jornalístico. Assim, "dessa empresa não, a gente não fala muito dessa empresa porque ela  gasta fortunas em anúncios aqui no jornal". Eu já vi isso acontecendo e enfim... Quando você  parte para esse novo modelo, o modelo da Repórter Brasil, da Agência Pública, da Amazônia Real, da ProPublica e de tantos outros que estão aparecendo aí, no Brasil e no mundo, você de fato parte para um jornalismo que ele é um pouco mais independente, no seguinte sentido: não é à toa que nós, na Repórter Brasil, uma das nossas grandes especialidades é investigar grandes empresas. A gente investiga muito grandes empresas, tipo, posso te dar alguns exemplos: JBS, Vale (do Rio Doce), Cargill. São grandes empresas, algumas delas multinacionais no Brasil, algumas delas inclusive com laços muito estreitos na política, como a gente pode ver com a JBS, que sempre foi uma grande financiadora de políticos e tem mil escândalos envolvendo a JBS com caixa dois, por  exemplo, ela comprando políticos e afins, mas é muito interessante de você ver isso. Nós não temos nenhum problema de investigar esses grandes empresas, muito pelo contrário, é uma das nossas metas é investigar essas grandes empresas. E, claro, qual é a vantagem da Repórter Brasil? Eu não recebo nenhum centavo do JBS de publicidade, concorda? Nenhum centavo. Meu modelo de negócios é outro, ele passa por outro lugar. Agora, para o outro lado, se você ligar a TV, a primeira coisa que você vai ver é um monte de anúncio da JBS, inclusive neste exato momento tem um monte de anúncio da JBS na imprensa brasileira, em rádio, TV e em todo lugar. E aí eu fico  sempre me perguntando, o quanto essas grandes organizações têm ou não um rabo preso com a JBS ou o quanto elas são capazes ou não, bancam ou não investigar a JBS, sendo que elas estão sendo, de certa maneira, sustentadas, estão recebendo um grande volume de recursos pela JBS. Então, acho que esse novo modelo de negócios que ele é mais baseado na filantropia, seja de pessoas, de indivíduos ou de grandes fundações, ele é um pouco mais independente. Não é à toa que a gente fala que este novo nicho do mundo jornalístico é o chamado jornalismo independente, ele tem menos amarras, então ele pode investigar o que ele quiser, pode investigar grandes empresas, grandes empresários, empresários poderosos e eu acho que isso talvez seja interessante para o futuro do jornalismo, essa mudança um pouco de eixo, do modelo de negócios pode ser enriquecedor do jornalismo, de certa maneira. Eu entendo que as grandes relações e o modelo de negócio tradicional estão passando por uma crise e isso é muito ruim porque a gente vê muitas demissões e a gente ainda não sabe para onde vamos, mas há também o surgimento de novos modelos que eu acho que são muito promissores e muito positivo. Então, eu não vejo o mercado jornalístico com tanto pessimismo não, muito pelo contrário. Eu sou muito otimista quanto a esse momento de transição que a gente vive. 


[47:23] Olha, é muito bom ouvir isso vindo de você, uma jornalista, porque às vezes a gente fica bem desanimado com as questões atuais, não vou mentir. 


[47:32] Ana Magalhães: Pois é, Danielly, sabe o que eu acho? É muito interessante, porque  eu converso muito com coordenadores e editores do universo independente e é lindo de ver.  Eu comecei a trabalhar no jornalismo independente em 2015, um pouco antes da Repórter  Brasil, mas é bonito de ver o quanto essas organizações estão: primeiro, crescendo;  segundo, cada vez mais fazendo um trabalho muito relevante; terceiro, cada vez mais fazendo um trabalho muito inovador também, diferente, mais arrojado, mais moderno, com novos recursos, com muita inteligência artificial, com jornalismo de dados. É muito  gratificante. Eu sim já vi, nesses últimos cinco anos, um crescimento muito grande desse universo de veículos independente e eu tenho certeza que é uma tendência, que eles vão  continuar crescendo e eu tenho certeza que vocês terão, daqui a alguns anos, quando vocês se  formarem, mais oportunidades nesses independentes também que estão fazendo um  trabalho exemplar. Então, eu não vejo o mundo jornalístico com tanta preocupação e essa  história de que o jornalismo vai acabar, imagina, o jornalismo nunca vai acabar.


[48:54] Ai, que bom ouvir isso. Eu acredito sim, uma parte assim do que eu acho, é que o jornalismo independente mais bonito de ver é que apesar de lidar com a  instantaneidade das questões, do momento, dá para fazer reportagem boa, de qualidade,  mesmo com essa dinâmica toda do digital que é tudo corrido. Então, o que eu mais gosto de ver é isso, porque hoje em dia que a gente mais vê no dia a dia, apesar de ser um outro tipo,  serem notícias e não serem reportagens longas e tudo, é a coisa do corrido, pouca informação, aquela coisa do ter que postar logo porque notícia tem que ir logo. Eu sinto falta desse jornalismo mais detalhado, mais reportagem e é bonito de ver que os veículos independente como a Repórter Brasil fazem um trabalho bonito e grande. É muito legal ver isso. 


[49:46] Ana Magalhães: Acho que você tem razão, acho que tem muita razão nisso. Assim,  claro, veículos diários como a Folha de S. Paulo, UOL, Estadão (Estado de S. Paulo), eles cumprem uma missão muito importante, muito importante, eles precisam cobrir a notícia do dia, o quente mesmo e isso é muito relevante, lembrando que, claro, todos esses veículos sempre fizeram jornalismo investigativo de qualidade, sobretudo para a publicação nos finais de semana. Mas é muito curioso isso, eu nunca tinha pensado muito sobre isso, Danielly. Realmente, os veículos independentes, por terem uma equipe muito menor, porque a nossa equipe é muito menor do que uma Folha de S. Paulo da vida ou do UOL, você imagina. Na Repórter Brasil nós somos cinco jornalistas hoje e um estagiário, com alguns freelancers que nos ajudam ali. Mas talvez esses veículos independentes, por terem uma equipe muito menor e menos estrutura, e também porque UOL, Estadão e Folha e O Globo fazem muito bem o trabalho dele na cobertura do dia, esses veículos terminam entrando onde a grande imprensa não entra e muitas vezes aonde ela não consegue entrar. Como a grande empresa está muito focada no dia, no quente, no que está acontecendo no Congresso, no presidente está falando, no que o Rodrigo Maia está falando,  ela tem que estar, alguém tem que estar fazendo isso, eles acabam nos empurrando para fazer o que… fazendo investigações profundas, grandes reportagens. É muito interessante mesmo ver esse processo, eu acho que o jornalismo brasileiro nos últimos cinco anos, sobretudo o  independente, ele amadureceu muito. Se você olhar, sei lá, a relação de veículos premiados no Prêmio Vladimir Herzog, tem muitos veículos independentes ali premiados, talvez mais veículos independentes do que os tradicionais e isso é muito rico, ou seja, sinal de que a gente está indo no caminho certo, fazendo investigações profundas, indo a campo. Durante muito tempo na Repórter, até hoje a gente tem um pouco essa sensação, muitas vezes nós enviamos repórteres, antes da pandemia porque agora não pode - a gente está um pouco mais parado com viagem -, mas antes da pandemia, muitas vezes, a gente enviava repórteres a lugares para investigar coisas que não tinha ninguém da grande imprensa lá. Um exemplo que eu  posso te dar, um exemplo claro disso, no ano passado, nós enviamos uma equipe - são viagens mais caras, mas tudo bem, é isso que a gente quer fazer, são viagens caras, são viagens longas e caras, mas esse é o DNA da Repórter Brasil: a gente vai hoje ninguém vai. Quando no ano passado,  em outubro, em setembro, nós mandamos uma equipe para Novo Progresso, no meio do Pará,  para investigar o Dia do Fogo, que é a história do fogo, do ataque sincronizado que teria queimado e triplicado os incêndios na Amazônia, na época da seca e que foi um ataque orquestrado, não foi um acidente, foi um ataque orquestrado por fazendeiros e empresários  da região de Novo Progresso. Quando a gente foi para Novo Progresso, Danielly, eu sabia que  tinha jornalista do The Guardian, eu sabia que tinha jornalista do The New York Times mas não tinha jornalistas da grande imprensa brasileira. A Repórter Brasil foi e foi muito interessante  porque nós estamos com um material muito rico e inédito sobre o Dia do Fogo, como  aconteceu esse ataque orquestrado à Amazônia e, enfim, eu acho que é isso. 


[53:36] Você falou do prêmio, a Repórter Brasil já ganhou vários prêmios, e agora a gente vai então falar um pouco sobre reportagens. Em maio deste ano, no início da pandemia, vocês publicaram a reportagem especial Ameaças, Milícia e Morte: A nova cara do Velho Chico, que ganhou o prêmio do Vladimir Herzog na categoria de produção jornalística e multimídia. Você pode nos contar como pensaram essa pauta, como ela foi desenvolvida e em quanto  tempo? Até por conta das questões da pandemia também. 


[54:12] Ana Magalhães: Claro, a pessoa perfeita para contar isso para você seria o Daniel  Camargos, o repórter, mas eu acompanhei de perto todo processo, é uma história bem  curiosa. O Daniel Camargos, ele cobre há muito tempo esse tipo de discussão que é a violência no campo, disputa por território, disputa por terra e questões fundiárias, é um assunto muito delicado no Brasil. É muito interessante isso, porque quem mora na cidade não tem muita noção de que isso está acontecendo no campo brasileiro, mas isso está acontecendo. A gente costuma falar que tem uma guerra no campo do Brasil. É uma disputa por terra, é fazendeiro, grandes fazendeiros querendo mais terra, querendo mais terra para aumentar a plantação, para aumentar a lucratividade dele, para aumentar a produção dele, para aumentar pastagem, para aumentar o lucro dele e, por outro lado, a gente tem um enorme contingente de camponeses, humildes, que não têm terra para plantar ou que estão lutando por uma terra para plantar e sobreviver ou que foram recém-assentados no programa da reforma agrária, enfim, a gente tem uma dívida histórica no que tange à reforma agrária no Brasil. O Brasil nunca fez de fato uma reforma agrária ampla e que pudesse atender a demanda e hoje a configuração é bem delicada, a gente  vive uma guerra no campo. Bom, Daniel Camargos é um jornalista com 15, 16 anos de experiência aí e ele vem se especializando muito nesse tema da violência no campo. E eu me lembro claramente como começou essa pauta: uma fonte dele, ligada a esse setor, ligou para ele e sugeriu que fossem tomar um café. Eu me lembro porque o Daniel me falou e me pediu essa autorização - "Ana, eu marquei com uma fonte minha de tomar um café, na hora tal, eu  estou indo lá. Só queria te avisar, tudo bem?". E eu falei, "claro, vai sim, estou curiosa. Que  pauta é essa? Que pauta é essa?". E essa pessoa contou essa história para ele, eu não posso  revelar quem é essa pessoa, é uma questão de sigilo da fonte, mas essa pessoa contou toda a história para o Daniel, dizendo isso, de que havia não só uma série de ameaças em cima desses quilombolas e fazendeiros ali no Rio São Francisco, mas essa fonte também nos informou que estava acontecendo no governo federal um processo para garantir a demarcação de terras ali para os quilombolas e os ribeirinhos e que quando o presidente (Jair) Bolsonaro assumiu, este processo de regularização fundiária nas margens do Rio São Francisco foi paralisado. Essa é a denúncia que a gente recebeu. Quando o Daniel me conta essa história, eu falei "uau, baita história, vamos  fazer?". Eu me lembro até dessa história, na época a gente estava atolado com outras coisas, a gente está sempre muito lotado de trabalho, a gente sempre quer fazer muito mais coisas do que a gente dá conta de fazer, então isso demanda uma organização nossa muito grande e eu me  lembro de ter falado para ele "Daniel, vamos fazer essa história, vamos te mandar para lá, mas agora nesse exato momento não consigo. Vamos esperar a poeira baixar". Se não me engano, inclusive, essa fonte contou isso para o Daniel antes, foi no ano passado. Se não me engano foi antes das queimadas ali na Amazônia, a gente ficou um tempo rodeando essa história, paquerando e flertando com essa história. E aí o que acontece? Vem as queimadas, eu decido enviar o Daniel  para Novo Progresso para investigar o "Dia do Fogo", ele faz uma longa viagem no final do  ano. Quando ele volta da viagem e eu lembro de ter falado "olha, agora que você voltou do  Pará, eu acho que tua próxima viagem vai ser essa aí para apurar essa história nas margens do  rio São Francisco". Aí armamos, ele foi, se não me engano, em dezembro do ano passado, em novembro ou dezembro do ano passado para o Rio São Francisco ou talvez em janeiro deste  ano, e ele volta com o material, ele e o Fernando Martinho, fotógrafo. Quando eu vejo o material na minha frente eu falo "uau, que puta história", que baita material, belas fotografias, belos vídeos, eu fico encantada e a gente já tinha decidido que isso seria um especial multimídia. Aí começamos a desenvolver o especial multimídia. O especial multimídia é um processo muito mais demorado do que as pessoas pensam, não é muito simples, tem programação, todo um trabalho de edição de vídeo, todo um trabalho de você  discutir como que esteticamente esse especial vai ser, então nos tomou - o Daniel, se não me engano, voltou dessa viagem em janeiro e nós só publicamos o especial em maio. Mas, nesse tempo, estávamos ajustando, fazendo os ajustes finais, como seria a estética, como que a gente traz o leitor para a história, como estão nossos vídeos, enfim, foi mais ou menos esse processo. Mas foi uma fonte do Daniel e aí eu acho que fica essa dica, falo em nome do Daniel, que é um super parceiro meu trabalho, parceiro nosso, um jornalista excepcional e além de tudo, além de ser um cara muito foda, ele é muito humilde, o que é lindo nele, mas eu acho que o Daniel faz isso muito bem, ele faz várias coisas muito bens, uma delas é manter fontes, ele se comunica muito bem, ele mantém as fontes dele e sempre quando uma fonte dele liga para ele e fala assim "estou precisando tomar um café com você porque eu quero te contar uma  história", ele presta atenção e vai tomar um café, eu acho que ele faz isso muito bem. Além disso, o  Daniel é um cara muito bom a apuração em campo, porque ele tem e eu acho que nesse  aspecto sintoniza muito com a Repórter Brasil, a gente costuma dizer que nós não queremos  apenas denunciar as violações que estão atingindo pessoas humildes no Brasil, a gente quer  saber quem está cometendo essas violações, a gente tem uma linha editorial na Repórter  Brasil de que a gente quer investigar os vilões, os responsáveis, os vilões não, mas os  responsáveis por aquelas violações e o Daniel é muito bom é fazendo isso, investigando os  responsáveis. Então foi em campo, quando a gente foi para o Vale do Rio São Francisco, o  Velho Chico, eu não fui, mas eu coordenei todo esse processo dele ir, mas quando ele foi, a  gente não sabia que o secretário de segurança pública estava envolvido nessa naquela milícia  rural, a gente descobriu isso em campo. Como que a gente descobriu isso? O Daniel, no caso,  ele estava lá em um dos acampamentos ali, num dos assentamentos dos sem-terra ali e estava tendo uma ação de despejo, os policiais estavam despejando os sem-terra de uma fazenda, enfim. Nessa ação de despejo, a polícia chega junto com uma advogada, que era advogada do  fazendeiro que havia entrado com uma ação na Justiça pedindo o despejo daquelas pessoas,  daqueles trabalhadores muito humildes e sem-terra ali. Então chega a polícia junto com essa  advogada do fazendeiro, a representante do fazendeiro. E numa conversa com a advogada,  a advogada revela que o secretário de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais, que é o General  Mário Araújo, que ele integrava aquele grupo que eles chamavam de "segurança no campo". Aí o Daniel, então foi ali, por meio daquela conversa informal com a advogada que o Daniel obteve essa informação e depois que ele obteve essa informação, ele utilizou em vários recursos para checar aquela informação, de que de fato havia um envolvimento do Mário Araújo e ele consegue de fato checar, existe toda mundo uma denúncia anterior feita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais já mostrando uma foto do Mário Araújo em atuação naquela área, tem uma  denúncia formalizada, assinada por várias organizações lá na Assembleia que já sinalizava que o General Mário Araújo estaria envolvido nessa história, nesse grupo armado de fazendeiros. A gente chama isso de uma milícia rural, porque o nome técnico para isso em isso é milícia mesmo, da mesma forma como existem as milícias urbanas atuando fortemente no Rio de Janeiro, existem milícias rurais de fazendeiros e seguranças armados, atuando com poder paralelo no campo, e foi ali que a gente confirmou tudo e então decidimos publicar.


[01:04:04] Nossa, que legal que deve ter sido esse trabalho, dá até vontade. 


[01:04:09] Ana Magalhães: É interessante, viu, é bem interessante, mas é desafiador também, dá medo. 


[01:04:16] Essa é justamente a pergunta que a gente ia fazer agora, justamente sobre isso, porque apurar as milícias, como nessa reportagem e outras violências, deve ser difícil. Eu queria saber se vocês já passaram por alguma dificuldade grande e se vocês já desenvolveram algum protocolo de proteção dos profissionais nesse trabalho de campo. 


[01:04:41] Ana Magalhães: Sim, a gente segue protocolos, a gente segue a maioria dos  protocolos sugeridos pelas organizações internacionais especializadas nisso, que são  basicamente o seguinte: 1) sempre tem uma equipe de apoio acompanhando muito de perto a  equipe que está em campo. Muitas vezes, sou eu que faço isso. Eu estou sempre em contato  com o Daniel, ele sempre me dá um roteiro dele dia a dia. Ele acorda fala "bom dia, hoje eu  vou passar por esses caminhos, vou passar nesses lugares". Quando ele chegar no hotel, ele me  fala "boa noite, estou no hotel, está tudo certo". Houve situações mais delicadas em que eu monitorei o Daniel por GPS. Em Novo Progresso eu monitorava ele por GPS. Então, ele tinha um  GPS o tempo todo ligado no celular dele e eu com esse GPS o tempo todo na minha frente. É claro que não ficava o tempo todo parada vendo o GPS dele, enfim, porque tenho que trabalhar, eu tenho que fazer mil coisas, mas eu  sempre olhava, já aconteceu de eu monitorar o Daniel pelo GPS. A gente tem outros protocolos que é sempre ir para esses lugares com lideranças, com contatos prévios, tanto com lideranças locais de comunidades quanto de telefone de autoridades, caso alguma coisa aconteça, de pessoas representantes do Ministério Público, até da Polícia Federal e sempre a gente entra nessas histórias com pessoas que a gente sabe que têm uma articulação muito boa com essas comunidades, por exemplo, a CPT, que é a Comissão Pastoral da Terra, então, também não entramos nesses lugares sozinhos e desavisados. A gente sempre, antes, sonda com membros da CPT ou do Cimi [Conselho Indigenista Missionário], que é o movimento indígena, tudo que acontece na área, "você  pode me levar lá em apresentar essas pessoas". Então, sempre fazemos nossas articulações também. E sim, seguimos fielmente esse protocolo de segurança em campo, mas muitas vezes, Danielly, eu fiquei preocupada com o Daniel na época da publicação da matéria mesmo. Não é a primeira matéria que o Daniel faz, ele assinando porque ele dá mais o nome do que eu, sempre tem uma atuação minha de bastidor, mas o nome que está impresso é o dele, ele está  um pouco mais exposto do que eu, digamos, com essas matérias. Já aconteceu de a gente publicar a matéria e eu ficar um pouco preocupada do que pode acontecer, sabe? Já aconteceu e eu me lembro de uma vez em que o Daniel, assim que ele entrou na Repórter Brasil, ele fez um perfil de um dos maiores grileiros do Brasil. Esse cara até morreu recentemente, nos últimos dois anos. Um dos  maiores grileiros do Brasil, ele era um cara perigoso, um cara que tem na conta dele milhares de assassinatos, enfim, o grileiro é um criminoso, um alto criminoso e esse cara, nao vou falar o nome dele, imagina, que ele é falecido, que descanse em paz, e esse cara morava no interior de São Paulo. E nessa época o Daniel morava aqui em São Paulo e a gente trabalhava em São Paulo. Eu fazia essa brincadeira, em tom de brincadeira, mas lá no fundo era na verdade, de "nossa, Daniel, estou morrendo de medo de a gente aqui trabalhando e o Fulano de Tal passar aqui na porta e sair atirando aqui na casa da Repórter Brasil". A gente faz direto essa brincadeira, mas assim, é uma brincadeira? É, mas tem um fundinho de verdade, sabe, de eu ficar, tipo, "putz, estamos publicando a matéria, vamos ficar esperto agora, Daniel me diz qualquer movimento estranho que você sentir, me avisa qualquer telefonema estranho que você receber". Eu sempre fico meio assim, mas, olha, graças aos nossos orixás e graças às deusas nunca aconteceu nada, mas sempre a gente, o time inteiro é muito atento com isso. É perigoso. 


[01:09:18] Isso me fez lembrar a pesquisa que eu fiz, para fazer as perguntas e para fazer a outra reportagem também, a questão da Starbucks [por conta da reportagem "Starbucks: fazendas de café certificadas são flagradas com trabalho escravo e infantil em Minas Gerais"], que eu tinha lido, que eles procuraram a redação de vocês para poder saber sobre a situação da reportagem e foi uma das reportagens que ganharam cunho nacional e internacional. Então, como vocês lidaram com essa situação naquele momento? Porque, como está falando dos ataques, do medo de atingir a Repórter Brasil, uma empresa renomada procurou vocês e essas situações assim, como vocês lidam? 


[01:09:55] Ana Magalhães: Ótima pergunta, Danielly. Eu já tinha te contado um pouco essa  história naquela nossa primeira conversa. Engraçado, eu costumo brincar aqui, eu tenho  vontade de escrever um livro sobre a pressão que as empresas fazem sobre o bom jornalismo, as grandes empresas. Essa história com a Starbucks não foi a única, houve uma outra grande  empresa que uma época nos procurou. O que eles fazem, qual é estratégia dessas grandes  empresas? Pelo menos no caso da Starbucks ficou muito comprovado que era uma estratégia  dela. Ela passou dois meses, ela nos escreveu, nós publicamos uma matéria dizendo que a  Starbucks estava comprando café de uma fazenda que havia sido autuada por trabalho escravo. Checamos, a Repórter Brasil é muito rigorosa, como a gente faz denúncias muito  sérias, como essa, é uma denúncia muito séria que mancha a marca Starbucks de um jeito  que nós temos consciência, a gente carrega uma grande responsabilidade para com isso, a  gente sabe disso. Como a gente faz denúncias muito sérias, o nosso esquema de checagem e  o de comprovação daquela denúncia, eles são sempre muito rigorosos na redação, a gente sempre checa muito tudo, o que a gente está publicando ou escrevendo sempre tem comprovação documental disso. No caso da Starbucks, a comprovação documental que nós tínhamos eram duas, inclusive, se não me falha a memória. Uma delas é que a nossa repórter foi a campo junto com os auditores. Primeiro que foram auditores-fiscais do trabalho que fizeram esse flagrante dos escravizados. Quando eu  falo de auditores-fiscais do trabalho, eu estou falando de servidores públicos do governo federal. Eles são trabalhadores do Ministério da Economia, ok? É um órgão do governo, são servidores do governo dizendo que ali tinha trabalho escravo, naquela fazenda tinha trabalho escravo. E na fazenda, quando a gente entra na fazenda, quando o nosso repórter entra na fazenda, tem uma placa na fazenda com todos os selos de qualidade que aquela fazenda tinha e um dos selos é o C.A.F.E. Practices, que é ligado à Starbucks, ok? Então assim, temos um servidor federal do Ministério da Economia dizendo que ali tem trabalho escravo, nós vimos aquilo, nós presenciamos aquela autuação, nós temos documentos públicos e oficiais que dizem que ali havia trabalho escravo e havia ali uma placa que era um indício, dizendo que o selo de qualidade da Starbucks estava, que aquela fazenda tinha um selo de qualidade da Starbucks. 


[01:12:54] Nessa reportagem, só para te perguntar que eu fiquei curiosa, nessa reportagem você estava também em campo? 


[01:13:00] Ana Magalhães: Não, eu estava na redação, infelizmente. É triste, Danielly, mas infelizmente como coordenadora é muito complicado para eu ir a campo, mas eu estou sempre acompanhando o que está acontecendo em campo, estou sempre orientando esse jornalista do que a gente pode fazer, por onde a gente vai. Bom, vimos aquela placa, para a gente é um sinal, era um indício, não era uma prova, era indício de que havia um selo da Starbucks ali naquela fazenda. Então, continuamos fazendo o nosso bom trabalho jornalístico que é checar aquela informação. Primeiro, perguntamos para o fazendeiro que foi autuado, o vendedor de café e, se não me engano, ele sim confirma que ele vendia para a Starbucks e tal. Claro, procuramos a Starbucks antes de publicar a matéria, fizemos mais de uma procura à Starbucks antes de publicar matéria e, claro, a conversa era "olha aconteceu isso e isso na fazenda tal, na entrada da fazenda... o fazendeiro diz que tem um selo boas práticas da Starbucks, tem uma placa com o nome da Starbucks, da C.A.F.E. Practices, ligada à Starbucks na porta da Fazenda, vocês confirmam que vocês deram o  selo de qualidade para essa fazenda? O que vocês vão fazer diante dessa autuação por trabalho  escravo?". E a primeira resposta que a Starbucks nos dá, se não me engano a primeira, essa resposta veio da Starbucks Estados Unidos, se não me engano, é que eles confirmavam mesmo, de que eles tinham dado o selo de boas práticas para aquela fazenda, mas que agora, diante dos novos fatos, a "Fazenda tal"  - tem o nome lá da fazenda, a fazenda XPTO -, mas que agora que eles estavam recebendo aquela denúncia, que eles iam investigar o caso e eventualmente suspender as compras daquela fazenda. Então eles, num primeiro e-mail, eles nos confirmam que a fazenda XPTO tinha o selo de boas práticas e vendia café para eles. Quando eles fazem isso, a gente sente segurança para publicar a história e publicamos a história. Bom, na verdade eu te dei uma informação errada, a nossa conversa era com a Starbucks Brasil, se não me engano, a gente publica história em  português e na sequência gente publica a história em inglês, com um parceiro o nosso republicar. Essa história, nos Estados Unidos - ela repercutiu muito bem aqui no Brasil, na Repórter Brasil, se não me engano o UOL também republicou, mas nos Estados Unidos ela bomba, de circular… Eu acho que o americano é muito mais colado na Starbucks do que o brasileiro. Outro dia eu estava em Nova York, é impressionante, eles vão muito na Starbucks, tem Starbucks para todo lado, não sei se o Brasil está tão conectado na Starbucks, mas o americano está. Então, essa notícia da (inaudível) circula horrores nos Estados Unidos e aí chega na Starbucks Estados Unidos, na sede central, quando chega na sede central, a diretora de comunicação da sede central escreve para o veículo que nos ser publicou em inglês e escreve para a gente também,  dizendo que eles haviam cometido um erro interno, que eles se confundiram, que a fazenda XPTO não era exatamente de onde eles estavam comprando café, que eles estavam comprando café da fazenda ao lado da fazenda XPTO. Quando isso acontece, Danielly, sempre que a gente  recebe uma contestação com informações, a gente reabre a investigação. É muito sério, a Starbucks estava me dizendo que nós erramos, que ela errou, ela estava dizendo que ela errou no primeiro e-mail, que ela confundiu o nome da fazenda, que ela misturou uma fazenda com a outra e, portanto, a matéria estava errada, portanto a gente tinha que corrigir a matéria. A gente decide reabrir a investigação, a gente volta a entrevistar todas as nossas fontes, todos os servidores do Ministério da Economia, os auditores. Os auditores voltam a dizer que tem selo da Starbucks sim. A gente reabre, a gente fica dois meses investigando novamente essa história para entender se o erro, que a Starbucks tinha dito que ela cometeu, se procedia. Eu sei, Danielly, essa é uma história… Eu passei dois meses tensa e estressada, quase sem dormir à noite. E, assim, o que eu sempre dizia é: se nós estivermos errados, nós vamos corrigir o nosso erro e corrigir a nossa reportagem, mas eu preciso ter certeza de que eu estou errada, porque até agora é a Starbucks que está dizendo que a minha matéria está errada por conta de um erro dela. Quando a gente pedia a prova para ela, eu falava "então me prova, se você puder, nos dê provas documentais de que você não comprou da fazenda XPTO, mas que você comprou da fazenda ao lado da XPTO e que elas  são diferentes". Aí a Starbucks dizia que ela não podia enviar documentos porque eram documentos confidenciais. Bom, mesmo a Starbucks tendo essa atitude tão estranha, dizer que ela errou e, portanto, a Repórter Brasil tinha errado, mas que ela não consegue me comprovar que ela errou, nem que eu estou errada, nem que a Repórter Brasil está errada, a gente decide por  dignidade e ética reabrir a investigação. Bom, eu estou simplificando a história, foram várias idas e vindas de e-mail, várias horas do meu trabalho preocupada, "estamos errados ou não estamos? O que acontece? Vamos investigar, levanta o registro de novo da propriedade, qual  fazenda que é a fazenda de fato?". No meio dessas idas e vindas, tem um momento que a moça da Starbucks dos Estados Unidos nos manda um e-mail, porque ela vai mandando um e-mail e a gente vai tentando confirmar e pedindo umas coisas e contestando o e-mail e tal, dizendo "Olha, a  gente vai reabrir a investigação, estamos checando se a gente está errado, se a gente tiver  errado, a gente vai corrigir nosso erros mas preciso que me ajude". Uma longa troca de e-mails e numa dessas trocas de e-mail, eu acho que eu te contei isso para entrevista, mas eu gosto de lembrar dessa história porque eu acho absurda essa história, ela nos manda uma carta de um cara, de um consultor dessa área de café aqui no Brasil, dizendo que a tal placa, que a gente viu na porta da fazenda, que ele tinha enviado a placa para a fazenda errada. Então, ela me manda um documento que é um consultor do café aqui no Brasil, um documento assinado por ele, dizendo que a tal placa estava na fazenda errada e que não procedia a tal placa com o selo de qualidade da Starbucks. E eu acho aquilo muito estranho, e falo "que coisa  estranha é esse documento".  E aí a nossa repórter entrevista esse consultor do café, que havia assinado essa tal carta dizendo que ele mandou a placa para fazenda errada. Quando a gente  entrevista ele, Danielly, ele não estava sabendo de nada. O documento que a Starbucks disse que ele assinou, ele nunca tinha visto isso na vida, era mentira. E ali, eu falei: "agora eu já não vou  seguir nessa conversa", e aí o que eu fiz, eu falei para a repórter, a Daniela Penha, uma  excelente jornalista, por sinal, ali a Daniela Penha ficou muito preocupada todo esse tempo com essa pressão da Starbucks, não é fácil você ter uma multinacional do tamanho da Starbucks te mandando e-mail todo dia e pressionando para você tirar uma reportagem do ar. Eu acho que  a Repórter Brasil agiu muito bem naquele momento. Hoje, analisando em  retrospecto, eu acho que a gente agiu corretamente, de não ter cedido à pressão, de ter reaberto a investigação e de ter desmascarado a Starbucks ali. Essa é uma história que a gente nunca publicou, mas eu tenho até vontade de publicar um dia, um livro, não sei, mas a história é essa. Quando a Daniela Penha faz essa entrevista com o cara e o cara desmente a tal carta, aí eu falei, Daniela, "arrasou, nós vamos parar nossa investigação de novo agora". Ela gravou a entrevista com o cara, porque era essa a minha orientação, grava a entrevista. Então, quando a gente descobre isso, eu falei "pronto, é assunto encerrado, a Starbucks está mentindo, ela está forjando documento para me pressionar a tirar uma matéria do ar". Então, o meu combinado é: "Daniella, faz um relatório de toda a investigação passo a passo do que você fez, inclui nesse relatório a entrevista com esse cara, me passa todo o documento, todos os áudios", e o que eu faço é mandar para o Starbucks Estados Unidos um grande relatório, de cinco páginas, com  tudo que a gente havia feito nessa reabertura da investigação, tudo que a gente já havia descoberto e, entre elas, a gente havia descoberto que o tal cara que teria assinado a tal carta estava desmentindo numa ligação gravada. Mandamos esse e-mail mandei e aí me pergunta se a gente recebeu algum tipo de resposta? Ou se voltaram a nos incomodar? Nada aconteceu, assunto encerrado. Mas olha, eu vivi um pequeno inferno durante os dois meses e a Daniela Penha, não quero te contar, ela estava desesperada, mas deu tudo certo no final. 


[01:23:38] Situação difícil, hein, Ana. Complicado, tem que fazer um livro com todas essas histórias. 


[01:23:38] Ana Magalhães: Pois é, estou achando também. É muita história para contar.


[01:23:44] Muita. E, assim pelo compromisso social que a Repórter Brasil tem nas reportagens, nos conteúdos produz e publica, a gente sabe que não é a primeira vez que vocês apertam o calo de alguém. Aquela lista de transparência sobre o trabalho escravo  contemporâneo deu o que falar e imagino que isso também resultou em alguns  ataques, pressões e eu entender com você como que é (inaudível). 


(Problema Técnico) 


[01:24:47] A gente ia te perguntar justamente sobre essa questão da lista (do trabalho escravo). Com ela teve a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a gente queria esse trabalho tão importante assim, como foi esse processo todo? 


[01:25:04] Ana Magalhães: Você diz da lista de da transparência? Na época que a lista suja foi  suspensa? 


[01:25:09] Isso mesmo, teve a questão do Ricardo Lewandowski, toda essa  questão.


[01:25:16] Ana Magalhães: Gente, eu conheço essa história, mas eu não trabalhava na Repórter Brasil nessa época. Eu não sei se eu sou a melhor pessoa para falar para você sobre essa história, mas posso dizer em âmbito geral que a gente fica muito orgulhosos, de a gente ter seguido nessa resistência de suspender a "Lista Suja", mas a Repórter continua pressionando o governo por ser transparente, é um momento que nos dá muito orgulho na história da  Repórter Brasil, até hoje. 


[01:26:02] Não sei se vocês estão me escutando bem agora, mas eu ia complementar também do que a Dani falou, é que esse tipo situações que vocês fazem que eu  acho que estão super pertinentes, quando você pensa no compromisso social que a Repórter  Brasil tem, acabam gerando alguns ataques, alguns podem ser pressões maiores, outras  menores e eu queria saber como é para vocês conciliar essa produção de reportagem, essa rotina, com os ataques que vocês inevitavelmente sofre em alguns momentos em virtude  dessas reportagens. 


[01:26:39] Ana Magalhães: A gente tem, muitas vezes esses ataques, Gabrielle, eles afetam  nosso dia a dia, de certa maneira. Hoje em dia, a maneira mais fácil de você atacar um site é  colocando um robô clicando no site para o site cair. Isso acontece, não é tão incomum isso  acontecer, eu posso te falar, sei lá, eu posso te falar que ano passado eu vi um, ano passado,  em abril do ano passado, abril ou maio do ano passado, houve uma série de ataques  robotizados ao site da Repórter Brasil, que deixaram site mais lento e faziam o site cair muito. Então, quando isso acontece, afeta a minha rotina de trabalho porque eu trabalho com o site o dia inteiro. Se o site está mais lento, atrapalha a minha rotina. Então, teve um mês ali que a gente sofreu muitos ataques e o site ficou muito instável e tivemos que aprimorar o  esquema de segurança do site. Isso acontece com muita frequência. Não só na Repórter  Brasil, mas em outros veículos independentes, a gente percebe isso. E tem muita história dos  ataques na internet. Eu acho que tem toda essa história de fake news aí na internet, circulando. Na Repórter Brasil, sem dúvida nenhuma, a pessoa que é mais atacada não é mesmo tanto a Repórter Brasil, nesse tipo de ataque nas redes sociais, é o Leonardo Sakamoto, que é o nosso fundador e presidente. O Leo, é bem interessante de  escutar quando ele fala sobre isso. O Léo, hoje em dia, ele fala desses ataques nas redes sociais que ele recebe direto com tanta naturalidade de tanto que ele já foi atacado, ele já conseguiu  chegar naquele ponto em que nem o afeta tanto, enfim, publicam milhões de mentira sobre o Léo, publicam com o Leo é fundador da (Agência) Pública, publicam que o Leo tem um gabinete do ódio da esquerda no Brasil e, não sei, ele é tão atacado nesse aspecto, ele é muito mais atacado que a Repórter Brasil, mas o Leo é tão atacado que ele, hoje em dia, lida com uma naturalidade que me surpreende até. Agora, não é fácil, não é simples, eu acho que hoje em dia vem  acontecendo um outro fenômeno que os jornalistas, nós jornalistas temos discutido muito, que é um fenômeno chamado "ataque Judiciário", eu estou criando esse termo. Saiu até um  texto na Folha, se não me engano ontem ou domingo, da Taís Gasparian, falando sobre isso e eu recomendo que vocês deem uma olhada nesse artigo dela, da Taís Gasparian. Ela fala exatamente sobre isso, é uma discussão muito forte que tem no jornalismo independente. Existe um fortalecimento muito grande desse fenômeno, e que fenômeno que é? Uma série de empresas ou pessoas, pessoas físicas ou empresas processando veículos e processando com grande volume de ações judiciais, pedindo retiradas de matérias do ar, pedindo danos morais, pedindo danos indenizatórios, acusando a gente de calúnia e difamação. Há uma sensação de que no universo judicial também há uma disputa mais forte aí, de que há uma tendência de que as pessoas processem mais esses veículos. O que a Taís Gasparian fala no artigo dela é bem interessante porque ela fala assim "muitas vezes são ações tão frágeis que o advogado que está entrando com a ação sabe que ele vai perder, mas ele faz isso para intimidar". Isso na  Repórter Brasil a gente já tem toda uma estrutura jurídica para nos defender das ações judiciais, mas a gente recebe, a gente é processado não digo com uma certa frequência, mas temos processos, nós temos muitos processos. Respondemos processos na Justiça. Eu te digo pela agência de jornalismo, nós recebemos um processo ano passado e um processo esse ano. Agora, eu acho que tem esse universo também, claro, é o processo das pessoas que se sentirem  ofendidas com as nossas denúncias ou acharam que não estamos publicando a verdade, ela tem todo o direito de entrar na Justiça e a gente dignamente comprovar a nossa correção por meio da Justiça. Nós nunca perdemos um processo desses porque o nosso material é muito bem documentado. O time hoje da Repórter está muito preparado, muito preparado, ele é muito  bem estruturado para esses três assuntos que eu estou dizendo: para ataques e pressões por  parte de grandes empresas multinacionais, então não é à toa que a gente é muito rigoroso na prova documental e nas provas que a gente tem antes de publicar uma matéria, a gente é  muito rigoroso com isso. Até porque sabemos o nível de responsabilidade com o qual nós estamos lidando. Quando a gente fala de trabalho escravo, essa acusação de trabalho escravo, de autuação do trabalho escravo, é uma acusação muito delicada, pode atrapalhar muito a vida de uma empresa, até de um fazendeiro, de um pecuarista se essa acusação é feita sem as devidas comprovações. A gente tem consciência da nossa responsabilidade, como a gente precisa fazer um trabalho muito sério, muito checado e rechecado. Até porque muitas das vezes a gente já faz esse levantamento se preparando para apresentar isso para a Justiça no caso de sermos  processados. Então, eu acho que com o tempo a gente foi se preparando muito bem para lidar com esse tipo de configuração, sejam ataques no nosso site, sejam ataques nas redes sociais ou seja um outro tipo de enfrentamento aí na Justiça. Hoje em dia, eu acho que a gente já  incorporou na nossa rotina mecanismos de comprovação, checagem, de reunião documental,  de provas documentais, então isso meio que já está na nossa rotina, sabe, mas é um assunto que a gente está constantemente preocupados. A gente entende isso, entende o grau de  responsabilidade com o que a gente está lidando, jornalismo é uma coisa muito séria e ele  tem que ser levado muito a sério. Só um último exemplo para terminar meu pensamento. Com os outros lados, já aconteceu na Repórter Brasil de a gente postergar uma semana, um mês, a publicação de uma matéria porque a gente não conseguiu o outro lado e o cara ficou enrolando a gente e a gente falar "sem outro lado não dá para publicar essa  matéria". Temos que escutar a defesa desse cara, como ele justifica essa autuação por trabalho de escravo. A gente é muito sério e responsável com isso. Esse é um dos caminhos, você fazer um trabalho muito correto, muito sério, checado e rechecado, com outros lados, para evitar problemas. Então, acho que a gente já tem isso incorporado no nosso fluxo de trabalho normalmente. 


[01:35:13] É uma rotina bem interessante porque acho que é um pouco diferente do que a gente costuma ver hoje. É um nível de preparação e cuidado cinco mil vezes maior porque são, como você disse, reportagens sérias com acusações muito sérias. 


[01:35:31] Ana Magalhães: Exatamente, Gabrielle. Eu me lembro de uma história, eu contei isso outro dia para alguém lá da Repórter que eu vou compartilhar com vocês. Tem umas  histórias muito curiosas na Repórter. Era um jornalista da nossa rede para uma matéria sobre a JBS. A JBS é uma empresa muito grande, ela é uma multinacional, ela é a maior  processadora de proteína animal do mundo, ela está criando uma sede agora nos Estados  Unidos. Os irmãos Wesley e Joesley Batista quase que derrubaram o Temer em 2017. Enfim,  estamos falando de uma grande multinacional. Não é uma Starbucks, mas está quase lá. Eu não sei nem se dá para comparar uma com a outra, são duas grandes multinacionais de referência aos seus respectivos setores. Bom, era uma reportagem que a gente ia dar sobre a JBS, que, se não me engano, a gente estava denunciando que a JBS estava comprando gado de um grupo empresarial multado por desmatamento e isso não pode porque a JBS assinou em 2009 um acordo de que ela não faria isso. Enfim, era uma matéria desse tipo. O repórter, o jornalista, que é o André Campos, que trabalha na Repórter Brasil há mais tempo que eu, muito mais tempo que eu. Tem muito tempo que ele está na rede da Repórter Brasil, é um jornalista brilhante também. O André Campos, naquela ocasião, ele entende muito desse universo da pecuária, ele já investigou muito a JBS, naquele momento, pouco antes da gente publicar a reportagem… uma das provas que a gente tinha era, se não me engano, um print de uma parte do site da JBS. E o André Campos, como o jornalista cauteloso que ele é, ele ficou com receio de a gente publicar matéria, da JBS derrubar esse site, tirar essa página do site, processar gente e a gente não ter nenhuma comprovação de que aquilo havia sido publicado no site, de que aquilo estava no site da JBS. Era tipo essa a história, não lembro dos detalhes, mas era tipo isso. O Campos me ligou e falou, eles me chamam de Magá lá na Repórter, ele falou "Magá, estou aqui preocupado com isso, o que eu fiz e o queria saber se você topa fazer". O que o Campos fez? Ele primeiro tirou um printscreen daquela página e depois ele me perguntou se eu topava fazer isso e eu topei, que era meio que fazer uma autenticação em cartório, era um processo lá que o Campos me falou que era, mas que custou R$ 500,00 (quinhentos reais) para autenticar aquele documento e comprovar, por um processo XPTO, que aquela página, naquele  momento, aquela página da JBS existia. Nós gastamos R$ 500,00 (quinhentos reais) para produzir este documento, para ter segurança de que qualquer coisa que acontecesse, a gente estava muito bem calçado. Foi a única vez que eu fiz isso, mas eu acho que foi prudente fazer. A JBS não nos processou, não aconteceu nada, mas é esse tipo de coisa que a Repórter Brasil faz. A gente gasta R$ 500,00 (quinhentos reais) no trâmite burocrático, para comprovar, para pedir uma comprovação em auditoria de aquela página existia naquele dia e aquele tal e ter esse documento na minha mão para qualquer coisa que acontecesse. É esse tipo de procedimento que a Repórter Brasil faz. 


[01:39:28]Acho que para lidar com uma empresa nível JBS é mais do que  necessário, eu acho que R$ 500,00 (quinhentos reais) foi, assim, pouco para a dimensão do que poderia  se tornar se ela tivesse essa comprovação. 


[01:39:45] Ana Magalhães: Eu acho que vale a tranquilidade que eu fiquei com aquele  documento em mãos, que o Campos ficou, que a equipe inteira ficou. A gente acabou não usando aquele documento, está tudo certo, mas eu acho que valeu. Eu acho que é muito simbólico. Essa história é um símbolo de como a Repórter Brasil é preocupada com esse tipo de coisa, porque a gente já foi muito atacado antes, ou virtualmente ou processados. A gente é muito processado por conta do trabalho escravo, as denúncias de trabalho escravo. Então a gente está muito bem treinado. Eu acho que a gente foi aí adquirindo um know-how e  incorporando medidas extras de segurança, prudência, checagem, rechecagem, que são coisas  do bom jornalismo mesmo. A gente foi incorporando isso na nossa rotina e eu acho isso é  interessante hoje, eu prefiro um jornalismo cauteloso do que um jornalismo não tão correto, mas ousado. A gente é bem cauteloso e quando temos indícios, isso já aconteceu várias vezes, quando temos bons indícios, mas não temos provas na nossa mão, a gente não publica. Já aconteceu de a gente desistir de muitas boas histórias, com pistas muito fortes, muito fortes e de não publicar porque falta uma prova mais sólida. A gente faz um jornalismo investigativo bem sério. 


[01:41:18] Deve doer um pouquinho, mas como você falou acho que é muito necessário. Ana, queria aproveitar para finalizar um pouco a conversa, a gente tá indo já para a reta final, não dá para ignorar que a gente está na pandemia. Você já falou sobre os processos de trabalho da Repórter Brasil e a gente queria saber como é que a pandemia impactou os trabalhos de vocês, a produção de reportagens, porque é difícil ir a campo, tem muitas questões de segurança. Como esse cenário impactou a produção de  reportagens? 


[01:42:00] Ana Magalhães: É, realmente, a pandemia nos afetou muito, sobretudo no que  tange às nossas investigações em campo. A gente praticamente passou aí uns dois, três meses  sem fazer. Hoje a gente faz de uma forma muito restrita, só o estritamente necessário é que a gente vai a campo. Aconteceu uma casualidade na Repórter Brasil que um dos nossos repórteres pegou Covid, então ele está uma imunizado hoje e ele começou a querer viajar, porque ele já estava tranquilo para viajar, então fizemos  uma que outra viagem com esse repórter, só  porque ele estava querendo viajar e ele já tinha pegado Covid, com o teste e com tudo, então entendemos que naquela circunstância achamos que tudo bem, mas impactou muito o nosso trabalho nesse aspecto. Assim, por exemplo, nós tomamos a decisão na pandemia - a gente cobre muitas questões indígenas no Brasil - , nós tomamos a decisão de que na pandemia não vamos visitar nenhuma terra indígena para não corrermos o risco de estar levando o coronavírus para aquela aldeia. Acho que outra vez a Repórter Brasil lança um olhar muito responsável, do mesmo olhar responsável que a gente lança sobre o jornalismo, a gente lançou para a pandemia. Não queremos em hipótese nenhuma imaginar que uma reportagem, que por conta de uma reportagem nossa nós contagiamos uma aldeia e eventualmente o risco de gerar mortes ou qualquer outra coisa do estilo. Então nós suspendemos visita a aldeias. Isso atrapalha um pouco nosso trabalho, sobretudo na questão indígena, então, por exemplo, um dos nossos repórteres, o mesmo Daniel Camargos que foi o que pegou Covid, foi para o Pantanal agora. A gente havia cogitado de ele ir a uma terra indígena, entrevistar um indígena para falar sobre o fogo naquela terra indígena. A gente tomou uma decisão de que a gente não iria. Uma das lideranças dessa aldeia estava disposto a receber o Daniel, aceitar o Daniel ali dentro da  aldeia. Foi uma decisão institucional nossa de que a gente não iria, por conta disso, por conta de que para a gente a maior preocupação é a segurança e a saúde dessa aldeia e desses indígenas. Isso vale muito mais do que qualquer boa história. Mas conto com esse pensamento - e vale mesmo. Eu prefiro aqueles indígenas e aquelas lideranças e aquele cacique vivo do qualquer boa história da Repórter Brasil. É isso que me importa, me importa é que os trabalhadores tenham direitos respeitados, que os indígenas tenham os direitos respeitados. Então deixamos de fazer boas matérias em campo por conta dessa preocupação e faremos isso provavelmente até a reta final. E aí eu acho que o maior impacto é, sem dúvida nenhuma, essa impossibilidade de fazer investigações em campo, especialmente em aldeias indígenas. Muitas vezes, claro, a gente tem conseguido segurar o nosso trabalho, fazendo muito trabalho na redação, apuração por telefone mesmo e similares, mas no que tange algumas histórias, não tem como, sobretudo histórias indígenas de algumas etnias. Você tem que ir a campo para ver, muitas dessas terras indígenas são muito isoladas, não têm celulares, não tem cobertura, a gente não consegue falar, eu acho que prejudica um pouco o nosso fluxo de trabalho aí. A Repórter Brasil sempre fez um jornalismo muito de ir a campo. Eu já comecei aqui antes que a gente tem essa  história de que a gente vai aonde ninguém vai, a história de Daniel lá em Novo Progresso. Enfim, é um DNA muito forte da Repórter Brasil fazer investigação a campo e a gente não está fazendo com a mesma desenvoltura que a gente fez no ano passado, por exemplo,  por causa da pandemia. Mas eu acho que dá para adaptar, acho que a gente fez excelentes reportagens nos últimos meses sem ir a campo, fazendo uma investigação de cadeia produtiva, fazendo o cruzamento de dados, enfim, e eu acho que dá para levar, mas eu acho que maior impacto foram viagens mesmo. Da minha parte, no meu trabalho é um pouco mais difícil você coordenar uma equipe e sintonizar a tua equipe sem vê-lá, sem estar com ela, sem ver no dia a dia, mas eu acho até que o jornalismo é uma atividade que se adapta muito bem para o home office, muito mais do que se você faz formação de professor, por exemplo já é mais  complicado, no mundo da educação já acho um pouco mais complicado o virtual. Nesse aspecto interno da Repórter Brasil, eu acho que a gente se adaptou muito bem ao home office, acho que está tudo certo e do que mais eu sinto falta é essa liberdade de ir e vir e de fazer uma investigação em campo, mas tudo bem. 


[01:47:50] Tem um propósito, né, um propósito forte. 


[01:47:52] Ana Magalhães: Eu acho que tem uma boa justificativa por de trás e a boa  justificativa é a melhor regra, eu prezo pela segurança das comunidades sobre as quais eu falo, não faz sentido eu ir a campo, numa terra indígena, para denunciar uma violação que está acontecendo naquele povo tradicional, naqueles povos, naquela aldeia e, por um lado, eu estou denunciando uma violação ali, mas também por outro eu estou colocando eles em risco com a Covid. Não faz sentido, então eu acho que tem um bom propósito, concordo com você, Gabrielle, eu acho que tem um bom propósito por trás dessa nossa adoção de medidas. Nossa maior preocupação é a segurança das pessoas, tanto dos nossos profissionais, quanto das pessoas com quem a gente tem contato. Eu sinto falta. 


[01:48:53] É muito coerente mesmo com a ideia de vocês. 


[01:49:00] Ana Magalhães: Mas morro de saudades de planejar uma investigação campo,  começar a fazer uma produção de viagem. Quem sabe em 2021, gente. Quando? Quando? 


[01:49:10] Estamos torcendo para ser logo também. E Ana, nosso papo está assim muito, muito, muito bom mesmo, estou gostando muito de escutar essas histórias,  eu imagino que a Dani também esteja assim deslumbrada com algumas coisas que escutamos  hoje. 


[01:49:27] Ana Magalhães: Eu seria capaz de ficar falando aqui por horas e horas falando, mas uma hora eu tenho que parar de falar, né, gente. 


[01:49:37] Por mim, olha, pela gente, continuaria, confesso. 


[01:49:42] Ana Magalhães: Eu adorei nossa conversa, eu estava com saudades de ter boas conversas. 


[01:49:47] Eu queria te fazer só uma última perguntinha. Sobre a importância do jornalismo e a importância de estar no digital para poder tornar essa mensagem cada vez mais ampla e que ela chegue a mais pessoas. 


[01:50:02] Ana Magalhães: O jornalismo é uma atividade, é uma profissão, é uma atividade tão importante, mas tão absurdamente importante na sociedade contemporânea, que, se você não tem um bom jornalismo sendo produzido no país ou veículos de imprensa relativamente independentes num determinado país, o grau de  classificação do teu nível de democracia é outro. Reformulo o que eu digo, eu acho que eu falei de um jeito meio confuso. Não existe um país democrático sem um jornalismo livre, independente, investigativo e fiscalizador. Não existe. Eu estudei ciência política também na minha vida, fiz um mestrado em ciência política, então também faço uma discussão muito ligada à política nessa história. Na ciência política o que se diz é que a democracia tem gradações de nível de qualidade. Existem institutos e pesquisadores que dão uma classificação para o grau de democracia que um determinado país tem e quando eles fazem esse estudo, do grau de democracia que você tem, se ele é mais alto ou mais baixo, um  dos fatores fundamentais estudados, são vários fatores que entram: têm que ter eleições livres; tem que ter partidos políticos; tem que ter divisão entre poderes; tem vários critérios ali para os pesquisadores fazerem essa classificação. Um dos critérios é o jornalismo, se há, e também não só, se há jornalismo ou não há, mas também o grau de qualidade deste jornalismo, o quanto as empresas jornalísticas são independentes do governo, o quanto as empresas jornalísticas são independentes das grandes empresas, o quanto o jornalista é livre. Eu realmente não consigo imaginar uma sociedade democrática, sem nenhum trabalho do jornalismo, de jornalismo investigativo também, não consigo nem imaginar, isso não existe. E hoje eu acho que nesse cenário atual, em que a gente vê ameaças constantes ao processo democrático brasileiro, o jornalismo se faz mais relevante do que nunca. É muito interessante essa segunda pergunta de vocês sobre a questão digital, eu sou de uma geração, quando eu nasci, eu nasci em 1979, e quando eu nasci, eu peguei, eu sou da geração que pegou justamente a transição plena do analógico para o digital. Essa história é bem curiosa, eu adoro contar essa historinha também. Desculpa, vou tomar uns minutinhos de vocês, mas essa história é engraçadinha. Você pensa o seguinte, quando eu entrei na universidade 1997, janeiro de 97, era a PUC-Mina e eu fui a última turma da PUC a pegar um, na PUC você tinha um laboratório de produção de texto e eu fui a última turma da PUC a fazer esse laboratórios de produção de texto com máquina de escrever. Eu peguei máquina de escrever na PUC, incrível, eu tenho muito orgulho de contar isso que para você vai ser muito doido. Como que era? Hoje vocês devem ter lá na faculdade um laboratório de informática, onde você entra e tem 40 computadores. Mano, na PUC você entrava na sala tinha e 40 máquinas de escrever e a gente tinha uma disciplina prática, no primeiro período, que o professor levava os 40 alunos para essas máquinas de escrever, ele dava ele dava um tema ali, um assunto e pedia para a gente  escrever um texto no curso da aula. Então, era aquele festival de taque-taque-taque (ela reproduz o som da máquina). Tinha gente que não conseguia nem se concentrar com 40 máquinas de escrever no seu ouvido. Eu fiz essas aulas, assim que eu passei para o segundo período, a PUC acabou com barracão - esse  lugar era chamado barracão -, a PUC acabou com barracão, tirou todas as máquinas de escrever, comprou computadores e criou um laboratório com computadores. Mas eu, no meu primeiro semestre, eu escrevi numa máquina de escrever, eu tenho trabalho de faculdade  com uma máquina de escrever, é muito incrível. O celular, gente, não existia em 97 -  já existia mas eram os tijolões. Eu me lembro de ter o primeiro celular no meio da faculdade provavelmente, com 20 anos, por aí quando eu fui ter um celular. Quando eu entrei numa primeira redação, onde eu trabalhei lá em Belo Horizonte, eu  me lembro claramente disso que a internet começou a ganhar esse essa visão comercial dela 95 e eu demorei ainda uns anos para ter um e-mail, meu primeiro e-mail deve ter sido de 98, por aí, então, eu entrei na faculdade sem e-mail, não tinha e-mail até outro dia, gente. Eu tinha a idade de vocês e talvez eu não tivesse e-mail, e-mail foi uma coisa que veio depois. Eu estou contando essas histórias todas para mostrar o quanto tudo mudou e muito rápido. Quando eu entrei, este é o último exemplo, quando eu comecei a trabalhar num jornal, em 2001/ 2000, no jornal já tinham computadores, tudo certo, mas nem todos os computadores eram conectados na internet, eram cinco computadores os conectados na internet. Quando eu comecei a atuar como jornalista profissional, eu usava lista telefônica impressa, eu não sei se vocês já viram isso antes na vida, talvez no museu vocês encontrem. Lista telefônica, eu comecei minha carreira com lista telefônica. Então, eu peguei essa transição e é muito rico você pegar essa transição porque você consegue comparar um mundo com o outro, o que melhorou e o que piorou. Para o universo jornalístico, está dado que de fato a internet, os avanços tecnológicos facilitaram muito o trabalho. Agora, tem problemas, eu também vejo problemas. Agora o que eu queria comentar é o seguinte, em 95 quando a internet começa, eu já estava quase entrando na faculdade, eu tinha 16, 17 anos, 15 anos, sei lá, quando começa a internet,  começa toda uma discussão, a qual eu acompanhei muito de perto porque eu gostava desse  debate, começa toda uma discussão sobre para onde a internet vai nos levar. Tinha um grupo  de pessoas que diziam assim "uau. Que foda, a internet vai democratizar a informação, o  conhecimento, vai dar acesso para todo mundo com um clique". É em parte verdade? É, de  fato se pensa hoje, a Repórter Brasil faz todo esse conteúdo tão primoroso, com tanto  cuidado, com tanta responsabilidade e o cara que tá lá no interior do Piauí, se ele tiver um  celular conectado, ele pode ler a matéria da Repórter Brasil. Uau, que incrível, é incrível isso. Não é tão simples o processo, é um pouco mais complexo, eu andei pensando um pouco nisso esses dias, por conta desse desse documentário que vocês devem ter visto, das redes sociais, The social dilemma. Então, lá em 95, havia todo esse debate, uau a internet vai democratizar tudo, que incrível, ela vai revolucionar o mundo, ela vai democratizar, mas também tinha um grupo de pessoas que diziam assim "cuidado, gente, ela também pode gerar uma exclusão digital, ela também pode gerar na problemas e tal". Eu acho interessante hoje a gente analisar isso, depois de duas décadas, como que tem lado positivo, mas tem um lado negativo. Eu sim, acho que as redes sociais, da forma como elas estão andando, elas estão gerando uma série de problemas que são graves, que é a fake news, que é o mundo da pós-verdade, que é essa polarização, o tal discurso do ódio. São as redes sociais que estão fazendo isso, elas estão alimentando isso e elas são fruto da internet ao mesmo tempo, percebe? Então, eu entendo a tua pergunta, Gabrielle, mas eu queria só polemizar um pouco porque eu sou uma moça polêmica mesmo. Mas é um pouco isso, é incrível você pensar que existem hoje tantos veículos com um conteúdo tão primoroso a um clique de acesso, você pode hoje entrar internet e ler uma puta matéria da ProPublica, nos Estados Unidos, que 20 anos atrás você não teria acesso a não ser por um longo e tortuoso caminho. Então, o mundo virtual ele vem com mil maravilhas, mas ele também vem com mil problemas. Não adianta nada a Repórter Brasil estar de graça na internet e chegar na mão de um aposentado semianalfabeto no interior do Piauí, não serve, não funciona. Eu acho que tem essas dualidades, eu acho que sim, facilita muito o alcance de público, sem dúvida nenhuma. A gente tem que começar a traduzir mais para o inglês o nosso trabalho, a gente quer também que nosso trabalho fique um pouco mais conhecido internacionalmente e a internet me permite isso de um jeito muito fácil, muito prático, mas eu acho que também tem dualidades, não é tão simples assim. Eu acho que a educação é um negócio extremamente necessário, programas de inclusão digital. Enfim, eu acho que no final das contas, o mais importante para o mundo é que ele seja menos injusto, especialmente. Se tiver um mundo menos injusto, mais instruído, mais bem estudado, todos com qualificação melhor, enfim, com oportunidade de saúde e de estudo melhores, eu sempre acho que a solução está por aí. E aí é muito lindo porque a gente volta lá no início da  nossa conversa, na missão da Repórter Brasil, dos meus desejos de mudar o mundo, acho que é isso, eu queria deixar um pouco esse pensamento: a internet é incrível, ela é maravilhosa, mas sem  educação, sem inclusão social, sem justiça social, sem melhores oportunidades de emprego e menor desigualdade, ela atinge um público muito restrito e se ela não atingir outro e aí é isso, a gente retroalimenta o mundo desigual. Então vou deixar também essa reflexão aí com vocês.  


FIM

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